AMEAÇA
Tudo é possível até que se
Prove que não é
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Devíamos levantar cedo, acordar cedo, só alcançaríamos a outra margem daquela faixa desértica antes do próximo entardecer, se partíssemos de madrugada, tínhamos que pegar a Coisa, custasse o que custasse, do contrário, ela nos apanharia.
ELA, a Coisa, tinha sido vista nas redondezas, por alguém que ninguém soube dizer quem era, mas, na verdade, não teve aquele que duvidasse da veracidade da notícia. Esse alguém nos disse:
- A Coisa está de volta, há rastros dela no caminho da vila.
Aí, teve os que insinuaram que devíamos fazer o mesmo que nos anos anteriores, mas, eu lembrei-lhes que os anciões já tinham sido todos oferecidos, e que da última vez, a Coisa recusara um ancião, e que era por isso, devido a esse fato, que a vila em sua minguada população, contava com a presença do velho Nicanor, entre todos nós, (E é bom esclarecer.) o único que não temia a Coisa, nem a discutia.
- Ótimo seria descansar, poder dormir, muito cedo devemos partir. Há certeza que ELA oculta-se do outro lado do deserto.
Falei, ninguém me respondeu. Foi então que nos invadiu o receio, que incapazes seriamos de conciliar o sono. Passaríamos as horas que nos separavam do alvorecer, a esquadrinhar o luto das trevas, o pavor, garras de aço a oprimir a garganta.
- Como pode saber que isso aqui é o deserto? E se eu lhes dizer que é o mar?
O que falava, uns passos além, uma sombra inclinada num poço de sombras. (E é o que éramos, vagas silhuetas, sem contornos precisos, um pequeno núcleo de seres de dúbia identidade).
- E se eu lhes dizer que isto é o mar?
Insistiu a sombra dentro das sombras. Para que tivéssemos a sensação de ouvir, (ACHO QUE TODOS ALÍ REUNIDOS). O bater da mareta nos rochedos, o sopro do vento leste, o fru-fru das folhagens das palmeiras, a sirene de um navio perdido na escuridão. E percebemos num fugaz relance, uma lua, grande disco sem vida, a surgir de um horizonte de pesadelos.
Foi então que telepaticamente combinamos, ficarmos de mãos dadas, e estreitar nosso círculo, para sentirmo-nos mais protegidos. E pusemo-nos a pensar todos a um tempo, na destruição da Coisa, e foi tal a força de nossos pensamentos, que os podemos ouvir chicotear impiedoso, como as areias do deserto, empurradas pela ferocidade do SIROCO.
2
Tudo começou cinco anos atrás, com o desaparecimento de uma moça, filha da família mais proeminente da comunidade, que até esse então pacífica e ordeira, progredia. A moça sumiu numa manhã de quarta feira, e foi em vão que percorremos as estradas, e vasculhássemos as matas das redondezas procurando-a, inútil foi que em coro gritássemos o seu nome, como resposta, obtivemos só o eco que nos era trazido pela leve brisa que soprava do suleste. Foi encontrada três dias depois, Sábado de glória, num graneiro abandonado, já em ruínas, ao norte da nossa vila. Encontraram-na morta, porém tal o estado de conservação, que diria-se que era alguém a dormir placidamente, que de um para outro momento poderia despertar e nos perguntar: - Que horas são? – Tanto que, os familiares foram adiando a data do sepultamento. Lá ficou ela deitada num tálamo florido, num compartimento que tinha a peculiaridade de possuir quatro portas, sul e norte, leste e oeste.
Desfilou sem interrupção a comunidade, ante o cadáver da morta-viva, guardando rigorosa ordem. A fila dos anciões e as crianças, a entrar pela porta norte e sair pela porta sul, enquanto os jovens e os de meia idade, atravessavam o recinto do nascente ao poente. Todos em ordem estritamente geométrica, sem que a rotina fosse quebrada uma só vez, até que alguém plantou a semente da dúvida, quando disse, assim porque sim, sem ninguém ter interrogado:
- Ela é uma encantada...
- Uma encantada?
Coreou a comunidade toda, e não nos ficou a mínima sombra de dúvida, ela tinha sido encantada, dentro dela germinava a COISA.
Decidimos por unanimidade, que a única maneira de desfazer-nos de aquela aberração, era cremar a morta-viva. E cremamos a mãe juntamente com ela, que teimosamente aferrava-se ao corpo da filha inânime, pois nos sentíamos apanhado pelo temor da Coisa ter tomado posse de seu corpo.
A noite inteira ardeu a enorme pira funerária, os dois corpos como que a alimentar as labaredas, que punha nas trevas, violáceos e fugazes desenhos fantasmagóricos, que se atraiam, qual se aspirado por invisível sorvedouro.
