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Confissões de Morte
Fernando Rodrigues dos Santos

Resumo:
Padre Ernesto ouviu a confissão mais assustadora de sua vida. O confessor, Constance, transformou sua vida e o seguiu, levando-o ao ato mais violento de toda a sua vida.

Aos vinte anos eu me tornei padre. Aos vinte e três, fui excomungado, preso e internado num sanatório. Aos 45, me casei e tive uma filha. Aos 57, eu a matei.
Logo nos primeiros anos de sacerdócio eu conheci um homem chamado Constance. Este homem passou a me acompanhar, tanto em sonhos quanto ao meu lado. Aprisionou-me e roubou tudo o que me era caro. Inclusive minha sanidade. Sua influência me transformou num assassino. Desesperado e ansiando por libertação, realizei um último serviço sujo, às suas ordens, mas acabei por me aprisionar ainda mais. Fui ingênuo. Deixei-me enganar pela vil criatura. Eu deveria saber que não haveria salvação para mim. Não depois de ter servido como instrumento de morte e sacrifício.
Escrevo essas linhas apreensivo, pois, ainda que saiba de meu destino final, sinto meu coração gelar a cada amanhecer. A morte de Emily foi há 8 anos e a lembrança do que fiz a ela... E às outras pessoas que me procuraram buscando o perdão de Deus, me assombra por todas as horas do dia e da noite. Venho buscando a morte em cada esquina, entregando-me a qualquer um que seja capaz de extirpar dessa terra o animal que me tornei. Contudo, alguma força, se do bem ou do mal não sou capaz de dizer, tem me privado do derradeiro mergulho nas trevas. Sei que, ao final, estarei na presença dele e lá ficarei eternamente.
As linhas que se seguem são um relato, ainda que sem apego aos mínimos detalhes, dos acontecimentos que vieram após o surgimento de Constance em minha vida pela primeira vez, culminando na morte de minha criança.

Naquela noite, uma de minhas primeiras como pároco sênior, após a última missa do mês de agosto, ele surgiu. A igreja já estava vazia e o silêncio na nave fazia ecoar alto o som de cada passo. Do púlpito, observei sua aproximação. Um homem alto, com cabelos à altura dos ombros. Eu estava acostumado com todo o tipo de gente, entrando e saindo da igreja. Naquele momento não me era possível supor que aquele homem e suas palavras iriam mudar minha vida para sempre.

- “Padre Ernesto.”

Sua voz retumbava pela nave e me chegava aos ouvidos como se estivesse sendo transmitida por poderosos fones de ouvido.

- Sim. Em que posso ajudá-lo? - respondi. Meus ouvidos começaram a zumbir. Um zumbido fino, como o som de garras arranhando um quadro negro.

- Espero não estar sendo inconveniente. Preciso de seus conselhos. Quero me confessar ao senhor.

As confissões eram tomadas, geralmente, antes das missas. Contudo... Não pude negar. Pra falar a verdade... Não consegui negar.

- Claro filho. Por favor, me acompanhe ao confessionário.

- Me chame de Constance, padre.

Aquele homem de sobretudo, cabelos longos e negros como a noite, voz retumbante, me disse coisas... Coisas que vão além da compreensão humana.

Permaneci com os trabalhos religiosos durante alguns dias. Perturbado, procurei esquecer aquelas palavras e aquele homem. Em meus aposentos, nos fundos da Igreja, procurava não sucumbir a tudo aquilo, mas... Mas não fui capaz. Me perdi na escuridão, revoltado. Aquela confissão me fez odiar o homem da cruz e suas mentiras. Foi o início de minha derrocada.
Sentia-me abandonado por Deus. Constance passou a conviver comigo desde então.

Nos primeiros dias realizava meus trabalhos religiosos sempre que me solicitavam, como os batismos e o recebimento das confissões, porém, minha mente girava em outra direção. Não estava mais a serviço de Deus.

O definitivo mergulho na escuridão se deu no confessionário, onde tudo havia começado. Uma mulher me procurou, buscando confessar seus pecados e o perdão de Deus. Sentou-se e iniciou sua ladainha.

- Padre, estou envergonhada de minhas ações. Vim buscar o perdão de Deus.

Suas palavras, quase que sussurradas do outro lado da grade do confessionário, subiam e invadiam o cubículo como fumaça... Inebriando e turvando minha mente. Comecei a sentir um calor inflamando meu corpo. A mulher prosseguiu com seu relato.

- Casei-me há 14 anos e sempre fui uma esposa dedicada, sabe. E sempre respeitei meu esposo. Jamais quis magoá-lo... O senhor entende?

A voz daquela mulher começou a machucar meus ouvidos. Aos poucos fui entrando num estado de impaciência. Queria que ela terminasse logo aquela ladainha e fosse embora.

- Sim, minha filha, me diga o que houve para que Deus possa dar-lhe sua penitência e perdoá-la.

A mulher calou-se por um momento. Por certo, percebeu minha ansiedade, embora eu tentasse não de mostrar. Gotas de suor já desciam por minhas costas, traçando uma linha fina e gelada como se uma navalha riscasse minha pele.

- Serei breve, padre. - Calou-se por mais alguns segundos, como se tentasse retomar a linha de raciocínio.

- Bom... Tudo estava bem entre eu e o Raimundo. Até que conheci o Marcelo. Ele é o dono da padaria aqui do bairro, sabe. Me envolvi... E acabei por trair meu marido. Eu não queria padre... Não queria. Mas acabei cedendo aos galanteios do Marcelo... Meu Deus, como fui burra! Nossa, padre, que vergonha! - a mulher começou a soluçar. Chorou.

