NATAL CEM ANOS DEPOIS.
Em 6 de novembro de 2004.
Ano de 2020. Natal. Às 4,30 da manhã. Acordo geralmente as cinco, seis. Hoje despertei as quatro e tive a idéia de escrever sobre os meus cem anos. Sem compromisso nenhum, uso aproveitar esses toques espirituais e escrevo coisas simples. Ocupo o tempo.
Como o tempo passa! Rápido que a gente nem vê. Nem percebe. Ou não tem tempo de ver? Não sei. Eu, por exemplo, não tenho tempo de pensar no tempo. Ou fujo, espanco-o do pensamento, escapo dele pelo temor de enfrentar a realidade? Não sei. Sei que não vejo essa passagem rápida, essa acomodação do tempo, bomzinho, conformado com tudo que se passa à sua frente sem sequer olhar para traz, para o passado. Os homens que contem do que se foi, da história. Ele não, ele, o tempo, não está nem aí para o ontem. Só olha para o agora, para o instante que vive e empurra a gente na vida. É só empurrando os dias na cara da gente.
Parece que foi ontem e não foi, foi há 100 anos. Justo, justo, cem anos. Vou botar letras no lugar de algarismos. Letras são mais vistosas e agradam melhor à vista das pessoas. Parece que foi ontem... Minha mãe contava. Eu ouvia silenciosamente e acumulava na memória. Nasci na roça, em uma pequenina casa, que mal passava de um rancho de taipa, coberto com velhas telhas aproveitadas de construções demolidas. Minto! Aliás, me expresso mal. Não de construções. De uma construção única - a casa de meu bisa Natalino, que demolida, o material se dividiu com quatro netos, sendo um deles meu pai. A parteira que me pegou, ergueu os braços e me pôs no alto gritando:
- É macho!
- Macho, meu Deus, macho! Meu segundo filho também é macho...
Aí, meu pai, ouvindo o diálogo, entrou porta adentro de coração exposto:
- Macho, outro macho! Viva meu Deus, já são dois homens para me ajudarem a tocar a fazenda e se encaminharem como gente na vida. Gente... Não, não. Não quero meus filhos bichos da roça. Meus filhos vão ser doutores. Se houver mulheres, doutoras todas.
Fazenda... Fazenda eu escrevo, porque quando me entendi, já o era. Nos primeiros tempos de meu pai, aquilo era mal uma roça, uma pequena roça com espaço para plantar milho e feijão. O milho e o feijão da subsistência. Um pedaço de terra da antiga fazenda do bisa que foi dividida por quatro. E voltaria a ser a mesma fazenda, graças à labuta de meu pai, dia e noite, todo dia, todo dia. O espaço era um nada para tantos e ele acabou comprando uma parte hoje, outra amanhã, até que reincorporou as quatro. Meu pai... Que homem! Como lutou e como venceu! Como foi feliz e deixou os filhos todos bem encaminhados, todos doutores. Do jeito que desejava e queria. Os filhos e a filha. Só era no que pensava – ter filhos doutores, não roceiros, não fazendeiros como ele. Ah, meu pai, que saudade. Ainda hoje, que saudade! Cem anos depois! Que saudade! Você e minha mãe são inesquecíveis. Hoje os tataranetos estão aí, eu lhes contando as histórias de vocês, tão bonitas, de tanto amor, de tanto desprendimento! De tanta vontade de ver os filhos crescendo e sendo importantes. Fomos quatro – três homens e uma mulher. Os tataranetos ficam bestas de saber dessas coisas. - Que vovozão nós tivemos no passado...
Mas, eu estou esquecendo de contar sobre o Natal de hoje, que é a razão desta crônica. Tanta coisa na cabeça... Tanta coisa bonita, boa de contar e recontar, que me escapole o agora... Cem anos, gente, cem anos. Não são cem dias, são cem anos! Era o dia 25 de dezembro de 1920. De madrugada.
Os galos cantavam ao Jesus Menino e nascia outro Jesus. Este Jesus aqui, que sou eu, nem devia ser escrito com J maiúsculo, de tão pequenino que é, aliás, que sou à vista do outro, o Jesus Deus Nosso Senhor, Deus vivo filho de Deus Pai. Aí parteira (parteira... Parteira coisa nenhuma, aparadeira!) perguntou:
- Já pensaram no nome?
