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As tinderelas e o léxico do Tinder
Caio Lobo

I

O rapaz magrelo e de barriga saliente foi empurrado para dentro da sala de modo assaz indelicado.

“Preciso algemar?”, perguntou o miliciano aos juízes.

Responderam que não, afinal, o caso não era muito grave e outro policial estava ali para garantir a segurança do réu. De fato, no canto havia um sujeito parrudo, vestido de cinza, tipo alemão da SS.

“Sente-se, por favor”, disse um dos três homens sentados atrás da grande mesa de madeira. A mobília tinha gravuras romanas incompreensíveis: de um ângulo pareciam soldados numa batalha; de outro, lembrava uma orgia animalesca.

“Estávamos a discutir seu caso, meus colegas e eu.”

O acusado sentou-se na única cadeira vazia, posta propositadamente logo abaixo dos magistrados, encarando-os.

“Conte-nos por que o senhor está aqui?”

“Ou por que acha que está aqui”, completou o colega daquele que parecia ser o presidente.

“Bem, eu escrevi um texto.”

“Ah. Um texto... E o que dizia nesse texto?”

O garoto remexeu-se na cadeira, visivelmente constrangido, avermelhando-se o rosto de nariz empinado e queixo inexistente.

“Era um tentativa, excelências – devo chamá-los de ‘excelências’?, sim? certo - de desmascarar os engodos disseminados - fartamente disseminados, eu diria – a que estão sujeitos os clientes dos serviços de utilidade pública como o Tinder, o Badoo, etc.”

Um dos juízes controlava-se para não rir. O presidente por pouco não se contagia com o bom humor do colega de toga. Colocando-se ereto, dirigiu-se ao interrogando:

“Etc? O senhor não utilizava unicamente o Tinder?”

“Não senhor.”

“Quais eram os outros?”

“Badoo, Hppn, Lovoo, Par perfeito, entre outros.”

“Entre outros”, tossiu o juiz que queria rir.

“E o senhor se considera um expert no tema?”

“Sim senhor”, respondeu com orgulho.

“Quantas mulheres o senhor... digamos... qual seria o termo?”

“Comeu”, falou o magistrado cômico.

O terceiro julgador, que não havia se manifestado até então, chamou a atenção dos colegas para a sacralidade de suas funções. Seu olhar era rígido - “reto como beiço de bode”, refletia o juiz que queria se divertir à custa do réu.

“Desculpe-me. Refaço a pergunta. Com quantas mulheres chegou a se relacionar?”

Dessa vez o acusado respondeu com menos empáfia:

“Três.”

“Presidente, permita-me que saia um segundo”, falou o colega que não se aguentava, “preciso beber um copo d’água”.

Mal tinha saído, ouviu-se uma gargalhada no corredor do lado de fora. O réu, no entanto, não parecia perceber o que se passava.

“Continuemos. Então o senhor escreveu um texto que intitulou ‘Tinder etc’?”

“Isso.”

“Cujo propósito era...”

“Esclarecer a sociedade sobre as armadilhas ali contidas.”

“Mas terminou acontecendo que o senhor, de modo um tanto exagerado... praticou alguns ilícitos.”

“Sim, excelência.”

“Poderia nos dizer quais?”

“Basicamente?”

“Basicamente.”

“Chamei muitas mulheres de ‘feias’.”

“O senhor se considera feio?”

“Sim, senhor. Disse-o no preâmbulo.”

“Correto. Se o senhor sofre desse mal da feiura, não acha contraditório sair por aí apontando a feiura dos outros?”

“Acredito que não.”

“Por que?”

“Como eu disse no preâmbulo, eu que sou feio tenho o direito inalienável de apontar nos outros a feiura. Se fosse bonito, aí seria ooooutra coisa. Seria como se um homem fisicamente saudável insultasse um aleijado.”

“Um portador de necessidades especiais, você quis dizer.”

“Sim”, corou, “me desculpe.”

“Certo. Se meu colega não discordar, passemos à leitura do seu pequeno léxico.”

“’Tinder etc’.

“Sim, eu sei. Por favor, pegue a cópia que deixamos aí para você. Queremos que comece pela primeira expressão.”