Minhas orelhas congraçaram a queimar. Senti uma força estranha me tomando, se inflando, me aprisionando. A consciência do que estaria por vir veio se arrastando, como uma serpente, enrolando-se e cravando as presas venenosas em meu cérebro. Constance falava em minha cabeça, chamando aquela mulher de nomes impronunciáveis. Dizendo coisas... Não sei dizer ao certo. Não compreendia com clareza. Eu ouvia o choro dela e, como se surgisse de dentro de uma caverna escura, também via o rosto dele. Flutuando e encarando com olhos de ébano. Falando, rugindo. Emitindo sons medonhos, como um guincho esganiçado. Momentos antes daquela mortalha negra me cobrir por completo, senti vontade de mandar aquela mulher embora, entende? Eu sabia o que iria acontecer... Ela tinha que ir embora... Tinha que fugir de lá. De Constance. De mim.

- Você deverá rezar minha filha, rezar muito para que Deus possa lhe perdoar. E deverá sofrer - minha voz ganhara um timbre grave e rouco. Através da tela que nos separava, pude ver a expressão de surpresa da mulher. E o medo em seus olhos. - A bíblia diz que um filho ingrato é como o dente de uma serpente, mas uma esposa infiel e irritante é coisa ainda pior.

- Padre... por favor... - voltou a soluçar cobrindo o rosto com um lenço.

Levantei, saltando do cubículo, e agarrei aquela mulher pelos cabelos. Seus olhos suplicantes como os de um cão, me inflamaram ainda mais. Ela tentou gritar, mas ao receber o primeiro golpe, engoliu o som. Seu rosto explodiu como uma lata de extrato de tomate atingida por uma marreta. O corpo amoleceu, querendo desabar sobre o chão de madeira. Não deixei. Segurei firme em seus cabelos e desferi outro soco, e mais outro. Logo estava socando e chutando seu corpo, tomado por uma fúria incontrolável. Comecei a rir, depois a uivar como um animal. Em minha cabeça, ouvia o som das gargalhadas de Constance. Caíam como pedras no fundo de um poço escuro, que subitamente se enchera de um frio arrepiante.
Cessei os ataques, olhando para a mulher. Seu rosto não passava de uma massa disforme. Dentes quebrados, olhos inchados e semicerrados, olhando através dos cabelos jogados sobre o rosto e empapados de sangue. Seu nariz não existia mais. Meu coração pulava como um cavalo selvagem. Afrouxei os dedos do cabelo da mulher, deixando o corpo cair imóvel sobre o piso. Os olhos de Constance fitaram-me como duas bolas de fogo tremeluzente, cheios de fome e frieza.

Enlouqueci. Tomado pela raiva, destruí tudo. Ateei fogo nos bancos da igreja, no púlpito e em tudo o mais. Sorri ao ver o homem da cruz queimar. Olhava as chamas tomarem seu corpo, a cruz e todo o resto. E sorria. Eu acabei com ele. Acabei com tudo. Sentia um misto de alegria e euforia, mas, escondido no fundo do poço de minha alma, como uma serpente confortavelmente escondida num bueiro, havia algo consciente da monstruosidade que acabara de cometer. Talvez fosse um resquício de sanidade, tentando se livrar da escuridão.

Corrí, fugindo de mim mesmo e... Dele, percorrendo cidades vizinhas, caminhando por estradas solitárias. O mal me acompanhava por onde passava e, durante minhas estadias ao longo do caminho, fiz coisas terríveis.

Como era de se esperar, fui preso. Fui condenado há passar meus dias em um sanatório. Meus julgadores não acreditaram em minha história, porém não duvidaram de minha loucura.

Na cela acolchoada, isolado, recebia a visita de Constance todos os dias. Conversava comigo sobre os desígnios cruéis de Deus. Por vezes senti vontade de tirar minha própria vida, tamanho era o tormento que suas palavras causavam em mim, porém, tal atitude me trancaria de uma vez por todas nas garras do maldito demônio.
Ao longo do tempo, suas visitas foram diminuindo. Constance foi se distanciando e, como uma doença que permite uma trégua, desapareceu de vez. Meu comportamento mudou e me trocaram de cela. Já não havia mais paredes acolchoadas e o uso da camisa de força se tornou desnecessário. Passei a frequentar o jardim e a caminhar pelo passeio ao redor do bosque que circundava a construção principal. Durante alguns desses passeios busquei reencontrá-lo nos cantos escuros ao meu redor. A cada busca infrutífera, meu coração se alegrava mais e mais.   

Comecei a frequentar a capela do Hospital. Sentava num dos bancos de madeira e me limitava a ficar olhando a imagem do homem na cruz. Os restos daquela noite, na igreja, me vinham à mente, mas era como ver fotos antigas em um álbum mofado. Nos primeiros dias, primeiras visitas à capela, não pensava em nada. Não rezava ou procurava qualquer tipo de "conversa com Deus". Apenas ficava ali, olhando a imagem do homem na cruz, percebendo os flashes do passado como se minha cabeça fosse um palco escuro, equipado com holofotes, captando imagens que surgiam aqui e ali. Contudo, com a frequência, aos poucos fui reconstruindo minha fé, meu relacionamento com Deus. Busquei me justificar... Justificar meus erros, colocando a culpa em minha fraqueza... E nele.

