O ARCO
Pai nem mãe tinha, curumim magricela, esmirrado, criado a toa. Ganhou quatro flechas de um pescador de tartarugas, que, dias atrás, aportara-se por um par de dias no barraquinho onde ele morava, com aquela velha maluca a quem chamava de vovó, e que segundo dizia o tinha criado de pequeno, a peso de vinho de abacaba, leite de castanha, e pirarucu salgado. Quatro flechas, retas, de pontas agudas, enfeitadas todas elas com penas de gavião e de tucano.
Queria agora um arco, quem iria faze-lo para ele? Não a velha vovó, que atualmente só dava para colher castanhas que caiam das castanheiras, e para ficar na beira do rio, esperando os pescadores para esmolar um peixe ou mesmo um pedaço de peixe.
Lá mesmo no esteio do barracãozinho onde amarrava a rede de dormir, que fazia muito tempo que ninguém lavava, enterradas na palha da parede, guardava as quatro setas. Vovó velha, nunca vasculhava as paredes do barracão, tinha medo de tarântulas e lacraias. Ele mesmo já tinha sido ferrado por um deles, aquele dia que subiu numa piaçabeira com intuito de tirar os ovos de um ninho de inhambu. Doeu muito, e apesar do fumo verde que lhe botaram em cima do local ferrado, passou quatro dias com febre alta, sonhando, tanto dormindo, quanto desperto, muitas coisas raras e confusas.
Se ele pudesse derrubar aquela pupunheira seca, lá na beira do igapó... Mas quando? Não tinha força nos bracinhos magros, para manejar aquele machado grande e enferrujado que a velha guardava num canto do barraco. Tinha ouvido falar, que, arco bom e duradouro se fazia de madeira de pupunheira.
Quando Ester era gente deste mundo, ele sempre tinha o que queria. Fazia já muito tempo, mas, ainda se lembrava de tudo, de como tinha sido nesse então. De seguro que se ela ali estivesse, ele teria o arco que tanto desejava. Claro está, achava que sabia, que tinha coisa que ele desejava, e tinha desejado, impossível de se realizar, de alcançar.
Como naquele dia que pediu a Ester para tirar com um balde uma estrela refletida lá no fundo do córrego. Isto era, faz já muito tempo mas lembrava bem ainda. Ele sabia que era impossível aquilo. Ora, como é que podia!
Mas o cachorro podia, isto sim, ele podia matar o cachorro. O lobo amarelo, assim que era chamado. Peludo, grandalhão, com a língua sempre de fora. Parecia mais uma suçuarana que mesmo um cachorro. Pulava na gente, com aquelas pataças sujas, cheias de lama. Vivia constantemente a brincar, querendo, cheirar as partes.
Ele tinha dito:
- A gente mata lobo amarelo.
E Ester lhe respondera assombrada:
- Mas por que?
Ele não tinha jeito nem palavras para responder. Então, iam até a jabuticabeira, a fim de apanhar jabuticaba... Ester subia na árvore, ele ficava embaixo a olhar um pedaço do céu entre as folhas, depois as partes dela, que ficava lá em cima de pernas bem abertas, e gritava:
- Olha aqui, curumim.
- Ele já estava olhando. Não queria, mas estava. E tinha raiva do cachorro, que olhava também, e gania pulando feito um louco.
Ester esfregava um punhado de jabuticaba, lá onde a vista dele estava presa, e jogava para o cachorro; e lobo amarelo depois de cheirar, comia. Descia depois da jabuticabeira, sentava num toco, e chamava:
- Vem cá, curumim. Quer uma?
Ele queria, mas sabia. E não queria, mas ia.
- Bota tua mão aqui.
Botava. Sentia aquele calor das partes dela subir por sua mão e se espalhar por todo o corpo. O cachorro pulava em cima dele, ganindo feito louco, querendo morder.