- Pensar? – falou meu pai – pensar! Que pensar! Dá para pensar coisa nenhuma! Só pode se chamar Jesus. É Jesus. Nasceu na madrugada de Jesus Deus Nosso Senhor. – E virando-se para mamãe – não é Nanoca?
- É, só pode ser Jesus.
E aqui estou eu, cem anos depois, um jesusinho de nada. Cem anos, gente cem anos. E dizer que foi ontem...
Vou contar essa de agora, deste Natal que está se passando debaixo de festas especiais com presenças ilustres – prefeito, governador, deputados, vereadores, o Senhor Cardeal Arcebispo... Na Antigüidade as pessoas não olhavam isso não, só os familiares percebiam que um ou outro chegava aos 90, 100 anos. Na atualidade, como há muitos acima dessa faixa etária e todos a desejam, valoriza-se muito, muito, a longevidade. As autoridades governamentais buscam sempre a melhor solução para... Para... Sem dúvida pensam em si! Quem não quer viver mais, viver muito?
Imaginem quem vi hoje e fiquei pasmado de ver. Ainda viva, essa menina! A Gildete. Aliás, doutora Gildete. Velhinha... Não, não sou eu apenas que venho de longe. Há outros. A Gildete, por exemplo. Eu entrei no consultório médico para os exames de rotina que aqui fazemos mensalmente. Uma avaliaçãozinha de saúde física e mental. De mental especialmente. Os médicos têm muita preocupação com a saúde mental dos idosos. Idosos? Eu escrevi idosos? Idosos coisa nenhuma, anciãos! Anciãos ou macróbios? A partir de que idade se é idoso, quando se chega a ancião ou quando nos chamam de macróbios? Os dicionários que explicam as coisas, que as definem, não dizem sobre isso claramente. Muito velho... Muito velho, é uma definição simples demais. Ou não é definição nenhuma... A partir de quando se é muito velho? Eu quero é demarcação de tempo. Não existe o tempo? E ele não enferruja a gente, não rói os músculos lentamente? Então, é necessário que se demarque no tempo, a idade dos idosos ou de terceira idade como alguns vaidosos falam, a idade dos anciãos e a idade dos macróbios, para não andarem por aí detratando da gente: “Macróbio”...
Leio em um escritor um texto mais ou menos assim: “macróbios se arrastando”. Disse isso o Graciliano Ramos, que foi meu contemporâneo pouco mais velho e dormiu cedo: “macróbios soturnos passam, trôpegos, trêmulos na morna calma da tarde abrasadora” (está no Aurélio). Então, seja – trôpego, trêmulo... Velho sem saúde, diria eu melhor. Afinal o que somos quase todos aqui - gente acima dos oitenta? Posso entender-me como ancião - tudo bem. Macróbio não, porque não sou trôpego e trêmulo, não ando cambaleando, caindo...
A gente aqui tem uma programação um tanto puxada para longevos. Mas necessária, dizem os médicos. Levantamos cedo da manhã. Às seis estão nos embalançando e só dispensam quem apresentar algum problema de saúde, fraqueza da idade, essas coisas. Vou agora definir eu – os macróbios. Só dispensam de levantarem-se às seis horas os macróbios. Fazemos uma caminhada e entramos na piscina para um mergulho e umas braçadas. Em seguida o banho e a primeira refeição, bem farta, por sinal. Frutas, sucos e leite. Não café. Café não se consome aqui. A orientação médica o proíbe nesta casa. Ninguém, nem os servidores e serviçais, ninguém. Proibido café e pronto.
Mas eu ia dizendo o quê? Ah! Que encontrei a Gildete. Eu a conheci, ia aí pelos meus anos 42, 45. Ela devia estar pelos 18 ou 20. Estudava para enfrentar o vestibular à faculdade. Naqueles tempos o vestibular era uma barbaridade. Depois eu falo. Duas irmãs. Ela e a Genalda. Os pais residiam no interior do estado e elas se hospedavam em um pensionato para moças, coisa muito comum então. Os rapazes e moças nunca ocupavam a mesma hospedagem. Era pensão ou república para rapazes e pensionato para moças. Havia até os pensionatos dirigidos por freiras, especialmente para meninas. Era a regra para os moços do interior que podiam estudar na capital. Só nas capitais havia escola superior. Eram as federais. Mais adiante viriam as estaduais no interior. Não havia escolas particulares. Não davam lucro, as leis econômicas eram outras. Mais adiante, a partir dos anos setenta do século passado, por aí assim, as particulares apresentavam-se em toda biboca, para pegar dinheiro e oferecer diploma aos vaidosos que tinham pais tolos - ou igualmente vaidosos. Estudar, nesses tempos era difícil. As faculdades não custavam. Em preço, quero dizer, não eram pagas. Mas custavam em despesas de hospedagem para os de fora da capital. E porque as vagas eram limitadas, espichava-se o concurso vestibular um horror. Muito preparo ou muita sorte. As duas coisas. Quase tudo isso mudou. As leis passaram a ser mais sérias, apesar de ainda políticas e pior, ainda burladas. Ainda e sempre, ontem como hoje. As escolas particulares de hoje estão ensinando e são algumas delas melhores que as públicas. São poucas ainda e custosas.
