A ideia de que o “inferno são os outros”. Eu estou no carro, ouvindo música. E a música, quando boa, tem a capacidade de proporcionar um determinado “mergulho” interior. Rapidamente me encontro num estado meditativo, em que a mente não dialoga mais, não me enche o saco com suas preocupações, desejos e espectativas. Então me sinto realmente completo, integrado, por assim dizer. É como se o espírito se libertasse da carne. Não há pensamento ou imaginação: só contemplação.
Se alguém – qualquer pessoa, um familiar, um amigo, uma namorada – entrar no carro, toda a sensação se desfaz. Subitamente, uma norma social se impõe. A sociedade, internalizada, exige de mim um comportamento diferente. É preciso, por exemplo, conversar, demonstrar interesse pelo outro, agir com educação, evitar o silêncio – sobretudo evitar o silêncio. A transição é automática e se começa a agir de determinado modo, que varia de acordo com o contexto cultural em que nos encontramos.
Me parece evidente que a nova entidade – por falta de melhor nome – é artificial. Ela foi forjada coletivamente como um conjunto de práticas sociais e nós aderimos a ela sem questionamentos. De repente, assumimos a imagem construída de nós mesmos. Construída na interação entre características individuais e normas sociais. Surge a persona, o “sujeito” que se apresenta para os outros, e não o “ser” verdadeiro – uso “ser” também por falta de melhor nome. Por essa razão é tão difícil conhecer verdadeiramente alguém, porque estamos quase sempre no nível da imagem do outro: uma imagem sustentada continuamente pelo sujeito e pelos que com ele interagem.
Há uma dissociação clara aqui. Se o outro não entrasse no carro, eu permaneceria inteiramente satisfeito com a condição de ser. De modo que o surgimento do outro provoca um desdobramento do indivíduo, que precisa artificialmente agir como se deve agir. Toda profundidade e imersão desaparecem, e o autômato emerge de nós. O resultado é desconforto, o que, penso eu, Sartre chamaria de “inferno”. Abdicamos de quem somos realmente em função da presença do outro. E o outro não é só um indivíduo, mas todas as normas da sociedade incorporadas nele, e que ele exige – implicitamente – que sejam respeitadas.
Claro, você poderia não agir assim. Você poderia, talvez, tentar manter o foco naquele estado inicial. Mas, obviamente, desrespeitaria a norma e seria taxado de louco. O interessante é que a sociedade taxa de louco quem na verdade se deixa estar na própria natureza, aquelas pessoas que, de diversas maneiras, parecem não perceber sua transgressão contínua das regras sociais. Os autênticos é que são taxados de loucos, como se houvesse uma preferência generalizada pela norma coletiva, como se o padrão social fosse inquestionavelmente o melhor. Quando alguém se desvia do padrão, logo é punido pelo corpo social, e tal punição também varia de acordo com o tamanho e a natureza da transgressão.
Eu não sei o que sou quando estou imerso em mim mesmo, confesso. Mas sei com toda certeza que não sou natural quando ajo em sociedade, porque estou agindo compelido por normas que não criei, embora me submeta automaticamente a elas. Sei também que a interação social, ao exigir de mim certas posturas, corta pela raiz a espontaneidade do ser. Minha ação passa a refletir muito pouco esse ser (admito que ele não desaparece por completo). Não sei bem do que se constituem essas entidade distintas, mas constato que na primeira me sinto à vontade, porque ela representa certo sentido de unidade, que se desfaz imediatamente na presença do outro, ao se ingressar na segunda. Quando surge o outro, em suma, surge um outro em mim.
Ante a duplicidade, fica a pergunta – que eu, como sempre, me sinto incapaz de responder: melhor ser você mesmo, ainda que isso não signifique absolutamente nada de concreto, ou ser aquilo que o outro exige que você seja?
|