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INCIDÊNTE PASCUAL
Guilherme Percello

INCIDÊNTE PASCUAL




          Como estava, como simplismente se diz, na merda, e urgia pagar aluguéis, (Já tinha vencido dois meses, ia para o terceiro.) Pegava-se a toda crença, tudo quanto é religião servia-lhe. Ele o ateu convicto, (era assim que se sentia até a pouco tempo.) ia agora, do catolicismo ao protestantismo, do budismo ao espiritismo, da mesa branca a pura e simples macumba, com suas devidas e múltiplas variações de magia: preta, vermelha e branca... Verde gris, cachorro pirento e o diabo que as carregue a todas elas.
          E por falar no “tal”: Dias atrás, uma dona rezadeira profissional, garantiu-lhe que ficaria livre da urucubaca que o possuía, com um despacho. Consistia o dito, nada mais nada menos que, uma oferenda ao “tinhoso”. Pois, ninguém a não ser ele, iria livra-lo das pragas e rezas bravas, que assim afligiam nos últimos tempos seu tão atribulado ser.
          Quando saiu do consultório da rezadeira, (Não sem antes esta extorquir-lhe em nome do favor que acabava de prestar-lhe, até o último trocado.) o fez com extensa lista, verdadeiros petiscos, que deviam ser cozidos a fogo lento, de preferência na lenha em panela de barro, a qual panela, ( Ah! Isto era indispensável.) adquirisse mais as quatro velas pretas e os quatro charutos, na casa de artigos religiosos Pena Entortada, da qual, ela a rezadeira, ganhava uma pequena comissão por freguês que enviava: Como é de praxe hoje em dia em todo negócio particular, ou oficial.
          Sexta feira a meia noite, mais exatamente, sexta feira da paixão; dia e hora que todas as forças do mal desencadeiam, liberando seres fantasmagóricos, habitantes de um submundo de trevas perenes, o dia designado pela rezadeira para ele depositar o despacho, numa encruzilhada dum longicuo subúrbio da Central do Brasil. Quebradas esquisitas, carentes de iluminação artificial, com um apinhado de casebres de tétrica aparência.
          Com avantajado embrulho em baixo do braço, onze horas da noite, pegou o metrô até a estação da luz, de lá integraria com o trem que o deixaria no dito subúrbio. Parecia-lhe que todas as pessoas com que esbarrava no caminho, tinha ciência dos trecos que aquele embrulho continha. E punha-se a relacionar mentalmente os mesmos. “Um rico e fartamente apimentado guisado de frango preto, no óleo de dendê... Quatro charutos corintianos, quatro velas pretas e uma garrafa de pitu da legítima, engarrafada na origem. Um punhado de terra de sepultura nova, que fosse do cemitério do araçá, lá é que são sepultados, os que tiveram uma vida de abastança, o que não impede que apodreçam iguais que os outros, indigentes atirados em covas rasas nos cemitérios das periferias. Ou de qualquer vítima do tão afamado esquadrão da morte, numa vala qualquer, pasto de urubus e ratazanas.
          Sei dizer que o tal despacho foi um total desastre. Primeiro, ele o único passageiro a descer do trem naquela pequena estação suburbana: Atravessou a ponte que vai até uma rua descalça e sem iluminação. A encruzilhada, segundo a rezadeira, ficava a cem metros a sua frente, e uns duzentos metros a mão direita de quem vai, por uma ruela esburacada margeada de barrancos e matagais.
          Com dificuldade encontrou o lugar. Desfez o embrulho, dispôs as quatro velas em forma de quadrilátero e as acendeu. A panela com guisado de frango no centro, a garrafa de aguardente e os charutos perto da panela, o montículo de terra à direita.
          Pronto... Agora era só por três vezes consecutivas repetir as estrofes macabras.
          “Senhor das trevas, poderoso senhor. Tu que comandas as forças do mal... Etc... Etc”.
          Terminado o ritual pensou desandar o andado, pretendia tomar o último trem para a cidade, quando viu o Judas. Não, Eram dois Judas, pretos, imóveis, protegidos pela sombra do barranco no matagal. Seu primeiro impulso, foi sair em disparada corrida. Mas o que?! Seus pés pareciam ter criado raízes no lugar. Um dos Judas disse:
          - Ele não é do pedaço.
          - Nunca o vi antes.
          Respondeu-lhe o outro, e começaram a caminhar para o seu lado.
          - Tem dinheiro aí, oh meu?
          Perguntou-lhe um deles.
          - Azar dele se não tiver nenhum.
          Disse o outro. Aí, não fosse ele ter perdido momentaneamente as faculdades orais, podia ter respondido que tinha só o dinheiro da passagem de trem, mísera quantia de três cruzeiros. Mas em compensação aquele lindo reloginho eletrônico, que a dois meses adquirira de um marreteiro, que por sua vez tinha adquirido de um sírio-libanês na rua Oriente, que comprava contrabando da zona franca de Manaus, em sociedade com um fiscal do Ministério da fazenda.
          Um dos Judas, digo dos pretos, que portava na diestra um enorme facão de açogueiro, berrou ameaçador.
          - Vai soltando tudo aí, do contrário faço tua caveira.
          - Pa... Pa... Pas... Pas... sagem... só... só... re...lo
delo... lógio.
Balbuciou no auge do paroxismo.
          - O cara é estrangeiro.
          Disse o Judas da faca.
          - Só pode ser. Com essa puta língua enrolada.
          Respondeu o outro, que mantinha uma garrucha de dois canos a poucos centímetros de sua testa.
          - Des... des... Desculpem. Eu de... de... dou... rede...redole... reló... gi... gio... eletronico... co.
          Fez numa gagueira incontrolável.
          - Dá uma porrada nele, antes que comece a gritar.
          Falou um.
          - Legal meu chapa.
          Respondeu o outro. Foi então que sentiu a explosão medonha na base do crânio, e teve a fugaz visão de uma imensa coluna de luz alaranjada a ascender de si mesmo até o infinito de todas as coisas que de repente cessam de ser, por um instante, ou por sempre jamais.
          Quando recuperou os sentidos, se o estado em que se encontrava era verdadeiramente ter recuperado os sentidos, pode se ver, literalmente nu, só um calção de banho bastante usado, os filhos da puta dos Judas, tinham deixado no seu corpo.
          As velas pretas, meio gastas, tinham sido apagadas pela garoa fria e fina, que estava a cair de um céu que alvorecia. O conteúdo da panela de barro, comido e lambido, dos charutos e a cachaça nem notícia. Ficou a perorar aos brados elucubrações de a longo tempo armazenadas em seu íntimo.
          -Não há não, não existe divindade nenhuma. Tudo quanto e religião, não passa de pura invencionice dos homens, verdadeiras arapucas onde os incautos são extorquidos, sem dó nem piedade. E pensou “ A casa de Deus não tem portas nem muro. Aonde porra se ubíqua? Em que canto remoto, em que região abstrata do universo?”
          Disse:
          - Comeram o rico guisado, beberam a pinga, fumaram os charutos, e eu aqui a tiritar de frio. Merdas, malditos filhos da puta.
          Meditou: “Deus está em nós mesmos. Mas, como é que pode, se nem eu caibo em mim, deslocado como estou, nesta turbulência de idéias e súbitos acontecimentos?”
          Vinha lhe a mente, estrofes de um verso que lera a muito tempo.