"Perdoe-me, senhor, pois fui usado pelo maligno em suas obras."

Passei vinte anos internado. Ganhei a liberdade e tentei recomeçar minha vida como padre, mas a igreja não me aceitou de volta. Fui anatematizado por minha heresia e apostasia. Completamente compreensível. Tornei-me marceneiro. Conheci uma mulher.

No primeiro ano de relação, nos casamos e ela ficou grávida. O nascimento de Emilly trouxe conforto para minha alma e meu coração. Senti que Deus havia me perdoado e que eu seria abençoado novamente com Sua graça. Os meses que se seguiram foram os melhores de minha vida.

Em seu aniversário de dez anos, eu e Michele organizamos uma pequena festinha para nossa pequena Emily. Todas as crianças do condomínio apareceram, e algumas amigas da escola onde Emily estudava também vieram. Procurei me manter sorridente durante toda à tarde, cumprimentando pais, mães e vizinhos. Contudo, por dentro, as coisas não estavam tão sorridentes assim. Havia algo ali, mergulhado num mar subterrâneo, escondido sob as rochas e o jardim que era minha face. Espreitando. Era uma sensação constante, mas inexplicável. Há tempos não sentia aquilo. Desde... Desde o dia em que conheci um homem chamado João Batista.

Após fugir da igreja em chamas, na mesma noite em que quase matara uma mulher no confessionário, hospedei-me num pequeno hotel, à beira da estrada. Havia caminhado por horas e, àquela hora da noite, já me sentia exausto. O peso daquela noite caía sobre mim como o mundo nas costas de Atlas. O garoto que atendia na recepção perguntou como me chamava e eu, por força do hábito, respondi:

- Sou o Padre Ernesto

O garoto me olhou com ar de estranhamento. Talvez tenha sido por conta de meu abatimento. Eu acabara de espancar uma mulher, destruíra uma igreja e havia caminhado por horas em desespero. Com certeza não estava com a melhor das aparências.

- Noite difícil, Padre? - sua voz era arrastada e pastosa, como se houvesse uma dúzia de chicletes enfiados na boca.

Fiquei confuso com a pergunta, e, antes de abrir a boca para dizer algo, o garoto me estendeu a chave do apartamento onde eu passaria a noite. A destinação do lugar, minha aparência e o horário de minha chegada denunciaram com clareza minhas intenções. Tudo que eu desejava era um lugar para descansar o corpo e a mente.

- Número 13, terceiro andar. São 35 reais o pernoite. O horário de saída é ao meio dia. Caso o senhor queira ficar mais tempo, deverá vir aqui e acertar a conta desta noite.

Peguei as chaves e subi.

O apartamento era pequeno: apenas uma sala logo à entrada, equipada com jogo de sofás, mesa com quatro cadeiras e TV, um quarto à esquerda, ladeado por um banheiro e, ao fundo, a cozinha. Dividindo a sala e a cozinha, um balcão com cadeiras estilo banqueta. Logo que entrei, desabei no sofá. Meu coração, pesado como uma bola de boliche, bombeava um misto de remorso, ódio e ressentimento por todo meu corpo. Fechei os olhos, buscando apagar as imagens que giravam em minha mente. Adormeci ali mesmo.

Por volta das oito da manhã, acordei sobressaltado com fortes batidas na porta. Levantei tonto e desorientado. Minhas costas doíam devido à noite passada no sofá. A noite havia sido intranquila, cheia de pesadelos e sombras que se arrastavam, buscando me afundar na escuridão. As palavras de Constance rodopiavam em meio aos vultos que tomavam cada canto escuro de minha mente, como um tornado que arranca tudo de suas bases, transformando a calma em caos.

- Sim?

- Padre Ernesto? - respondeu a voz do outro lado da porta. Era grave. Senti um toque de ansiedade no tom. Meu coração gelou. Constance.

- Quem é? - perguntei, sentindo o corpo esquentar.

- Sou seu vizinho. Do apartamento ao lado, o número 14. Gostaria de falar com o senhor. Poderia abrir a porta um instante?

Soltei a respiração. "Um vizinho".

- Um momento.

Ao abrir a porta e dar de cara com aquele homem, me assustei. Era alto, cabeça raspada, meio encurvado como se houvesse tomado um soco no meio do estômago. Magro. Extremamente magro. Como um cão Galgo sofrendo de alguma doença.

- Em que posso ajudá-lo, filho?

O homem estava visivelmente constrangido. Suas mãos se esfregavam uma à outra e seus olhos estavam semicerrados como se, internamente, travasse uma luta para conseguir pronunciar as palavras.

- Bem... Eu posso entrar?

Olhava para os lados, enquanto esperava minha resposta. Não tive certeza se deveria deixá-lo entrar. Aquele homem estava sofrendo de algum mal e eu... Naquele momento, não poderia ajudar ninguém. Nem a mim mesmo. Contudo, no fim das contas, acabei deixando o homem entrar.

- Sim, entre. - afastei-me, liberando a entrada.

O homem entrou e seus olhos logo procuraram um local para sentar-se. Encontrou a cadeira de ferro, próximo à mesa, e despencou sobre ela. Sentei-me do outro lado do móvel.

- O que deseja?

- Bom... Padre, desculpe incomodá-lo. Sei que ainda é cedo e o senhor pode estar cansado. O Renato, da recepção, me disse que o senhor chegou tarde da noite. - O constrangimento do homem parecia crescer a cada palavra. - Mas... Ando meio doente, sabe. Andei me metendo onde não devia e... Agora estou com alguma coisa me corroendo o corpo. Não consigo dormir... Porra, não durmo há dias! - O homem, que falava com a cabeça abaixada, olhando para os próprios pés, me olhou de súbito. - Oh padre, me desculpe por minha linguagem.