Nesse instante retornou o juiz que se ausentara, como se tivesse adivinhado que o julgamento havia entrado em outra fase:

“O preâmbulo”, gritou, “faço questão que leia o preâmbulo!”

Os outros dois entreolharam-se em silêncio.

“Tudo bem”, decidiu o presidente, “comece pelo preâmbulo e siga até o fim.”

II



Tinder etc



Preâmbulo. Que as pessoas me entendam bem: considero feias as pessoas que considero feias. Elas podem ter o coração de ouro, não o nego. Elas podem ser verdadeiras madres Teresa de Calcutá, mas isso não tem importância para mim. Sou um homem superficial, que se deixa enganar pelas aparências do mundo e se sente, de alguma forma inexplicável, tragado pela beleza feminina que se me apresenta.

O presente texto não tem por intenção buscar as razões dessa atração doentia pela beleza, embora desconfie que sou um autômato criado pela sociedade do espetáculo, que estão embutidos em mim os valores que ela propaga e, mais precisamente, o valor ‘beleza’. O valor ‘beleza’ que me incutiram no corpo como um veneno se apresenta por meio de aspectos bem definíveis: o corpo magro ou trabalhado na academia, os cabelos sedosos e lisos, a barriga chapada, a bunda bem formatada, o rosto delicado, os lábios rosados, os dentes brancos e alinhados, a pele lisa e sem marcas, o nariz pequeno, o sorriso estonteante. Essas coisas, embora pareçam objetivas, não o são. Elas estão presentes - e assim defino se estão presentes – quando, diante de uma representante do sexo feminino, o peito se aperta e sofro de desejo incontido.

A beleza é via de mão dupla. Também alguns homens a possuem e certamente provocam o mesmo sentir nas mulheres. Eu não faço parte desses homens, infelizmente. Sou feio, como feia é muita gente mundo afora. Sou magro e baixo. Apesar de magro, tenho barriga de cerveja porque, para me livrar do desejo que não se realiza, bebo. Bebo muito. Meu nariz é torto e empinado, desproporcional ao tamanho do meu rosto, que é pequeno. Não tenho queixo grande ou ombros largos. Minha mandíbula não é de Neandertal. Eu poderia aqui postar uma foto, mas não quero provocar sensações desagradáveis nas leitoras.

Feio pode falar de feio. Feio pode dizer ao outro: “feio”. Como não? A dinâmica psicológica o permite. Fazemos parte do mesmo grupo. Eu te chamo de feia, você me chama de feio. O argumento ad homini nos convém que é uma maravilha! Eu poderia citar Vinícius, um poeta brasileiro que escreveu versos sublimes - mas também muita porcaria que ele chamou de poesia quando era prosa – e dizer que acho a beleza essencial, mas não acho.

Que se entenda bem esse ponto, para que eu não termine numa barra de tribunal. A beleza não é essencial para nada. Nada, repito. No entanto, por razões que eu desconheço, ela me atrai. Sou fascinado por ela. Sou um idiota, se você quiser, embora ache que para ser idiota eu precisaria agir de modo muito peculiar, quando o fato de ser fascinado pela beleza me vem naturalmente, como uma doença, um veneno do qual não consigo escapar. Seja como for, sou feio, mas quero o belo. Pode ser? Você permite que eu seja assim?

Se prestarem atenção, verão que sou o único prejudicado dessa condição porque o mundo funciona da mesma maneira tanto para os idiotas do sexo masculino quanto para as idiotas do feminino. Em outras palavras, enquanto eu, feio, quero as gatas; estas, gatas, não querem os feios como eu, mas os gatos, embora digam abertamente – e com muita desfaçatez – que tudo o que querem é um homem inteligente e carinhoso. Tudo é hipocrisia e aparência. Ou, como diria um filósofo: tudo é vaidade.

Então não se choquem. Quando chamá-la de feia, rebata: ‘feio é você’. Estaremos entendidos.

Minha pretensão é criar um dicionário para que os desavisados não caiam nas armadilhas do Tinder etc. O ‘etc’ se justifica porque não é só este aplicativo que produz os mesmos engodos, mas todos os outros, que eu me eximo de citar. Após muitos cliques, passei a perceber estas pequenas armadilhas que visam simplesmente a ludibriar o feio que está ali a procurar a mulher perfeita. Que visam colocá-lo diante da mulher que na foto parece sensacional, mas que ao vivo é um tribufu. Vocês conhecem o termo.