Sentado no barranco alto, via o rio se estender reto e comprido. Uma corda amarrada ao arco do firmamento, de horizonte a horizonte, Vovó velha resmungava entre dentes, os braços descarnados subindo e descendo vagarosos, segurando a mão de pilão. Chuaf, chuaf, Sem ver ele sabia que a velha estava pilando arroz; café tem outro som, e mesmo sem nada escutar sabia-se se alguém estava a moer café. Gostava do cheiro, mas não da bebida, preferia chá de pau preto, ou de casca sagrada, ou mesmo de folha de cafeeiro.
Fechava os olhos e pensava. “Arco é o firmamento, corda o rio que andava reto de horizonte a horizonte. E flecha? Ele mesmo era flecha... O corpo se encompridando, se encompridando... Pisava na corda, e, zum! Lá ia ele lançado no espaço sem limites, subindo, subindo sempre, a escutar o chuaf chuaf do pilão e o resmungo da velha vovó. Lá em cima, bem alto, quilômetros e mais quilômetros de pensamentos, endireitava o corpo e corria horizontalmente. Podia avistar de lá toda extensão verde da mata. Buscava, esquadrinhando todos os recantos... Onde será que ele estava?”
- Desce daí, curumim!
Descia com velocidade assombrosa, caia nas águas do rio, e pulava como bola de borracha.
- Desce daí, curumim vadio, Vai juntar lenha para o fogo. Anda.
Abria os olhos e descia do barranco, falando baixinho.
- Velha desgraçada, maluca, velha.
Perninhas finas, pés descalços, andava vagaroso o curumim, beirando a capoeira, aqui e acolá levantava galhos secos e amarrava com cipó. Fazia isto automaticamente, contra a vontade, com preguiça. Tinha lenha perto do barraco, mas aqui era melhor, afastado, longe do resmungo da vovó. Escutava, na distância, para a banda do nascente. Tinha caçador nas matas... Pensava em Ester. Lembrava. Perguntava-se a si mesmo. Onde estará ela agora? “Corria de novo ao lado dela, arfava de cansaço, e sentia aquele algo esquisito no estomago. Não, não era no estomago, mas embaixo”
- Corre curumim. Tua cansas a toa. Corre, como tu és mole.
E chegavam naquela árvore caída perto do igapó.
- Senta aqui, curumim.
Ela deitava no chão sobre as folhas úmidas, de costas, mirando a copa das árvores, e pequenos pedaços de céu azul.
- Toma uma coisa, curumim. Vem cá.
Ele queria a coisa, mas sabia. Ficava acanhado, mas ia.
- Bota a sua mão aqui curumim. Toca... Aperta aqui.
Tocava, era quente, um quente que se transmitia por todo o corpo.
- Aperta, curumim, aperta...
Apertava com força, o quente estava agora nos pés, na cabeça, na boca do estomago.
- Agora curumim... Beija.
Não queria mas fazia. Ela apertava a cabecinha dele entra as pernas, e falava quase soluçando:
- Morde agora, curumim, devagar mas morde.
O cachorro chegava disparado e pulava neles com aquelas pataças sujas de lama, ganindo, latindo, mordendo.
Depois ele corria até a beira do igapó e lavava a boquinha. Vergonha, nojo? Vergonha? Não, era outra coisa que ele não sabia, desconhecia. Escutava o soluço e o riso de Ester. Odiava lobo amarelo. Lembrava aquele dia que a vovó tinha achado ela, naquela brincadeira com o cachorro, e tinha gritado.
- Espere aí! Menina nojenta, para isto é que tu prestas. Estava precisando de eu esfregar malagueta em teu rabo. Menina cachorra, galinha.
A velha ficou muito brava, parecia um bicho. Ester correu para o mato com o cachorro latindo e pulando atrás dela, e lá ficou até muito tarde.
Foi andando, vagaroso, carregando um feixe de galhos secos amarrados com um cipó. Vovó velha, caduca, catava arroz em uma peneira de arumã.
- Oh guri vadio, preguiçoso, o tempo todo só para apanhar este fanico de lenha!
Não respondeu nada.
- Onde demoraste tanto? De seguro comendo vício*. Ora, se não é.