- Não se preocupe, filho. Como se chama?

- Me chamo João. João Batista.

- Você disse que há algo corroendo seu corpo... Está doente? Conte-me, filho, o que há com você?

- Acho que... Peguei alguma coisa... - Colocava as mãos entre as pernas. Percebi que o problema deveria estar ali ou, começado por ali. - Padre, estou envergonhado de estar aqui, mas preciso de sua ajuda.   

- Entendo. Bom, creio que o melhor seria você procurar um médico, e não um padre. Infelizmente não posso ajudá-lo. - Levantei-me, com a intenção de levá-lo à porta. Eu estava cansado e minha cabeça pesava como chumbo.

- Espere, padre. Por favor. - sua voz assumira um timbre alto e agudo, como o de uma criança.

O homem estava quase aos prantos. Sentei-me.

- Já fui ao médico, padre. Creio que não há mais salvação para meu corpo. Mas quero... Quero, pelo menos... Salvar minha alma. - disse isso com os olhos grudados em meu rosto. - Preciso que o senhor me batize, padre.

Ao ouvir aquele pedido, algo começou a inflar dentro de minha cabeça, como um balão de gás.

- O quê?

- O senhor sabe... Batismo. Quero aceitar a Jesus como meu salvador, padre. Não quero morrer assim.

Minha mente começou a gritar:

"Não é possível que esse filho de uma puta esteja me pedindo isso! Manda esse maldito embora, AGORA!"

- Entendo, filho.

"O que você está fazendo?? Manda esse filho da puta embora!!"

Senti minhas orelhas pegarem fogo. A despeito do que minha mente consciente exigia, algo passou a tomar o controle de tudo. Levantei-me, perguntando se alguém o vira entrando em meu apartamento. Ou se ele havia dito a alguém que viria me procurar.

- Não, padre. Não tenho ninguém para dar satisfações. Também não havia ninguém no corredor.

Uma nuvem negra turvou minha mente. Encaminhei-me para a porta e a tranquei.

"Você sabe o que irá acontecer se não mandá-lo embora."

- Entendo.

Aquela força maligna que me tomara no confessionário, na noite anterior, passou a conduzir meus sentidos e minhas ações. Sentia-me como se estivesse sendo aprisionado dentro de meu próprio corpo, observando tudo como se meus olhos fossem o umbral de uma porta.

- Bom, geralmente realizo os batismos dentro da casa de Deus. Contudo... Neste caso excepcional, posso fazê-lo aqui mesmo.

O homem me olhou com uma expressão de surpresa, abrindo um sorriso.

- Oh padre, o senhor faria isso? Ficarei eternamente grato ao senhor!

-Não me agradeça, filho. Espere aqui.

Fui ao banheiro e abri a torneira da banheira. Em minha mala ainda havia alguns apetrechos religiosos que acabei por recolher de meu quarto antes de tudo queimar: uma pequena Bíblia, um pacote de velas e uma Estola. Decorei as bordas da banheira e o piso ao redor. Voltei à sala.

- Venha, filho. - conduzi o homem até o banheiro. - Por favor, se ajoelhe aqui, ao pé da banheira.

O homem, como um cão adestrado, obedeceu. Pousei minha mão sobre sua cabeça, aproximando seu rosto da água.

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eu lhe batizo...

O homem fechou os olhos, ouvindo minhas palavras. Sorria.

- ...eu lhe batizo!

Afundei sua cabeça na banheira, segurando-o firme, com as duas mãos. Ele se debateu como um peixe. Uma gargalhada diabólica subiu por minha garganta e explodiu dentro do banheiro enquanto eu sentia o corpo do homem arrefecer os espasmos lentamente. Em poucos minutos, ficou imóvel. Mole como plástico aquecido. Morto.

Emily ficara feliz com a surpresa que fizemos a ela, demonstrando sua gratidão com carinho. Após a festinha, à noite em meu quarto, tive dificuldades para dormir. Fiquei remoendo aquela sensação de que havia algo ali, chegando... Se aproximando... aguardando o melhor momento para emergir, como uma serpente escondida que aguarda o momento para dar o bote. Flashes do homem na banheira... Da mulher no confessionário... Procurei uma explicação aceitável para aquilo, mas nada me ocorria. Nada que não me levasse diretamente ao encontro de Constance e dele ao meu. Michele já ia longe em seu sono. Levantei e olhei pela janela. Morávamos em uma casa no topo da rua. Uma rua sem saída. De lá era possível ver toda a alameda, até o portão de entrada do condomínio. Todas as casas estavam escuras e a alameda era iluminada por postes de luz laranjada. Estava frio e um nevoeiro pintava a paisagem com um tom opaco, embaçado. Olhei para a alameda, a fim de ver o portão. Estava enterrado na névoa, assim como a guarita. Ainda era possível ver luz na pequena construção onde o guarda se abrigava, embora parecesse oprimida pela névoa. Provavelmente o guarda dormia àquela hora. Creio que era cerca de 3 da madrugada... Talvez 4. Tudo estava silencioso e úmido, como um túmulo. Este pensamento me provocou um estranho arrepio.

