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ERA MENOS UM
Guilherme Percello

ERA MENOS UM



          Descíamos o rio, num batelão velho e pobre, que fazia abundante água, quatro homens ao todo. Todos os quatro cansados, tristes e desalentados. Vínhamos voltando de uma fracassada exploração de diamantes, nas cabeceiras do Dimini. Das cachoeiras do Jenipapo, para o alto, vários dias de remo, e do grotão de onde se radica a nascente, seis dias de mata alta e fechada andada a pé, por sendas abertas a facão, num emaranhado de cipós e palmeiras de toda espécie, e grande extensões, cobertas por tabocas e ananaranas.
          Simeão, o goiano, batia água, com uma cuia, do casco da embarcação. Fazia isto de lento, de vagaroso, desobrigado, como quem, se incumbido se desincumbe, de algo que não é obrigado a fazer, fazendo como quem não faz. O belga Virgílio, alto e magro, cabelos cor de ferrugem, tirava sorrateiro, uma carteira amassada de cigarros, de uma capanga suja que levava à tiracolo. Dissimulava, fumava, dissimulava, guardava o resto do cigarro na capanga sebosa. Parecia desconcertado ante a idéia de ter de dividir os mesmos.
          Joaquim, Pernambuco velho, de cabeça branca, e dentes roídos e amarelos, deitado na proa mastigava uma fala, querendo caçoar do belga.
          - O senhor conhece a estória do caboclo fuma só?
          - Conheço não. Ninguém gosta de estórias.
          “Nas grande praias das beiras, encostávamos por vezes, tirávamos ovos de tartaruga ou de tracajá, cozinhávamos, comíamos, em estacas enterradas na areia, amarrávamos as redes munidas de mosquiteiros, e nos deitávamos a dormir, ou a pensar, ou simplesmente a mirar o céu cheio de azul e luzes distantes, em quantidades muitas”.
          O velho Joaquim vinha sofrendo de uma ferida, na antecoxa da perna direita, mordida de caititu, feia, que tinha desgarrado o músculo. O sangue havíamos estancado, com um pedaço de camisa velha embebida em leite de açacu, amarrada com uma embira no local ferido. Mas a infecção vinha, e não dispúnhamos de nenhum remédio, faltando pelo menos, doze dias a ser viajado, para chegar a Barcelos, no Rio Negro.
          Ele não se queixava, mas eu sabia que estava doendo, e doendo muito. O motor de popa tinha entrado em pane, fundira uma vela, e ninguém se achava com vontade de remar. Eu apoiava uma mão no leme, e deixava a embarcação descer ao sabor da correnteza. Aço brunido era o rio, parecia um espelho deitado, recurvado na mataria. Descíamos.
          Peguei um cigarro de palha, o último, de um bolso de meu calção, acendi e dei duas tragadas, passei para o Simeão, que deu outras duas, e passou para o Pernambuco que foi fumando com avidez. Perguntei:
          - Está doendo muito velho?
          - Dá pra se aguentar – respondeu.
          Fumava e assoprava a fumaça quase na cara do belga. Este fingia não se aperceber.
          “No arrancho, tapiri de palha, de uma água só, o fogo crepitava, estalava em brasas convertidos, paus de aroeira, cedro e itaúba, junto com ouriços de castanhas. Falava-se, lembrava-se o passado em voz alta. Simeão dizia:
          - Nos Piaus, e no Chiqueirão, eu e um companheiro catra funda cavávamos, setenta, noventa, até cento e vinte palmos de fundara. Aquela tabatinga amarela, grudava nos pés, no corpo, nos cabelos da gente. Se suava muito, e o suor se entremisturando com a lama peguenta. Comia-se só uma vez por dia, toicinho, feijão e farinha d’água. Quando encontrávamos alguma piramba, que pintava pretinha, descobríamos um pedaço dela, e ali vinham capangueiros aos montes, querendo comprar o troço.
          - Destampa mais um palmo, caboclo, que dou dez contos de réis.
          A gente tirava um punhado de terra.
          - É pouco, meu caboclo, já estou dando vinte e cinco contos. Destampa mais.