Registrarei esse livro, antes que me roubem a ideia, porque além de feio sou mesquinho e quero ganhar dinheiro com minhas produções. Publicá-lo gratuitamente na internet, em sites como o Bar do escritor? Jamais! Nem me pergunte por que quero dinheiro. - vocês já sabem. É bem conhecida a ligação entre dinheiro e mulheres lindas para que eu retome esse tema.

Dito isto e uma vez blindado contra os ataques que certamente recairão sobre minha complexada pessoa, passo aos termos e suas traduções.

III

“Vejamos o léxico.”

“Tinder etc.”

“Eu sei.”

“Posso dizer duas coisas antes, excelência?”

“Que seja breve.”

“Primeiro gostaria de lembrar que entrei com uma ação judicial contra os criadores desses aplicativos”.

“Ela tramita nesta Vara de Crimes Contra A Sensibilidade Acentuada Cuja Prática Se Exerça Em Universo Virtual?”

“Na VCCASACPSEUV? Não, senhor. Tramita na VDCQPCSAVNCDCD.”

“Na Vara De Crimes Que Provocam Comportamentos Semelhantes Ao Vício Na Cabeça Do Consumidor Desavisado. Certo, qual o segundo ponto?”

“Eu deixei de explicar no meu panfleto que as expressões utilizadas passaram a constituir um código pessoal. Sempre que a foto de uma mulher surgia para mim no aplicativo, eu dizia em voz alta, para mim mesmo, em que hipótese a foto se enquadrava. Isso tinha para mim uma utilidade prática porque me ajudava a descartar de forma mais rápida os perfis. Descartei tanta gente, excelência, que o Badoo me deu o prêmio de ‘Usuário mais seletivo’. Imagine o senhor que eu quase ganho o penúltimo prêmio dessa categoria.”

“Qual seria?”

“Vossa excelência não sabe?”, perguntou, surpreso.

“Não uso o Badoo e muito menos o Par Perfeito, meu senhor. Meu aplicativo destina-se exclusivamente ao sexo casual.”

"Posso saber de qual se trata?"

“Não é da sua conta. Agora, continue, por favor. O senhor não é o único a ser atendido hoje.”

“Pois bem, quase ganho o prêmio ‘Você é veado?’, que como os senhores sabem – ou não – é o penúltimo prêmio dessa categoria, sendo o último a afirmação peremptória: ‘Queima a rosquinha’. Enfim, cada vez que uma mulher surgia na foto, uma das palavras do meu pequeno dicionário me saltava do cérebro perturbado. Ao longo do tempo achei que podia ajudar as pessoas a fazerem o mesmo e evitarem as armadilhas.

O juiz que antes queria rir agora bocejava e se irritou com a demora:

“Está justificado, vamos ao léxico, pelo amor de deus!”

“Tinder etc.”

“SABEMOS.”

IV

LÉXICO DO TINDER ETC

MENTIRA ESCABROSA: aplica-se às mulheres que dizem ter vinte anos, mas na foto se vê que têm ao menos quarenta.

MENTIRA MALICIOSA: na foto de perfil, têm vinte anos, mas nas fotos seguintes, que não são de perfil, o cliente verá que não têm mais vinte anos. É o tipo qualificado do delito anterior, em que a presa é atraída pela idade falsa e pela imagem de tempos idos para depois descobrir que se trata de um engodo abjeto. Nessa mesma armadilha, há variantes: a menina de bochechas grandes que aos vinte você pegaria, mas que nas próximas fotos...

CONFUSÃO TEMPORAL: várias fotos, de épocas diferentes, são colocadas lado a lado, para que você não saiba como a mulher está agora. Falo por experiência pessoal: ela está, agora, como está na pior das fotos. As outras servem mais uma vez ao propósito de atrair a presa.

FOTO ÚNICA/MELHOR FOTO: as mulheres postam uma única foto porque, óbvio, em todas as outras elas aparecem como não querem aparecer: feias.

