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Bêbado não, artista de rua
Valdecir dos Santos

São quatro horas da manhã, o sol ainda está dormindo. Muito timidamente, pessoas começam a se levantar iniciando o corre - corre da vida. Chegando de viagem, no momento em que eu descia do ônibus, encontro próximo ao ponto um sujeito, aparentemente um jovem, que me olha assustado e pergunta-me:
Que horas são? Respondo-lhe. Apenas quatro. Continuo a minha caminhada porque estou cansado e preciso repousar. Quando subitamente, percebo que alguém me segue. Resolvo olhar de vagar, num leve menear de cabeça e, para minha surpresa, consigo enxergar meio a escuridão da noite um vulto que, como um equilibrista, caminha em minha direção. Num trocadilho de pernas, ora para direita, ora para esquerda, lá vem ele, depois de ter bebido muito, é claro, utilizando de solilóquios e monólogos, agora, começa a cair e se levantar, cair e se levantar...
Resolvo esperar pra ver até onde iria aquela cena, realmente uma cena de filme, uma cena de um grande artista. E ele era mesmo, um artista, um artista de rua, que passava maior parte do tempo se exibindo para uma platéia que, nada lhe pagava para assistir aos seus shows, espetáculos, grandes espetáculos que lhe custavam a vergonha, o sarcasmo, o mico, os empurrões e escoriações pelo corpo e, até mesmo, umas e outras viagens na viatura da polícia, mas as crianças gostavam porque aquele homem era a atração de toda a cidade, pois as pessoas se divertiam ao vê-lo fazer tanta graça.
Um ponto de interrogação permeia minha mente ao ver aquele sujeito naquela situação. Até então, para mim, é uma incógnita. Então resolvo esperar, quem sabe aquele momento fosse a oportunidade para um conselho: Saber quem é? O que faz?
O moço se aproxima meio lentamente, quase que inconsciente devido o grande teor de álcool que permeiam suas entranhas: pára... Olha-me e pergunta: ___Moço você tem uns trocados para eu comer um pão, estou morrendo de fome?
Àquelas horas da manhã? Impossível acreditar que ele pudesse estar mesmo querendo comer alguma coisa e, mais difícil ainda, encontrar algo aberto naquela região.
Tudo bem! O que ele queria mesmo era um dinheiro para ingerir mais um pouco de álcool e assim manter a máquina funcionando porque ele precisava dela para continuar seu ofício: artista de rua para todos os públicos... de graça... A máquina que, aos poucos, vai-se depreciando devido à grande quantidade de produtos químicos nela despejado.
Eu olho para ele com o coração partindo, semelhante àquele que sofreu um ataque fulminante - repartido em dois pedaços – e pergunto-lhe:
___E você, o que faz, uma hora dessas na rua?
Ele me responde. ___Sou um artista, sabe? Artista de rua, daqueles que a vida forma por aí. Daqueles que o mundo e sorte rejeitam. Daqueles que o traiçoeiro destino toma como presa e os fazem escravos. Sou um artista escravo.
Continuamos andando, vagarosamente, na verdade quem andava era eu porque ele cambaleava. Seguimos em frente, quando eu percebi já havia passado frente a minha casa, mas, tudo bem. O dia já estava amanhecendo mesmo, logo eu iria descansar, teria todo o dia para dormir. Naquele momento o que eu mais queria era mesmo conhecer aquele ser, aquela alma tão desprovida de raciocínio e coerência que, no fundo, possuía um grande coração, mas que as impossibilidades e a ironia do tão cruel destino o fizeram alterar sua rota original. Ele interrompe a minha conversa com os meus neurônios e me pergunta: ___Você conhece a marvada? ___Não muito, a vi poucas vezes por aí, mas não tenho conhecimento de quem ela seja realmente. ___E você? Pergunto-lhe. ___Eu a conheci há alguns anos fiz amizade com ela, sabe? Aquela amizade colorida de trocadilhos, copinho, boteco, sabe... O nosso caso tornou-se um caso de amor, profundo amor, um caso de polícia. O sujeito me convida para sentar, ali mesmo, na calçada, frente ao Bar Primeiro Pilequinho, onde ele experimentou o primeiro gole. E, desesperadamente, chorando, começa a se abrir comigo.
Sabe amigo... Quando eu era mais jovem, bonito, porte atlético, rico... Numa dessas idas e vindas da vida, aqui, mesmo, neste bar, conheci essa companheira inseparável, a catcha, a catchaça. Depois do primeiro beijo, digo, gole já percebi que estava embriagado de amor por ela, e desse dia em diante não consegui viver longe dela. Perdi tudo o que eu tinha, estou só e sei que tudo que faço não tem sentido, pois eu perdi o que eu tinha de mais precioso, na vida, minha família. Fiz uma troca injusta, optei por ficar ao lado da catcha, agora meus filhos e minha esposa não me querem. Estou morrendo aos poucos, meus fígados estão se esfacelando, meu coração já não agüenta mais. A qualquer momento o show pode parar...
Terminando de silabar aquelas ignóbeis palavras o, anônimo, artista de rua deixa cair sobre mim sua fronte e, ali, se apaga... Apaga-se para a eternidade.




Biografia:
Valdecir dos Santos – Docente na Rede Estadual de Ensino de MS Pós-Graduado em Língua e Literatura Professorvaldecir.santos@gmail.com
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