Permaneceu calado e foi sentar-se no barranco alto, na beira do rio. Nuvens escuras no horizonte, águas leitosas, correndo na corda reta do rio. Fechava os olhos, o corpo se encompridando, se encompridando cada vez mais. Sem relutância pulava em cima da corda. Zum!... Com a velocidade do pensamento, riscava o azul infinito; uma coisa volátil, incandescente, um meteoro a se desmanchar no nada, formando uma nuvem dourada pelo sol poente, entre outras nuvens escuras, que cresciam no arco do firmamento.
Despertou, muito cedo, quando o trino do sabiá rasgando o tênue manto da noite finda, e um coro de guaribas, entoava o áspero cântico do novo dia. Despertou alegre, sem saber por que, mas alegre. Pulou da rede e saiu do barracão, que fedia a urina e alecrim queimado. A velha ainda dormia, quieta, respirando com a boca aberta.
Correu para a senda que leva ao igapó, sentindo o frio do capim molhado, nas pernas e nos pés descalços. Alegre, sem saber por que, muito alegre. Voou um bando de anum, correu espantado um filhote de tatu; e as abelhas, em volta das flores de uxi e piquiá, pareciam pingos de mel, caídos na semi-claridade da aurora.
Corria sem parar. Escutava de novo, ali mesmo ao seu lado, nos ouvidos, no corpo todo.
- “Corre curumim... Corre, tu cansas a toa”. Chegava no pau caído perto do igapó se sentava. “Bota tua mão aqui curumim” Ela estava e o cachorro não estava. “Bota tua mão aqui, curumim” E botava a mão, não sentia nada a não ser o capim e as folhas úmidas. E ela não estava, nem o cachorro.
Foi pela beira do banhado, juntando flores de diversas cores, alegres. Lembrava-se que Ester gostyava muito de flores, de muitas cores. Onde estaria ela agora? Teria subido ou descido o rio?
Aquele pescador de tartarugas, devia ter levado só o cachorro, mas tinha levado também ela. Por que? Para que tinha? Para onde? Rio acima?... Rio abaixo?
- Toma curumim, quatro flechas.
Falara o pescador. E para a vovó.
- Está ali, dona. Uma arroba de pirarucu salgado, um paneiro de farinha, meia saca de arroz, açúcar e café.
Apontava com o dedo para cada objeto. A velha ria alegre, mostrando a boca desdentada.
E tinham ido embora, Ester e o pescador, atrás dele o cachorro, aos pinotes, com a língua de fora.
Catava flores, limpas, de varias cores, cheirosas e alegres; pois ele se sentia alegre, muito,muito, sem saber por que.
Da beira do barranco, uma a uma, iria jogando as flores, brancas, amarelas, encarnadas, cheirosas, à deriva das águas, na corda tensa e reta do rio. Um dia ele encontraria uma delas, e diria.
- Vem cá curumim... corre, corre. Tu cansas a toa, curumim. Vem cá.
Quando voltou, com os braços carregados de flores silvestres, estranhou não ver a velha andando no terreiro. Chamou. Não teve resposta. Entrou no barraco e viu que ela estava ali ainda, como quando ele saíra de madrugada; a boca aberta, sem hálito de vida, branca, fria.
Foi depositando as flores em cima do corpo da velha, até tudo ficar lindo, coberto, branco, amarelo, vermelho, limpo e cheiroso.
Sentado no alto da ribanceira, o curumim via três canos de pescadores que vinham aportando. A corda tensa e reta do rio, amarrada no arco do firmamento, de horizonte a horizonte. Fechou os olhos, e sem esperar a metamorfose do corpo se encompridar. Zás! Pulou sobre a corda, e desta vez, foi descendo, descendo, com ardume esquisito no peito e na garganta, com um redemoinho calidoscopico de cores vivas, dentro de seu cérebro, onde neste momento estava a se condensar todo o seu universo.
Guilherme Percello
Mangaratiba, dia dez de junho de 1964
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