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Foda-se, Albert?
Caio Lobo


I

Ernesto havia desligado o telefone há cerca de meia hora. Olhando o mar escuro pela varanda, bem além das janelas iluminadas dos prédios, ouvia o tilintar do gelo no seu copo de uísque, tilintar que ele mesmo provocava sem perceber. Pensava em Samuel e na sua iminente e inesperada chegada. Trinta anos se passaram desde aquela despedida, em terras da outra margem do atlântico. Agora emergia do buraco negro da memória resquícios de imagens, frases entrecortadas, promessas estranhas. Um arrepio subiu-lhe às costas, ameaça noturna velada. Como se temia assim um amigo?
A quem queria enganar? Não se tratava do amigo, mas de si mesmo. Temia aquilo que o amigo, com toda sua loucura visionária, tinha a capacidade de lhe mostrar. “Um louco, não se deve temer um louco?”, refletiu. Sammy responderia que a normalidade era invenção burguesa que Foucault soube tão bem desmascarar. De fato, talvez a vida valesse a pena no cerne da loucura, no epicentro de seu desenrolar caótico e irracional. O irracional como única solução para suportar a existência. A pergunta de Albert Camus...
Afastou os pensamentos. Samuel, agora com seus cinquenta anos, provavelmente não seria o mesmo. Seu coração teria descansado, viria com barba grisalha e filho nos braços. Quem sabe até um emprego fixo, um salário decente, aposentadoria garantida. Um burguês como ele. Sonhava em ver um Samuel assim porque, do contrário, seria um encontro doloroso. Para quem, não saberia dizer. Para aquele que tivesse respondido à questão de Camus da melhor maneira possível. Se os dois estavam vivos, é porque ambos haviam encontrado a razão para assim permanecer, e ao encontrá-la, teriam matado a charada.
Mas Ernesto sentia que não havia matado a charada. E se perguntava: “viria ele com aquela determinação louca de cumprir suas promessas, custasse o que custasse?”. E novamente o arrepio, a dose engolida às pressas, o tilintar do gelo.
A campainha tocou.


II

O homem era um trapo só. Barba e cabelos enormes, roupas sujas, cheiro de cigarro. Ernesto confundiu-o logo com um mendigo e preparava-se para fechar a porta e interfonar para o porteiro – por que havia deixado subir um traste daqueles? – quando se deparou com os olhos negros e perfurantes do amigo. O abraço forte provocou uma tempestade de poeira pela sala do apartamento. De onde ele vinha, do deserto?
“Seu filho da puta”, gritou Samuel, “tá bem hein?”
E foi entrando, como se a casa fosse sua. Jogou a mochila imunda sobre o sofá branco-imaculado e continuou, em voz alta:
“Eu quero isso aí que você tá bebendo.”
Enquanto Ernesto lhe servia o uísque, Samuel não parava de falar: perguntava e não esperava respostas; emendava um assunto no outro; lembrava subitamente de uma de suas aventuras; pegava uma obra de arte da sala e a encarava como se fora um objeto vindo do espaço. Finalmente, quando ia sentar-se no sofá, o anfitrião, temendo o pior, chamou-o – pegando no seu braço – para se sentarem na varanda. Samuel deu-lhe outro abraço e foi na frente.
“Isso é que é vista.”
“Obrigado.”
“Pena que você esteja aqui em cima.”
O outro não entendeu. Sentaram-se. Samuel virou o copo de uísque num só trago e pegou a garrafa que o amigo havia colocado no parapeito.
“Então?”, perguntou, “parece que a vida sorriu pra você.”
A afirmação vinha acompanhada daquele sorriso lateral, ácido, irônico, que lhe era peculiar. Ernesto deu de ombros:
“Estou bem.”
“Está?”
Ele virou o rosto, olhando a imensidão. Samuel notou seu constrangimento e iniciou um diálogo mais ameno. Contou-lhe de suas viagens mundo afora, de suas aventuras, enrascadas, situações cômicas. Contou-lhe como quase caíra de um penhasco numa selva africana e como uma mulher amarela lhe ensinara a respirar na execução do sexo tântrico. Falou de paisagens e de pessoas estranhas, de cenários longínquos e costumes exóticos. Disse que deixou filhos espalhados pelo mundo e levou porrada de sujeitos violentos em quase todos os continentes. Nunca ganhava uma briga, mas também nunca fugia de uma. Estava acostumado a simplesmente lutar, e a vida ainda não o havia derrotado. Naufragou no pacífico e ficou três dias à deriva, quando foi salvo por mergulhadores em busca de pérolas. Nos Alpes, pisou em falso durante uma escalada e terminou entalado entre duas pedras, com dois mil metros de queda abaixo dos pés. Um suíço e sua esposa o salvaram. Santiago, desistiu no caminho, se achou no direito de, já que Paulo Coelho também não o completara a pé. “Essas coisas de peregrinação”, arrematou, “estão dentro de nós. Não num determinado percurso geográfico.”
Quando parou, perguntou sobre o amigo. Este lhe contou sua história, bem mais sucinta. História tão comum que nem valia a pena, mas já que ele insistia. Havia se dado bem no serviço público. Acharam-no competente, deram-lhe funções cada vez mais polpudas. Vivia vem, comprara aquele apartamento. Tivera casos, casara-se. Nos fins de semana ia ao clube ou ao jardim zoológico “dar pipoca aos macacos”, como diria Raul. O trabalho? Era um saco, mas fazer o que? Tinha-se que viver, não é verdade?
Samuel interrompeu-o:
“E os livros?”
“Que livros?”
“Os que você disse que ia escrever.”
Ernesto soltou um riso forçado:
“Sonhos.”
Samuel fechou a cara. Os dois ficaram em silêncio, o visitante tentando dissecar a alma do companheiro, enquanto este evitava o gesto inquisitivo. Samuel levantou-se bruscamente e foi buscar algo na mochila. Retornou com um objeto coberto por uma flanela empoeirada. Começou a desenrolá-la lentamente, em pé diante de Ernesto.
Quando terminou, o amigo reconheceu o brilho de um revólver prateado e seu coração deu um salto. Samuel apontou a arma para a testa do anfitrião e começou a puxar o gatilho.