Pois bem, eu dizia da Gildete e da Genalda. Eram amigas de meus filhos na mesma faixa de idade, também candidatos ao exame vestibular. E foi regra em minha casa, meus filhos trazerem os companheiros para fazerem banca com eles, estudarem juntos. Lá apareceram as jovens com a minha filha mais velha. As três preparavam-se para a área de saúde. Naquele ano – o ano do vestibular das três, nem me lembro direito, parece que 1964 ou 65 -, a universidade Federal da Bahia... Já havia universidade? Devia haver. Nem sei. Acho que não. O certo é que a área de saúde agrupou-se em um vestibular único. Menor custo talvez, menor trabalho, quem sabe lá o que vai pela cabeça dos outros. Inventou-se um vestibular único, a história é essa. Medicina, odontologia, farmácia... Havia mais faculdades na área? Eram a Escola de Medicina, a Escola de Odontologia e a Escola de Farmácia... Não, não! Tinha a Escola de Enfermagem também! Antes era um vestibular para cada escola, isto é, cada qual realizava o seu. Inventou-se naquele ano aquele único. Os de melhor nota, até o limite das vagas, foram para medicina, um segundo grupo de notas até o número de vagas para odontologia, um outro grupo para farmácia, o último para enfermagem. E ponto final. Pois bem, a Gildete estava aprovada para medicina, como queria, a Genalda para odontologia, como não queria. E estudaram conforme a música. Experiência mal sucedida. Houve muita reclamação e muita desistência. Aluno que não desejava enfermagem foi aí classificado. Aluno que não queria farmácia, aluno que não queria odontologia... Uma lástima! No ano seguinte e a partir daí, retornou-se ao vestibular diferenciado. Quem quisesse fizesse sua escolha e tivesse oportunidade ou não, conforme a nota e o número de vagas. Não era dizer que o aluno fosse reprovado. Não! Era dizer que a nota não dava para alcançar o limite de vagas preestabelecido. Como ainda hoje.
Pois bem agora a Gildete. Velhinha... Cabelos brancos, brancos, sem tintura. Teria seus... Que idade? Vamos calcular. Eu, que tinha, no seu tempo de vestibulanda 45, estou agora nos cem. Ela, que andava pelos vinte então, deve ir... Velhinha, velhinha. E no consultório médico, estetoscópio e tensiômetro na mão para medir as pulsações e a pressão aos pacientes. Pacientes...
- Gildete? É você mesmo, menina? E ainda trabalha? Ótimo, isso, ótimo.
- Menina, eu, o senhor diz? Menina? Pobre menina. Já emplaquei os 85. Trabalho sim. Não, trabalho remunerado. Mas trabalho social participativo. Aliás, nem sei! Talvez seja remunerado, sim, meu trabalho. Moro aqui e o pensionato não me custa pagamento algum. E o senhor, está aqui há muito tempo? É a primeira vez que aparece neste consultório...
- Bem, é porque me indicaram outra pessoa, um clínico. E ele hoje, no meu dia de rotina não veio. Fui encaminhada para cá.
- Que bom que isso se desse. Só assim reencontro um velho amigo. Que tempos bons, Dr. Jesus, que temos bons. E passou tão rápido... Os caminhos da vida separam a gente. Nem sabia do senhor. Que bom! Que bom! E a dona Gazula, já partiu? O senhor está só... A Soraia, como vai?