Lembro que fiquei ali, hipnotizado pelo nevoeiro. Subindo... Embaçando... Envolvendo as luzes dos postes. Luzes laranjadas. Voltei a olhar para a guarita e fiquei imaginando se o guarda estaria bem agasalhado. Estava bem frio naquela noite. Foi aí que uma figura prostrada em frente ao portão me chamou a atenção. O nevoeiro tornava a figura meio translúcida, irreal, fantasmagórica. Não identifiquei, a princípio, se era uma pessoa ou outra coisa... Talvez um saco grande preso às grades pelo vento. Até que uma lufada varreu a névoa que envolvia o portão e a guarita, deixando a figura mais nítida. Era ele, Constance. À distancia eu não pude ver seu rosto com nitidez, mas tive certeza que era ele... Certeza! Meu coração disparou. Caminhei para trás, arrastando os pés como se estivessem presos a pesadas bolas de ferro. Fechei as cortinas.

Não dormi naquela noite. Sequer fechei os olhos. Tinha medo de que, ao abri-los, o encontrasse sentado ao meu lado sussurrando ao meu ouvido, com sua voz de trovão. Arrastei a poltrona para perto da janela, procurando não acordar Michele com o barulho. Sentei, fitando a cortina fechada, certo de que ele surgiria, talhado pela semitransparência do tecido. Esperei.

Na escuridão e sob o silêncio da madrugada, o nome de Emily surgiu em minha mente de forma violenta. Senti um frio assustador tomando meu coração, como se o mergulhasse num mar de gelo. Afastei a cortina, liberando apenas uma pequena brecha na janela. O horizonte, tingido de um marrom avermelhado, indicava que o sol já estava à caminho. O nevoeiro de dissipara, deixando a guarita e o portão plenamente visíveis. Constance não estava mais lá. Emily. Fui a seu quarto, caminhando pelos corredores escuros da casa. Meus joelhos doeram ao me levantar, assim como os músculos das costas. Dei os primeiros passos encurvado como um ancião.

O abajur estava aceso, com luz fraca, como Emily gostava. Ela tinha medo de escuro, então sempre dormia com o abajur aceso. Na mesinha, ao lado da cama, um bilhete. Na parede, acima da cabeceira, uma imagem. Da porta do quarto, limitado pela semi escuridão que ainda reinava no cômodo, não consegui interpretar com clareza o desenho. A passos lentos e apreensivos, entrei. Os olhos, correndo da parede para o corpo de Emily, de volta à parede, o abajur, o bilhete e de volta ao desenho, acostumavam-se à falta de luz. A figura, desenhada em vermelho-sangue, trazia a imagem assustadora de um machado. Um machado! Deus que me perdoe, o que era aquilo! Que charada diabólica era aquela!? Corri até a cama e puxei a manta que cobria Emily. Não estava ferida. Um breve sentimento de alívio, logo sufocado quando meus olhos se fixaram no bilhete. Ouvia as batidas de meu coração... Ritmadas... Sombrias como uma música fúnebre e ancestral. Eu sabia quem havia deixado aquele bilhete ali, claro. Ele. O que estaria escrito? Que mensagem ele teria para mim e por que estivera ali, no quarto de Emily? Fui devorado pelo medo. Meus ossos fraquejaram, como se tivessem sido perfurados por algo ácido e corrosivo.
Toquei o papel. Vibrava como se energizado por qualquer coisa fora de minha compreensão. Minha mão tremia convulsivamente. Queria queimar o bilhete, me desfazer daquilo... maldito! Não fui capaz. Os garranchos moviam-se, embaralhados, indecifráveis à primeira vista. Apertei os olhos, procurando estabilizar as letras e decifrar aquelas poucas palavras: "EU A QUERO.". Confusão... medo.

Recobri minha criança e saí do quarto, abandonando o bilhete.

Eu amava minha filha. Todos os dias, desde seu nascimento, eu olhava para ela e agradecia a Deus por ter me dado um presente tão lindo e especial. Meu amor não tinha limites. Naquele momento eu sentia que nada poderia abalar tal sentimento e eu a protegeria de qualquer mal que ameaçasse sua vida.

Após um tempo acabei por esquecer o tal bilhete. A imagem, desenhada na parede do quarto de Emily, era o que povoava minha mente quando pensava naquele dia. Esta lembrança também foi, aos poucos e com dificuldade, jogada em algum lugar inabitado de meu subconsciente.

Como o efeito gradativo da embriaguez, que chega imperceptível até transformar o mais tímido dos homens no mais violento, alguma coisa aconteceu comigo. Algo mudou dentro de minha cabeça, como se o disjuntor que controlava meus sentimentos tivesse queimado. Aos poucos fui me tornando mais sombrio. Sentia que algo estava chegando, ou retornando. As lembranças do passado haviam despertado e eu não consegui sufocá-las. Tão pouco conseguia evitar os efeitos que tais memórias causavam em minha personalidade. Emily também sentiu a mudança. Nós já não ficávamos juntos como antes. Quando eu estava em casa, me trancava no quarto. Ficava lá, com os olhos abertos, vendo coisas... Imaginando coisas.

"Papai, o senhor não quer mais brincar?".

Eu olhava para ela, com o coração apertado, sentindo correr dentro de mim o ímpeto de tomá-la nos braços e dizer que a amava, mas, logo me vinha uma irritação sufocante, invadindo tudo como uma febre súbita e, para não ser rude, apenas dizia "hoje não querida". Havia uma bomba dentro de mim. Uma bomba que ameaçava explodir a cada aproximação sua. Aquilo me corroía, me destruía por dentro.