III

“Onde você a comeu?”
“Ali, encostado naquele carro.”
“Filho da puta! Preciso de mais uma dose.”
“Ei, vocês aí, meu amigo precisa de uma dose.”
TOMAR NO CÚ, SEUS BÊBADOS.
“A gente tem erva”, falaram umas garotas que passavam, sorrisos maliciosos nos lábios.
“Que horas são?”
“Por que, vai parar? A gente aceita sim, meninas, se não for muita intrusão de nossa parte.”
Esconderam-se num prédio mais acima, sentados no gramado. Àquela hora, nenhuma alma viva; só o agito da rua abaixo deles. Um ponto de observação excelente. Começaram a fumar. De onde vocês são? O que fazem aqui? Como duas meninas lindas desse jeito ficam andando sozinhas madrugada afora? Elas sabiam se cuidar, uma fazia Krav Magá. Conversa vai, conversa vem. Uma queria dar ali mesmo. A outra vetou o projeto. Distribuiu telefones e pediu que eles ligassem no dia seguinte.
Chapados, completamente chapados. No meio da rua escura, voltando para o metrô, ouviram alguém gritar em espanhol: “são aqueles ali”. Olharam pra trás e um grupo de jovens de cabeça raspada corria na direção deles. Fugiram instintivamente, o coração acelerado. Pularam as catracas do metrô, entraram num vagão quase vazio que já fechava as portas. Os perseguidores batiam no vidro, um com um pau na mão, outro com um canivete. Ernesto, branco como um fantasma; Samuel mostrando-lhes o dedo do meio.
Quando se foi o perigo, viram que não estavam sozinhos. Um mendigo e sua viola descansavam, largado sobre dois bancos.
“Meu velho, toca alguma coisa.”
“Allez vous faire foutre!”
“Ainda tenho uns trocados.”
Como um autômato, levanta-se o mendigo, puxa o violão do case e entoa melodias de cortar corações românticos. É francês. Canta Les deux guitarres, de Aznavour, e produz lágrimas nos olhos de Ernesto. No final ele quer lhe dar todo seu dinheiro, mas Samuel o impede (como iam comprar mais birita?).
“Que te deu?”
“Já ouviu música mais bonita?”
“Umas mil, pelo menos.”
Um sujeito esquisito vem lhes propor negócio suspeito. Aponta para uma esquina onde se vê a sombra de mulheres deformadas pela luz dos postes. Ao perceber que são brasileiros, tenta falar português: “boceta. Barata. Boa qualidade”. Tem um sotaque italiano.
“No boceta”, e aponta para Ernesto: “este aqui, veado, boiola, dá o toba, gosta de “ver-dura”.
O italiano faz um esforço para compreender, espremendo as pálpebras. Ernesto ri que não se aguenta.
“Frutinha?”, pergunta o mercador de corpos.
“Isso.”
“Também, também. Bocetas com caralhos, pra todo gosto.”
Eles se esquivam, rindo e soltando piadas. O outro lhes faz um gesto nada amigável com o braço. Na porta do hotel, percebem que perderam as chaves. Batem e ninguém atende, Ernesto puto, Samuel rindo. Sentam-se na calçada. Talvez se ligassem para as meninas. Ligam. Não atendem, devem estar no décimo sono.
“Foda-se, dormimos aqui.”
“Puta que o pariu.”
“Tá na chuva é pra se molhar.”
O universo é misterioso, as estrelas olham – curiosas - os dois filhos de Deus largados no cosmos. Samuel conversa com o céu, baixinho, conta-lhe segredos. Ernesto tenta decifrar aquelas palavras, mas não sabe se são sons verdadeiros ou se está a imaginar coisas por causa da droga.
“Descobri a resposta.”
“Qual era a pergunta?”
“Camus.”
“Que é que tem?”
“Ele dizia que o maior questionamento filosófico que existe é o do suicídio.”
“Desenvolve.”
“Se a vida vale a pena ser vivida ou não. Porque se não vale, você, se quer ser coerente com a existência, deveria matar-se.”
“Radical demais, não?”
“Pensa um pouco. Se tá ruim, você não pode reclamar. Tem nas mãos a saída, a possibilidade de deixar a vida. Então só vive se ela, pra você, valer a pena. Ou então não vive. ‘Vive’ como os outros, cadáveres que não sabem ainda que o são.”
“Sim, mas qual é a resposta?”
“Qual é a pergunta mesmo?”
Riram.
“A resposta, pra mim, é isso aqui. Quero viver assim. Like a rolling stone”. Respirou como se sugasse o ar do quarteirão inteiro. “E você, che?”
“Quero escrever sobre isso.”
“Isso?”
“Isso tudo”, fez um gesto que abarcava o universo.
“Então pronto. Descobrimos ambos. Se não fizermos isso, nos matamos.”
“Não tenho coragem de me matar. Você me mata.”
“E você me mata, se eu não viver de acordo com meu sonho.”
“Combinado.”
Apertaram as mãos. Tinham vinte anos.