                               Jesus de Galiléia,
                             Sábio teorizador
                                das turvas que levam,
                             os signos da dor.
                                 Não me humilho nem rezo,
                               Aos teus pés Jesus,
                                 Chego a ti como o cego
                                Que anda em busca de luz* De um poema de Alma Fuerte.
          E misturava nos versos orações que lhe acudiam ao cérebro perturbado pelos acontecimentos imprevistos.
                                   Fazedor de reformas agrárias,
                                 Contumaz sofredor.
                                    Profeta não... Mestre de bondade e amor.
          - Estes pretos Judas. Ou estes Judas pretos, O que vem a dar na mesma.) sacanas, quase que estouram minha cabeça... Levaram minhas roupas, meus sapatos... Meu querido reloginho eletrônico, ( A bateria dele tinha carga para uns bons seis meses.) comeram o guisado,beberam a pinga. Devia ter botado veneno para ratos, na comida e bebida, a esta hora estariam a retorcer como bichos hidrofóbicos, espumando no auge do desespero, ou aterrissados numa sarjeta qualquer, com um esgar de horror, a lhes pairar nos rostos nojentos.
          No calor do ódio, sentiu que seu ser se bipartia, por uma pequena fração de tempo, em dois seres diferentes, antagônicos. O que originou, singular e lacônico debate.
          - Perdoa-os Senhor, eles não sabem o que fazem.
          - Sabem sim. Ninguém se arma para a prática do latrocínio, sem antes premeditar o que vai fazer.
          - Dos humildes e resignados será o reino dos céus.
          -P’rá merda com essa lenga-lenga. Eu só queria que os filhos da puta não tivessem levado minha calça e minha camisa. Em fim que se há de fazer. O melhor é levar tudo na esportiva... “Men sana in corpore sano”.
          E num trote igual, compassado, fingindo que estava a praticar cooper, cobriu os quatorze quilometros, que o separava de sua moradia no bairro do Brás.


                                      Guilherme Percello






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