Os dias foram ficando mais difíceis. Comecei a beber um pouco mais do que o normal. Havia um pequeno bar no caminho entre a marcenaria e o condomínio. Raramente parava por lá. Quando parava, era para tomar uma ou duas latas de cerveja e comprar alguma coisa para Emily. Ela gostava daquelas balas Fini, sabe, "molinhas e docinhas.". Gradativamente esse número aumentou. Fui de uma ou duas latas para dez ou doze em poucos dias. Comecei a chegar à casa bêbado, e foi aí que Emily começou a me dirigir aquele olhar. Uma mistura de decepção, raiva e mágoa. Passei a demorar mais tempo para chegar em casa, preferindo ficar no bar. Naquelas horas, eu ouvia a voz do maldito Constance em minha cabeça. Ruminando, reclamando. Eu procurava suportar os trovões, tentando, sem completo sucesso, sobreviver àquela tempestade.


Constance me apareceu num fim de tarde, refletido no espelho do pequeno armário sobre a pia do banheiro, como Bloody Mary. Havia um sorriso satisfeito em sua boca. Eu o encarei e seus olhos eram... Negros como bolas de chumbo.

- Olá, padre.

Virei-me, certo de que o veria atrás de mim, como havia visto através do espelho. Constance estava sentado no chão, ao lado da banheira.

- Você sabe que não sou mais padre.

Meu coração galopava no peito como um potro selvagem.

- Não, você é e sempre será padre. Um padre filho da puta, mas ainda padre.

- O que você quer de mim? Não tenho nada a lhe oferecer... Por favor... Deixe-me em paz!

Minha voz saíra pastosa. Um misto de medo e raiva.

- Vá embora!

- Eu irei. Mas, antes, quero que você faça mais uma coisa para mim. Depois disso, nunca mais me verá.

Eu estava com todos os músculos do corpo contraídos, segurando a borda da pia com tanta força que meus dedos doíam. Apesar da dor, não relaxei um só momento. Ouvia a louca batucada de meu coração ecoando em meus ouvidos como um aríete batendo numa pesada porta de carvalho. Tive medo de perguntar o que era aquela "coisa" que ele queria que eu fizesse. Creio que ele farejou meu medo, como um cão raivoso fareja o medo nas pessoas. Sua voz voltou a retumbar.

- Eu a quero!

O banheiro começou a ser invadido por uma neblina densa, como o vapor que sai do box após um banho quente. Constance foi sendo tomado pela névoa, deixando apenas seus olhos brilhantes romperem a cortina de fumaça. As paredes assumiram uma forma gaseificada, rodando como um caleidoscópio de cores confusas. O quarto de Emily surgiu do emaranhado de cores circulantes. O abajur aceso à meia luz... Emily deitada na cama, com uma perna coberta e a outra pendurada para fora. Acima da cabeceira, a imagem sinistra do machado. Parecia mover-se, adquirindo um formato em 3 dimensões, avançando em minha direção. Naquele dia, não havia entendido... ou feito a ligação entre o desenho do machado na parede, a visita do miserável ao quarto e o bilhete. Mas agora... Agora tudo estava lúcido como o dia em minha mente.

Logo a imagem do quarto começou a dissipar-se. Novamente as imagens rodaram. Outro cenário se materializava do nevoeiro que cobria o banheiro. O contorno de uma pequena casa, no alto do que pareceu uma colina, iluminada pela luz da lua. Era para lá que eu deveria levar a garota. Era lá que eu deveria entregar minha pequena filha àquele maldito, demônio dos infernos!

-Por favor, me peça qualquer outra coisa... Qualquer coisa, menos isso! Eu não posso... Não posso! Já não bastam as vidas que tirei? Não basta tudo o que fiz seu maldito?!

Meus gritos fizeram as imagens desaparecerem. Ajoelhei no chão frio, encolhendo-me como um cão de rua no inverno.

Minha cabeça estava à mil. Todos os meus medos e tormentos voltaram, num turbilhão de cacos pontiagudos. Todos os anos aprisionado naquele sanatório, atormentado diariamente por aquela figura infernal e sua voz de trovão. Todos os pesadelos e o desespero das lembranças, sempre rodando e procurando me cobrir com a mortalha da loucura. O fogo, a morte e a violência com que tratara aqueles que me procuraram, buscando o alívio do perdão de Deus e recebendo a fúria do desengano e da traição. Vidas foram ceifadas, famílias despedaçadas... Eu... Eu não podia deixar tudo aquilo voltar, entende? Aquele tormento já durava anos... Muitos anos! Todas as vezes que eu imaginava que ele havia sumido, ele voltava mais forte dentro da minha cabeça. Eu já não suportava mais, entende?! Precisava acabar com aquilo... de uma vez por todas... Mas... Minha pequena Emily... Como poderia... Como eu poderia?!! Ela era uma criança... Meu Deus, uma criança! Eu sabia que toda a irritação que existia dentro de mim era fruto do mal que me assolava. Sabia que, guardado no fundo de meu peito, aquele amor que surgira ao vê-la nascer ainda era forte... Poderia se libertar e tudo voltaria a ser como antes. Mas... Quando? Uma vontade desesperadora de pôr fim a tudo aquilo me tomou. Como um homem que morre de fome e se propõe a comer a própria carne, ansiando pela saciedade, tomei a decisão. Não havia outro jeito. Porra, não havia outro jeito, não havia outro jeito! Ali, no chão frio do banheiro, tomei a maldita decisão. Seria feito. Fechei os olhos. Senti vontade de pedir forças para executar aquela tarefa. Mas para quem eu pediria? Só esperava estar pronto quando a hora chegasse. Pronto como um suicida à beira do abismo.