FOTO DESFOCADA: uma variante da última, mas você logo desconfia que é pior. Não têm sequer uma foto boa, então recortam uma imagem da melhor foto que tiraram com outra pessoa. Obs: geralmente se vê o braço de terceiros enlaçando sua cintura. Percebe-se que a foto não é de qualidade porque foi retirada da foto que existia fisicamente. Não existia em formato digital (daí se deduz a idade também).

FOTO ÚNICA DESFOCADA: combinação das duas anteriores.

MAQUIAGEM: um clássico. A mulher é linda na primeira foto, toda produzida e maquiada, parece uma boneca, mas você já sabe como aparecerá na segunda.

APELAÇÃO: fotos de biquíni, shortinho, sainha ou qualquer outro utensílio que a defina como gostosa. Logo depois vêm as fotos atuais.

HOMEM: isso mesmo. Do nada surge uma foto de homem.

TRAVESTI: cada um é cada um, não faço julgamento sobre inclinações sexuais. Tem muita gente sincera no aplicativo que se identifica de imediato. O problema é na figura seguinte:

TRAVESTI DISFARÇADO: o sujeito NÃO diz que é homem e aparece como se mulher fosse. Ainda pensa que engana alguém. Sacanagem pura.

MODELO: na cara de pau, postam fotos de modelos ou de atrizes. Na maioria das vezes, desconhecidas (para o cliente ter uma esperança). Desconfio que os aplicativos também postam essas fotos para dar uma elevada no nível e manter a ilusão de que você, sujeito feio pra burro, possa uma dia ter uma daquelas.

MODELO + REALIDADE: na foto de perfil há a modelo, mulher perfeita, dentro do padrão espetacular que está enraizado no seu imaginário, para logo em seguida virem as fotos reais, que eu não preciso dizer que são horríveis.

FOTO BONITA: há classificações diversas na categoria. Às vezes é uma foto bem tirada; faz você esquecer que está ali em busca de mulheres. Às vezes é uma boa foto da mulher feia, que num momento mágico se tornou bonita. Às vezes a mulher, em todas as fotos, porta óculos-escuros que lhe dão certo charme. O problema é não saber como são sem eles.

APROXIMADA: tiram fotos de parte do rosto, dos olhos, da boca. Às vezes (muitas vezes), os olhos são verdes ou azuis, belíssimos. Se o resto do rosto fosse igual, postariam o resto.

SÓ ROSTO: por que será?

FRASES: idem.

FOTOS DE BICHOS: corra!

DESENHO: corra mais depressa

V



“Chega”, falou o juiz que se mantivera o tempo todo calado. “Chega de ouvirmos esse energúmeno. Passemos à sentença.”

“Se vossa excelência me permite”, interrompeu o colega agora sonolento, “queria fazer uma pergunta ao réu.”

“Pois não”, concedeu o presidente.

“Quero também que se extraiam cópias da minha pergunta e da resposta do acusado para que sejam juntadas ao processo que tramita na VDCQPCSAVNCDCD.”

Concordância geral.

“Me diga uma coisa: não existem mulheres verdadeiras nesses aplicativos?”

“Existem sim, excelência.”

“O senhor nos dá a impressão de que tudo ali é farsa.”

“Não senhor, nem tudo é farsa.”

“E então?”

O réu não sabia o que dizer:

“Não compreendo.”

“Por que o senhor não vai atrás das verdadeiras?”

“O que seriam as verdadeiras, Doutor?”

“As que você considera como tais, ora.”

O réu baixou a cabeça, desolado:

“Não estão ali, excelência.”

O juiz sorriu, o olhar reconfortante de um pai:

“Talvez não estejam em lugar algum, a não ser na sua cabeça.”

No silêncio que se fez, uma mosca solitária fazia estardalhaço.

***

“Passemos à sentença. Creio que o réu precisa fazer reflexões mais aprofundadas sobre o tema e a pena que para ele cominamos lhe ajudará certamente neste propósito. Senhor Narciso, a decisão já estava preparada. Não se trata de pré-julgamento, nós simplesmente havíamos lido o seu processo e consideramos que se trata de matéria exclusiva de direito, sendo desnecessária qualquer dilação probatória.”