Quando raiou o dia, todos nos empenhamos na tarefa de remover as cinzas da fogueira, arrojaríamos nas águas do rio, para que a correnteza levasse a COISA para o mar. Mesmo assim ficou-nos o receio de um de nós ter sido contaminado pela COISA. Receio que agravou-se com o desaparecimento do pastor da igreja, o único que tinha se oposto a idéia da cremação dos corpos. O encontraram intacto, apesar da busca ter durado oito dias e oito noites sem interrupção. De joelhos, as mãos juntas como a orar, a decomposição negando-se a tomar conta de sua matéria. Foi assim que o encontramos.
- Outro encantado!
- Quem... Quem... ?
- O pastor... De nada valeu-lhe a beatitude.
- Não... Parece que de nada valeu-lhe.
A partir desse momento, DESSE INSTANTE, PUDEMOS SENTIR OS GRANDE E PEQUENOS MEDOS, IR APERTANDO, APERTANDO, COMO UM CINTURÃO A NOSSA VOLTA... NOS ACURRALANDO.
Depois, cada um desconfiou do outro, todos e quaisquer indivíduo daquela comunidade podia ser a COISA, ou estar a ela mancomunado. Foi assim que nos tornamos excessivamente esquivos, fechando nos cada qual numa concha de hermetismo, que nos aproximava do elélico primitivismo de nossos longicuos ancestrais.
Os anciões e os meninos tinham criado um mundo a parte, que só a eles era-lhes dado interpretar. Mais de uma vez os surpreendemos a confabular, herméticos e misteriosos, o que imaginamos tratar-se de nossa imediata destruição.
“VÃO NOS PEGAR”. Pensamos, e sabendo que algo devia ser feito a respeito, pusemo-nos a construir um grande curral, e para lá levamos os nossos inimigos, aos quais, como medida preventiva, quebramo-lhes pernas e braços.
O curral, ampla e funda escavação circundada por alta paliçada, que algumas das mulheres de nosso núcleo, as quais ainda restava uma ponta de sensibilidade, escalava para arrojar restos de alimentos no fundo do escavado, com que os malditos aleijados, mal a mal saciavam o apetite. Um planger monótono e enervante saturava a atmosfera das redondezas nos tirando o sono.
Foi uma daquelas mulheres que, com lancinantes gritos, o pavor estampado no rosto, nos alertou:
- FUI JOGAR OS RESTOS NO CURRAL, EU VI... VI POR CIMA DA PALIÇADA... EU VI SIM, SÓ O VELHO NICANOR ESTÁ LÁ... OS OUTROS FORAM SE TODOS... OU ALGUÉM OS LEVOU.
Nada comentamos, sabíamos que a coisa tinha feito uma grande presa, provável que doravante nos deixasse em paz. Ou seriam eles uma parte da COISA? Ou ela em si multiplicada em dezenas de crianças e anciões, a nos espreitar agora dos quatro pontos cardeais, a singir-se em circulo sobre nós, como um anel de angustia e desespero?
Hoje de madrugada, antes de partirmos, decidimos por fim na vida do velho Nicanor, e um de nós ficou a dar-lhe facadas no ventre, e o velho com um sorriso maroto, olhava-nos, como se não fosse a ele que esfaqueassem, até que alguém lembrou-nos que o velho podia ser um imortal. Então a um tempo exclamamos:
- Uma estaca... Uma estaca no coração.
Porem faltou-nos tempo, URGIA PARTIR ATRÁS DA COISA. Ou seria que todos estes preparativos, que tínhamos feito, era só para fugir da COISA.
3
Agora estamos aqui, na beira desta faixa desértica, a esperar um novo amanhecer, se é que vai ter um novo amanhecer, e a voz que vem de uma sombra enfurnada em sombras, torna a erguer-se, para que tenhamos uma fugaz visão de um fictício luar, a flutuar no nada de nossos próprios seres, e escutamos, vindo de algures, o som da mareta a bater contra os rochedos invisíveis, a sirene de um navio a errar nas densas brumas, o vento através das folhas de uma palmeira, E é então que temos absoluta certeza do enorme abismo que nos separa... QUE SEPARA OS HOMENS.
E a voz vinda de nenhuma parte:
- E SE EU LHES DIZER QUE ISTO AQUI PODE SER O MAR?
E todos nós entendemos que é chegada a hora de deitar a procura do sono, porque Ela está aqui, AQUÍ entre nós, até que raie um novo amanhecer, E POSSAMOS COMPROVAR, SE DE FATO ESTAMOS NO DESERTO OU NA BEIRA DO MAR.
Guilherme Percello
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