- Me diga como.

A imagem da casa, projetada nas paredes do banheiro, não informava o local onde ela se encontrava. Ele também não me disse nada a respeito, então tive que procurar. O condomínio ficava mais afastado do centro da cidade, próximo ao limite entre a área urbana e a zona rural. Lembrava-me de já ter feito alguns trabalhos para chacareiros da região. Numa tarde, após sair mais cedo do trabalho, peguei a bicicleta e fui rodar pelas redondezas das chácaras mais próximas. Percorri os caminhos de terra batida, olhando ao redor, para o alto dos morros. Não havia nenhuma casa com as características daquela que ele me mostrou. Voltei para casa.

Quando cheguei ao portão de entrada do condomínio, Seu Raimundo, o vigia, me abordou dizendo que um homem havia me procurado. Dissera que eu deveria procurá-lo na chácara Poço das Correntes, ao fim da tarde. Seu nome era Virgílio. Segundo Seu Raimundo, Virgílio conhecia meu trabalho como marceneiro e precisava de alguém para ajudá-lo com alguns móveis. Havia deixado o endereço e um pequeno mapa, mostrando como chegar. Aguardei o horário e fui ao local indicado.

A chácara Poço das Correntes não ficava longe do condomínio, de modo que fui de bicicleta mesmo. O homem, muito agradável, me recebeu com um forte aperto de mão, me conduzindo para os fundos da casa. Mostrou-me alguns armários velhos que precisavam de reforma, um sofá e um jogo de mesa com 8 cadeiras. Embalamos numa conversa agradável, regada a bolo de milho e suco de laranja, até o anoitecer. Acertamos o valor do serviço e me despedi, sendo levado à porta. Da varanda à porteira principal da chácara, havia um caminho de terra batida, com cerca de 100 metros. O homem queria me acompanhar até a porteira, mas eu disse a ele que não se incomodasse. "Não se preocupe, eu fecho a porteira."
O caminho não tinha postes de iluminação, mas, naquela noite, a lua estava especialmente grande e luminosa. Projetava sua luz sobre tudo, tingindo a paisagem com um tom amarelo opaco. A meio caminho, minha bexiga começou a reclamar da quantidade de suco que eu havia tomado. Parei para me aliviar, olhando para a lua. Estava realmente grande, assomando logo acima do horizonte. Abaixo do grande círculo de luz, eu divisei a casa. Eu havia encontrado! Era para lá que eu levaria a menina.

Para chegar a casa, no alto da colina, não era preciso passar pela porteira da chácara. Eu só precisava seguir, margeando a cerca de arame farpado que limitava a chácara, até me aproximar do local onde a casa se encontrava. Então era só cortar os arames e seguir pelo mato. Foi o que fiz.

A casa era feita de tábuas e caibros velhos e tortos, do piso às paredes, e coberta com telhas de amianto antigas. O assoalho rangia a cada passada. 3 cômodos no total. Uma salinha, logo à entrada, um quarto, à direita e uma pequena cozinha, à frente. Ao lado da porta do quarto, uma janela de madeira. A brisa fazia a janela balançar, lentamente, rangendo nas dobradiças enferrujadas. Havia alguns poucos móveis também. Uma mesa de madeira com 3 cadeiras na sala; no quarto, um catre velho, coberto com colchão de palha e uma cadeira de ferro. Na cozinha, apenas um velho fogão. Não havia vestígios de que aquele lugar houvesse recebido visitas recentes. Na verdade, parecia abandonado há tempos. Apenas o silêncio, como se todo o universo ao redor da casa estivesse em expectativa. Um leve cheiro de fezes humanas me subia às narinas vez ou outra.

Emily estudava pela manhã e cumpria, de bicicleta, o trajeto da escola pra casa. Vinha sozinha, apesar de haver um transporte escolar que levava e trazia os alunos da escola. Recusava-se a usar o transporte escolar, alegando que a escola não era tão longe assim. Coisa de 2 quilômetros de casa até lá. Não questionei, afinal, com ela indo de bicicleta para a escola, me livrava de ter que pagar pelo transporte. A entrada para a zona rural ficava a meio caminho, entre a escola e o condomínio. Dali até a Poço das Correntes dava mais 1 quilômetro e pouco. Quase 2. Decidi que seria ali, na entrada para a Zona Rural, que eu a pegaria.

Na manhã seguinte à visita que fiz ao cativeiro, me preparei para o que estava por vir: sequestrar e levar Emily para o barraco no topo da colina. De todas as vidas que arruinei, de todos os momentos que vivi dominado por essa força do mal que me encontrou e me seguiu até aqui, aquele era o momento mais violento de todos. Perturbava-me com estúpida brutalidade, revirando meu estômago, como se algo maligno tivesse coagulado em minhas entranhas.

Providenciei cordas, um saco de pano grande e... E o machado. Depois que tudo estava pronto, sentei no catre, aguardando a hora chegar. Não ouvia a voz dele, mas... Mas sabia que ele estava ali, ao meu lado. O ar estava pesado, numa atmosfera sombria e silenciosa.