          Não tirávamos nem um tico mais de terra de cima da piramba. Muita gente chegava e se agrupava na boca da catra. Os olhos curiosos, era tudo como um duelo. Capangueiros lá em cima, rodeados de curiosos, e no fundo do cavado, nós, pensando que os vinte e cinco contos era muito, e ao mesmo tempo ambicionando mais. Ah, dorzinha fina na barriga, que a gente sente neste momento. E se esquece de toda fome que passamos, por tanto tempo. Fome de comida, fome de fêmea, daquelas raparigas tão boas da cidade grande, e daquelas cervejinhas geladas. Se esquece tudo, porque a piramba de cristal está ali, e somos nós os donos do leilão. E capangueiro fala:
          - Mais um palmo, caboclo, só um palmo mais. Cinquenta e cinco contos estou pagando.
          Fazíamos como se não o víssemos, e os capangueiros se exaltavam nas vozes, e diziam:
          - Estamos fazendo sociedade, pagamos duzentos contos, é dizer se ela continua preta destampando mais três palmos.
          Criávamos coragem e tirávamos três palmos mais de terra. A piramba continuava pretinha que nem piche.
          - Arranca ela, caboclo, dou os duzentos.
          - Duzentos e um Smith Wesson novinho em folha.
          Arrancávamos a piramba, a luz toda do dia entrava e fugia através dela”.
          Entardecia, quando avistamos a desembocadura do Lontra. De repente vejo Joaquim se queixar de fortes dores, a perna ferida está ficando toda roxa. Eu sabia que a menos que chegássemos a Barcelos, antes de quarenta e oito horas, ele morreria. E morreria mesmo, posto que o motor no prego, por mais que remássemos dia e noite, impossível seria alcançar a cidade em menos de quatro dias de viajem.
          Já de noite, arranchamos numa pequena praia. Simeão fez um grande fogo, enquanto eu cortava estacas para amarrar as redes. O belga se mostrou solícito com o Pernambuco, que não parava de gemer, fez uma cama de folhas de sororoca para ele, alegando que não dava para o velho dormir dependurado no estado em que se encontrava, e até tirou um cigarro do embornal seboso, acendeu o mesmo e passou para Joaquim, que parou de gemer.
          - Oh meu Deus, que dia é hoje para eu merecer tanto presente!
          E ensaiava um sorriso que não passava de uma careta de dor, e fumava, mordia o bigode branco amarelado, e fumava, gemia de dor, tremia de dor, e fumava, como se de uma vez degustasse, fumo, dor e prazer de haver sido obsequiado, por aquele que acreditava ser seu pior inimigo, apesar de companheiro de aventura.
          “Isto fazia mais de oito anos atrás, nas cabeceiras do Branco, vinham rastreando o rio em busca de mergulho, o belga numa canoa e Joaquim noutra, como quase sempre bêbado, quando se deu o incidente, que ia inimiza-los para o resto da vida. Joaquim se descuidou, e a correnteza levou a pequena embarcação para o rebujo, afundando-a. Lá se foram capacetes de mergulho, bomba de balancinho, fiel, e mais quatro seção de cabos e tubos, além de um jogo de peneiras novo. Quando o Pernambuco de nado chegou na praia, o belga o esperava, fulo da vida, e segurando um 44 papo-amarelo gritava:
          - Seu castrado, bêbado inútil. Nem morrendo tu paga o prejuízo. Que a gente faz agora sem aparelho? Quem é que quer trabalhar de bunda vermelha?! Nem morrendo tu paga o prejuízo.
          Joaquim que já estava de peixeira na mão dizia:
          - Atira se tu é macho. Atira e não erra, do contrário eu te pinico de faca. Não sou homem de aturar desaforo, muito menos de um gringo filho de uma égua como tu. Sou homem pra brigar, e também para pagar prejuízo qualquer, nem que pra isto tenha que trabalhar de meia-praça para ti o resto da vida.
          Virgílio interrogou no auge da raiva:
          - Tua acha que cem contos de réis a gente encontra no lixo?
          - Não adianta papo. Você atira ou não?
          Então chegaram outros garimpeiros, e acalmaram a discussão, e se chagava a um acordo. O Joaquim trabalharia de meia-praça até pagar o prejuízo.
          E dali em diante, andaram juntos, trabalharam juntos, e se odiaram mutuamente”.
