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Tempo
Pedro Alexandre

Era uma tarde de outono, como todas as outras, onde os ventos pareciam dançar em meio a nuvens e estradas vazias, onde o céu nublado havia encoberto o sol, deixando um rastro melancólico e ainda molhado pelo orvalho que insistiu em se agarrar as plantas e pedras que beiravam aquele caminho sem fim.
Deitado sob as sombras de uma velha arvore Gameleira Branca, repousando sua cabeça nas longas raízes, estava um homem ferido.
Aparentando ser um soldado ferido em batalha, com suas têmporas rasgadas, mãos e pés ensanguentados, peito perfurado e uma série de necroses circundando suas feridas, o homem transpirava em um sono agonizante de dor e delírios.
Eis que beirando a estrada, surge em caminhante, em vestes brancas e com um cajado apoiando o peso de sua idade. O Velho se aproximou do Homem, comovido pelas circunstancias em que ele se encontrava, o acolheu em seus braços, e com um velho cantil de couro, deu agua limpa para o Homem beber.
Voltando de seus súbitos delírios, o Homem abre os olhos e se depara com um completo estranho o acolhendo. Então observando as roupas brancas e as rugas da longa idade, ele diz “Obrigado doutor, mas irei morrer em breve, poupe sua agua e seu tempo”.
Retirando um pano branco e o umedecendo com agua, o Velho limpa os ferimentos das têmporas do Homem, surgindo um longo rasgo, com sangue coagulado, demonstrando ser um antigo ferimento. E o Velho pergunta “como surgiu esse ferimento bom homem?”, o Homem lhe responde “durante uma emboscada, onde meus velhos pais foram assassinados por homens encapuzados, um dos cavalos me deu um coice, abrindo essa ferida. E nos 15 anos que se passaram, todos os dias lembro de meus velhos pais, e o sangue jorra como uma fonte”.
Enquanto o Homem contava a historia daquele ferimento, o Velho limpou todo sangue e pus ali acumulados, ao terminar de ouvir aquela narrativa, se levantou e colheu duas flores silvestres, as mais lindas que pode encontrar naquela beira de estrada. Entregando-as ao Homem, o Velho disse “plante essas flores na porta de sua casa, e toda manhã dedique a beleza delas aos que já partiram, deixe que o sentimento da perda se transforme em algo belo, com vida, com raízes, que possa brotar a cada nova estação com uma beleza singular, assim como é a vida.”
O Homem aceitou-as, esticando suas mãos sujas de terra e sangue. Ao vê-las, o Velho tomou-as em suas próprias mãos, limpando a terra molhada, lavando-as com agua limpa e exibindo os calos e bolhas abertas, e questionou ao Homem de onde surgiram tantos calos e bolhas, então o Homem respondeu “com uma enxada e uma foice, nos campos de colheita, de onde tirei meu sustento a vida inteira, trabalhando do raiar do dia até o ultimo raio de luz brilhar no céu. Foram longos anos sem descanso, muita dedicação e pouco reconhecimento. Adoeci e não pude mais trabalhar, mas as bolhas continuam a sangrar”.
O Velho mais uma vez lavou aquelas mãos tão machucadas, e sem nenhuma explicação, acendeu uma pequena fogueira, onde colocou duas pedras no meio do fogo e ficou olhando para elas por certo tempo. O Homem cochilou enquanto o Velho olhava para as pedras, então em um súbito momento, o Velho retira as pedras com a ajuda de pequenos galhos e as coloca nas mãos do Homem. Em uma explosão de dor e em meio ao cheiro de carne queimada, o Homem tenta desesperadamente jogar as pedras fora, mas o Velho segura firmemente suas mãos em volta das do Homem, não deixando alternativa, apenas a carne sendo queimada. Aos poucos o Homem deixou de sentir as dores e em um tom elevado de voz agride ao Velho “o que é isso? Seu velho louco! Minhas mãos que trazem o sustento, agora estão queimadas, como poderei trabalhar?”. E o Velho responde “assim como o alimento quente que o trabalho lhe proporcionou, é o calor do suor que um dia trocou nas colheitas. Suas feridas estão cauterizadas, não há de sentir dor pelo trabalho efetuado, não há de sentir remorso pelo suor derramado, não há de sentir pena de si pela falta de reconhecimento. Afinal, a comida nunca lhe faltou, o teto nunca ruiu sob sua cabeça, assim como a cama macia lhe foi proporcionada pelo trabalho honesto e digno. De hoje em diante, poderás trabalhar, e nunca há de esquecer de que as feridas de orgulho são as únicas que impedem o alimento que te sustenta, chegar a tua mesa.”
O Homem se calou diante de sua fúria, enquanto o Velho limpa seus pés e pergunta “o que houve com seus pés bom homem?”, e ele responde “são dos caminhos da vida doutor, estou cansado de tanto andar por estradas difíceis, cheias de pedras e espinhos”.
Retirando trapos de sua bata, o Velho enrolou os pés do Homem e disse “enquanto tens pés, pode caminhar pelas estradas da vida, mas não deixa de se cuidar, prestando atenção onde pisa, no chão que te guia. O Homem que caminha, tem a experiência que o mundo pode proporcionar”
O Homem se levanta, sentindo suas forças revigoradas, com quase todas as suas feridas curadas, limpas e tratadas, então questiona “doutor, pode me ajudar com essa ultima ferida? Tive uma flecha atravessada no peito enquanto fugia dos homens da guarda do pai de minha amada. Tivemos um amor proibido e quando seu pai descobriu, mandou seus homens me buscarem, fui atingido e nunca mais consegui remover o corpo da flecha que ficou preso em meu peito”.
O Velho retira de um bolso uma pequena quantidade de folhas, macerando-as com agua, cria uma pasta que aplica no peito do Homem, ainda ensanguentado, e diz “o amor é o mais belo dos sentimentos, jamais fuja dele e encare os caminhos que ele lhe trouxer, sejam bons ou sejam ruins. Toda sabedoria que o amor traz, lhe dá oportunidade de mudar tua vida, seja com um sorriso ou com uma dor. Os homens da guarda o atacaram ao vê-lo fugir, pois não sabiam quais eram as acusações que o pai de tua amada fizera. Ao perder a oportunidade de amar, machucastes dois corações, fê-los sangrar sem dar chances para se unirem. A cura está dentro de ti, ame-se, erga-se, enfrente suas escolhas, pois a força produzida por um coração pulsante, abstém todas as dores do mundo.”
Ao término do discurso do Velho, lágrimas escorriam dos olhos do Homem. Com suas forças renovadas, o Homem diz “Obrigado doutor, não tenho como lhe pagar, mas serei eternamente grato pela cura e pelos ensinamentos”.
O Velho sem responder apenas vira de costas e segue seu caminho novamente pela estrada, sem saber o que falar, o Homem diz “Doutor, qual é o seu nome?”.
E o Velho responde sem olhar para trás “Tempo”.

Pedro Alexandre


Biografia:
Só mais um cara qualquer que brinca de juntar palavras.
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