Próximo do meio dia peguei a bicicleta, o saco de pano e me dirigi para pista onde me encontraria com Emily. Escondi-me no mato, à beira da estrada quando ela surgiu. Aguardei. Ao meu lado, como se tivesse sido providenciado por aquela força diabólica, havia um pedaço de pau. Com ele dei o primeiro golpe. Não queria que ela me olhasse nos olhos quando a pegasse. Senti medo de que, se isso acontecesse, eu perdesse a coragem. Ela foi chegando e, quando passou por mim, saltei do mato e desferi uma paulada em sua nuca, fazendo-a cair da bicicleta e rolar pelo chão. Seu uniforme da escola logo ficou todo sujo de terra. Ficou imóvel, virada de bruços. Aproximei-me, certo de que ela havia desmaiado, tamanha a força do golpe. Contudo, quando eu a virei, seus olhos estavam abertos e se fixaram nos meus. Por um momento, sua expressão foi de alívio. Talvez tenha pensado que eu estava ali para salvá-la. Entrei em pânico, sentindo meu rosto esquentar. Quase larguei tudo ali mesmo e fugi. Seus olhos permaneceram fixos nos meus, esperando uma resposta para tudo aquilo, suplicando... até que lhe dei o primeiro soco na cabeça. Ela arregalou os olhos. Um terror sem tamanho tomou conta de seu rosto. Soquei mais duas vezes, até que ela apagou.

No cativeiro, a deitei na pequena sala, próximo à mesa e amarrei seus braços e pernas. Também a amordacei. Esperei até anoitecer.

Deitado no catre me sentia como se estivesse entorpecido. Entrando e saindo da realidade. Não sentia fome nem sede, mas meu estômago doía. A noite não demorou a chegar. Creio que, em meu estado de loucura, não vi a hora passar. Despertei ouvindo sua voz me chamando. Enquanto acendia algumas velas, ele falava comigo.

"Olá, meu caro."

Não o via, mas sabia que estava ali, dentro do quarto comigo. Não respondi.

"Ora, mas o que é isso? Não vai falar nada? Diga-me, como se sente, agora que está perto de se livrar de mim para sempre?"

“Atormentado. É assim que me sinto. Sinto que estou prestes a perder, de uma vez por todas, a pouca sanidade que ainda me resta. Já fiz tudo que mandaste, fiz tudo do jeito que querias, mas agora, sinto que já não tenho mais forças para aguentar este tormento”.

“Faça mais um. Apenas mais um e eu o deixarei livre. Nunca mais irá me ver ou ouvir. Eu prometo que não o atormentarei mais.”

“Por favor, chega! Eu não aguento mais... por favor, vá embora!”

“Eu irei. Você sabe o que fazer, meu caro.”

O cheiro de fezes ficou mais forte e eu já sentia meu estômago revirar. A dor aumentou.

“Você irá embora depois desta noite, não é?”

“Sim, meu caro, eu prometo que irei”.

“Como saberei que não está mentindo?”

“Ora, ora, eu já menti para você, meu amigo? Por acaso, já lhe enganei alguma vez? Não, claro que não. Não sou um mentiroso, como aquele idiota da cruz diz. Confie em mim e não irá se arrepender.”

Levantei-me e peguei o machado. Fechei os olhos por um instante. Não havia nenhuma prece a fazer naquele momento. E mesmo que existisse uma, não haveria ninguém para ouvi-la. A única coisa que me veio à mente foi pedir perdão a Deus, embora soubesse que Ele jamais me perdoaria. Naquele momento eu tive certeza disso.

“O que está esperando, meu caro? Vá e faça o que lhe peço; não vai demorar.”

Abri os olhos, resignado. Encaminhei-me para a porta e, da fresta que se abriu, olhei para menina. Estava acordada e olhava em direção à porta do quarto. Estava escuro. O cômodo era iluminado apenas por uma vela sobre a mesa. Abri a porta de uma vez e caminhei, a passos firmes em sua direção. Emily arregalou os olhos ao ver o machado em minhas mãos.

"Desculpe-me, filha."

A lâmina dividiu sua cabeça ao meio. O sangue jorrou como um chafariz, tomando todo o piso de madeira. Rapidamente o cheiro agridoce subiu. Aquele era o cheiro da morte. Eu já havia sentido aquele odor várias vezes. Durante alguns segundos, o corpo de Emily se contorceu em espasmos involuntários. Em minhas costas, a risada do maldito demônio ecoou pela casa, enchendo o mundo inteiro. Minha cabeça girou, tomando-me a consciência. Mergulhei na escuridão.

Despertei sentindo o rosto colado ao chão, mergulhado em algo viscoso. Era o sangue de Emily. Tudo estava coberto de sombras e o silêncio era quebrado apenas pelo ranger da dobradiça da janela. O corpo de Emily, ainda com o machado cravado na cabeça, jazia a poucos centímetros acima de mim.
"Senhor, o que foi que eu fiz..."
Levantei, sentindo a cabeça girar... cambaleando como um bêbado. O assoalho de madeira, sob o peso de minhas botas, rangia e estalava. A gargalhada de Constance explodiu em meus ouvidos, enchendo todo o recinto. Ainda cambaleante, tapei os ouvidos na tentativa de extinguir aquele som maldito, mas foi em vão. Não era um som real. Vinha de dentro de minha cabeça. Todo o espaço começou a rodar e se distorcer em luzes borradas. Senti que iria desmaiar novamente e tratei de fugir.

De lá para cá já se passaram 8 anos. Perdido, vagando por todos os lados, muitos outros “incidentes” ocorreram. Contudo, aqui termino este relato. Talvez não haja outros, pois, a morte poderá me encontrar numa destas esquinas.


Biografia:
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