          Tínhamos lavado a perna ferida, do velho Pernambuco, com salmoura quente, que deitado agora num leito de grande folhas de sororoca, tinha parado de gemer, e delirava. Diremos melhor conversava uma estória.
          - No sertão do Caruaru, o gado morria como moscas por falta de água. Estavam secas todas as aguadas, secos os açudes. Gente também morria de fome e de sede. Depois vinha a peste, e ameaçava acabar com tudo. Se rezava pelas ruas, e também nas estradas do sertão. Se pedia em pregarias, não esbarrando nem um tiquinho na reza. Tudo era inútil, não chovia mesmo. Homens santos andavam a dizer que o mundo ia acabar, por causa de tanto pecado. O governo federal, mandava contingentes de soldados, para proteger os coronéis do perigo do cangaço. Os soldados que chegavam para perseguir os cangaceiros, passavam pelas fazendas das redondezas, matando homens, e seduzindo ou violentando as moças, que ficavam de bucho tufado, e causa disto, morriam ou pariam filhos de pais desconhecidos. Verdadeiros parias, com o decorrer do tempo. Parias isto que eram”.
          Aí falava coisas sem nexo.
          - Minha tia tinha um varrão, que tentou morder minha prima, mataram ele. Minha prima era uma galinha desgraçada. Pai tinha plantado fumo, muito fumo, o coronel queria a metade porque era o dono da terra onde morávamos, e trabalhávamos. Pai danou-se... E pegou fogo na plantação, no rancho, no barracão, na roça toda. O coronel mandou dois capangas, aí eu fiquei órfão.
          Sentados ao redor do fogo Simeão, Virgílio e eu nos entreolhávamos. O velho de repente tinha parado de delirar, sem demonstrar esforço sentara na cama de folha, e como se tivesse cobrado lucidez de um momento para o outro falava:
          - Sabe que mais, acho que esbarrei de odiar você, acho que não sei mesmo, se eu o odiava de verdade.
          Se dirigia a Virgílio. Ninguém respondeu. Ele prosseguiu numa fala cansada, devagar. Mastigando as palavras.
          - Eu disse que um dia eu pagava o prejuízo e vou comprovar a vocês que não menti.
          Virgílio tirava os quatro últimos cigarros, jogava carteira vazia no fogo, acendia esse a seguir, ia levar um para o velho Joaquim, fumava um, distribuia o resto entre eu e Simeão, e falava com voz grossa e rouca.
          _ Que nada de pagamento, nem nada. Seu velho besta... Ta querendo que eu diga? Digo mesmo. Também eu nunca odiei você de verdade. Não queria dar o braço a torcer, isso é tudo. Ta vendo como é!
          O velho continuava devagar, cansado, as palavras saindo empurradas umas pelas outras.
          - Eu disse que pago e pago. Homem tem só uma oportunidade na vida, de ser homem, a minha é esta. Eu ia falar aquele dia que o filho da mãe do caititu me mordeu, mas fiquei danado da vida, tanto da dor como da raiva, por haver pensado que o bicho já estava morto, e quando cheguei perto, avançou em mim e me estraçalhou a perna. Eu ia falar, que justamente lá onde eu atirei no porco, todas essas plantas pequenas que cobre o chão por quilômetros mata adentro, é ipecacoanha, ou poaia com queiram chamar. Isto dá dinheiro, mais que diamante, estão pagando mais de dois contos de réis o quilo da raís, lá em Manaus. Tem mil, muitos mil quilos. É para você belga, pra vocês todos trabalharem de sociedade.
          Aí interrogou:
          - Não acha que paguei a minha dívida?
          A seguir se deitou de novo, gemia, e recomeçava a delirar dizendo coisas que ninguém compreendia. E de repente morria, como um bicho qualquer. Tinha-se a sensação de que tinha morrido antes do tempo.
          Enterramos ele em terra alta. Botamos uma cruz, feita de duas lascas de paxiuba amarrada com cipó. Fizemos café, bebemos, não fumamos pois tinha acabado os cigarros. Embarcamos num batelão pobre que fazia muita água, e continuamos a descer o rio. Três homens. Era menos um.


                                      Guilherme Percello




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