- Pensava que eu já havia emborcado! Não! Estou aqui, vivinho da silva! Todos partiram, todos. Até neto já seguiu na minha frente. Só eu estou inteiro. E cuide bem em usar o seu estetoscópio para si mesma, se não também se muda e eu continuo em pé. São Pedro é um velho amigo, que nunca me falta. Me garantiu cem anos. E fecho-os hoje, neste Natal. Estou completando os cem. Nas orações deste dia de centenário vou conversar com ele. Se me conceder mais uns cinco em boa forma...
- Em boa forma o senhor está, vejo pela palestra, que parece a mesma pessoa dos 40. E era um danadão! Bem que andou querendo cortar as meninas...
- Olha, menina, deixa de papo. Vamos ver isso, que tenho hoje uma fala com São Pedro. Antes, me diga - e a Genalda?
- Está bem e igualmente mora aqui. Ficamos duas solteironas. Já não temos familiares próximos. E, sem renda suficiente, dependemos desta casa para uns restos de vida. Pagamos a hospedagem com nosso trabalho. Felizmente ainda podemos trabalhar. Mesmo a Genalda, em seu trabalho artesanal de dentista, praticamente faz tudo inerente à profissão. Está para fechar os 80.
- Pois menina...
- Vamos ver isso. Tire a camisa, por favor, os chinelos e deite aí nessa cama. Ainda se movimenta bem? Dá uma caminhadinha e uns mergulhos?
- Prontamente, amiga, prontamente. Sem qualquer problema. Sem gripe, sem dor de cabeça, sem enxaqueca...
A conversa foi longe. Tantos anos depois - foi longe e continuará certamente em outras oportunidades. Mas não dá para imaginar o que será amanhã nem dá para registrar aqui. Se não, não fecho a crônica.
Vivemos em um hotel clínica, com acomodações privativas e coletivas, acomodações para pessoas com problemas de saúde, equipamentos de urgência e até para cirurgias de emergência. Uma coisa muito boa. O custo é salgado. Mas há não só os que pagam com os seus próprios recursos, como é o meu caso. Há também os que são financiados com subsídios de governo e mesmo de associações e empresas privadas, que, neste caso, contam com redução de impostos. É muito bom o imóvel, as acomodações são ótimas, as instalações, tudo. Tem uma belíssima biblioteca. Cada um de nós que moramos aqui e tínhamos livros, os doamos a Instituição, que somando tudo isso e adquirindo sempre mais, forma uma bonita e rica casa de livros. Os meus, por exemplo, estão todas ali e eu os corujo sempre, como se coruja o filho pequenino. Meu apartamento tem uma sala gabinete e um quarto amplo, televisão, som e meu computador, indispensável. Continuo escrevendo. Sem compromisso, como sempre, o que me vem à cabeça.
Saí do consultório da Gildete e vim repousar e falar com São Pedro, meu protetor. Não tive coragem de pedir mais cinco anos, fiquei com vergonha. Vou deixá-lo a cavalheiro para me chamar na hora que bem quiser. É verdade que gosto da vida. Mas... Não posso ficar para sempre... Neste momento fecho esta crônica para me preparar para as festas de Natal. Muito bonitas. Teatro, declamações, música clássica e moderna, champanhe, brindes, discursos... Coisas para alegrar o espírito da gente. A Missa vai ser celebrada pelo Cardeal Arcebispo.
Aparecem-me, neste momento, a Gildete e a Genalda. Esta, cinco anos mais moça que a primeira está serelepe... Bonitona mesmo! Cabelos bem cortados - corte moderno, tinturados... E até charmosa! Se fosse ao meu tempo, ela moça eu maduro não me apareceria assim, com gestos de moça namoradeira. E eu bem que a desejei! Tempos, tempos! Faltaram-nos foi coragem e oportunidade. Mais coragem do que oportunidade. Ah Genalda do meu tempo de homem... Quase... Quase...
- Vamos, meninas, vamos participar das festas. Afinal é o Natal que todos festejamos e é o meu dia, que eu não falo a ninguém... Vamos voltar aos nossos tempos, brincar, cantar, declamar...
- Vamos - dizem as duas ao mesmo tempo. Mas, quanto ao seu dia... Saiba que todos sabem. E será, também saiba, festejado e muito. Seu nome vai ser cantado e decantado nos cem janeirinhos! Completar cem anos, meu amor, só isso é motivo para muita festa e muito champanhe. Vamos lá, que nós também queremos chegar a isso. Aliás, todos aqui o queremos. Até o senhor Cardeal! Veja que ele está aí eufórico, falante, avinhado...
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