“Como o senhor deve imaginar: condenamo-lo à unanimidade. Isso mesmo. Não, não: consideramos o senhor culpado. Sua pena, muito debatida entre nós, também foi estabelecida de modo unânime. Deixem-se ver aqui, ‘vistos e relatados’, etc, o réu, aqui mesmo: ‘o réu conviverá, durante o período de um ano, exclusivamente na companhia de mulheres espetaculares; sairá com elas; dividirá a mesa, tomará porres; atualizar-se-á de seus assuntos e gostos peculiares, segurará suas cabeças na hora do vômito na latrina; fará compras (isso mesmo, não me interrompa) com elas; participará de todas (mais uma vez: TODAS) as discussões que elas venham a entabular; presenciará o momento em que se maquiam; carregará seus halteres na academia; colocará o pepino sobre seus olhos quando estiverem cheias de cremes em seus spas; ouvirá atentamente suas opiniões sobre política e filosofia; repetirá a seus ouvidos, com frequência a ser determinada pelo juiz da execução, o quanto são belas, inteligentes e importantes; em suma, tratará de ter uma overdose de presença feminina de alta qualidade estética’. Evidentemente que os meios de cumprimento da sentença serão fornecidos pelo Poder Judiciário.”

VI



Narciso saiu do julgamento e foi encaminhado à sala ao lado, seguro pelo braço por um policial. No caminho, refletiu sobre sua conduta indecente. Bateu invisivelmente no peito: “canalha medonho, traste, otário que não aprecia a verdadeira natureza do mundo, sua beleza espiritual. Mereces a morte, Narciso.”

Assim que entrou na pequena saleta, deu de cara com uma das mulheres mais perfeitas que já vira na vida. Cambaleou, deixando-se tombar sobre uma cadeira. O militar sorriu ao deixá-lo. O condenado pôs a mão no bolso em busca do Iphone para clicar no “Like”. Não estava com ele. A mulher lia uma revista de moda, na capa da qual outra tão perfeita quanto ela fazia uma pose esquisita, que no entanto lhe ressaltava a magreza associada com glúteos empinados de difícil descrição. Narciso engoliu a seco. Que coincidência fantástica que depois de um julgamento como aquele ele se deparasse, no mundo real, com espetáculo tamanho. A mulher sequer havia levantado os olhos de sua revista.

“Você é juíza?” perguntou, querendo com a indagação insinuar que por trás de tanta beleza ainda haveria um brilho de inteligência.

A garota levantou os olhos, passeou-os sobre o corpo dele indo dos pés à cabeça - com ligeira pausa na sua barriga - e depois voltou a ler. Nos lábios desenhou-se um sorriso que Narciso conhecia bem, por tê-lo visto tantas vezes.

Um engravatado entrou na sala:

“Ah, os dois estão aí. Muito bem. Jessica, é desse rapaz que você vai cuidar.”

Ela fez uma cara de espanto enojado. Logo depois, recompondo-se, esboçou um beicinho irresistível, que derreteria o coração de um homem das cavernas:

“Não pode ser outro não?”

“Decisão judicial se cumpre, minha querida. Fiquem à vontade para se conhecerem, afinal, passarão um bom tempo juntos.”

O coração de Narciso disparara. Cessaram as auto-reprimendas silenciosas. Jessica o olhou novamente e agora sua expressão era de ódio.

“Você não malha, pelo jeito”, falou.

E logo depois saiu sem dizer mais nada, com o sentenciado lhe seguindo os passos. “Tenho que recorrer dessa decisão. Um ano só? Pra um canalha como eu?”.

O juiz-presidente viu-o passar como um cachorrinho seguindo o dono no meio do saguão lotado. Pensou que os dois se mereciam. Foi despertado por uma mensagem do Tinder. Combinação! Olhou as fotos. Nem se lembrava mais de ter dado um like àquela mulher. Era perfeita. Perfeita demais. Redundância que acendeu uma luz vermelha. Modelo? Maquiagem? Decididamente modelo, ninguém tirava tantas fotos boas, com o semblante daquele jeito iluminado, se não fosse uma modelo. “Que merda”, pensou. E bloqueou o contato.


Biografia:
Do passado tanta irrelevância. Pro futuro: escritor, enquanto der... Publica ensaios, contos, poemas nos sites www.blogdofrancesbsb.blogspot.com.br e www.bardoescritor.com.br
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