IV

“Afasta isso.”
“Por que?”
“Porque pode disparar.”
“É minha intenção disparar.”
“Não, não é.”
“Prefiro disparar do que ver você assim.”
“Assim como?”
“Morto.”
“Não estou morto.”
“É o que você pensa.”
“Você não sabe de nada. Afasta isso!”
“Tá com medo.”
“Claro.”
“Medo de que?”
“Da sua loucura.”
“Medo de que, che?”
O outro olhou fundo o cano do revolver.
“Medo de que, me diz? De morrer? Mas você não viveu.”
“Quem disse?”
“Onde estão seus livros?”
“Nem todo mundo realiza seus sonhos, Sammy.”
“Você escreveu uma linha?”
“Escrevi várias.”
“E depois?”
“Depois nada. Não publiquei. Não quiseram.”
“E depois?”
“Depois o que, porra?”
“Você parou.”
“Parei.”
“Desistiu?”
“Não desisti. Parei.”
“Qual a diferença?”
“A vida me engoliu.”
“Má-fé sartreana.”
“Foda-se Sartre!”
“Diz que você não quer.”
“O que?”
“Que eu atire.”
“Não quero.”
“Olha pra mim, veado!”
Seus olhos se encontraram. Ernesto calou-se.
“Pai?”


V

Um menino de pijama, os olhos semicerrados, os cabelos assanhados, observava a cena do meio da sala.
“Oi Pedrinho, por que você não tá dormindo?”
“Ouvi um barulho.”
“Volte pro quarto.”
O menino não se mexeu.
“Esse é um amigo do papai. Estamos brincando. Vá pra cama, daqui a pouco vou falar com você.”
Samuel continuava com a arma apontada para a testa do amigo, mas se virou levemente para cumprimentar a criança:
“Oi, Pedrinho. Não se preocupe. Daqui a pouco papai estará livre.”
Ernesto fez menção de se levantar, mas Samuel empurrou sua testa com o cano do revólver.
“Vá Pedrinho. Chego já.”
O menino se foi, desconfiado, olhando para trás.
“Isso não muda nada.”
“É sua maneira de limpar a consciência?”
“Minha consciência está tranquila. E a sua?”
Permaneceram assim uma eternidade. O gelo não tilintava mais nos copos. Tudo era silêncio.
Samuel notou que havia uma caneta para anotar telefones numa mesinha logo após o vidro da varanda. Esticou-se, pegou-a e jogou no centro diante de Ernesto. O outro fez um gesto de incompreensão.
“Vai. É tua chance.”
“Vai o que? Você enlouqueceu de vez, meu caro.”
“Nada disso”, mostrou o apartamento, “importa.”
“Como você sabe, só porque nunca desejou?”
“Não. Eu não desejei, mas a questão não é essa. É que você não desejou. Mas não admite.”
“O que você quer que eu escreva?”
“Eu? Não quero nada. Você é quem quer.”
“Tá bom, Sammy, a brincadeira já durou demais.”
Ele pressionou lentamente o gatilho:
“Não estou brincando.”
Seus olhos loucos davam medo, mas Ernesto sentia um medo ainda maior do que aquela ameaça: o medo de não ter o que escrever, de ter perdido a verve, de ter destruído todo o resquício de sonho. Agora a arma no rosto era um mal menor, de uma irrelevância tamanha que subitamente lhe atacou um arrependimento excruciante. Afinal, teria o louco razão? Ele olhou para o pulso e escreveu a primeira linha no braço: “Ernesto havia desligado o telefone há cerca de meia hora”. As palavras surgiram magicamente. Esqueceu-se da arma sobre a testa. Escreveu, escreveu, escreveu. Perdeu-se em si mesmo, lembrou-se dos trinta anos passados e da promessa feita num dia de êxtase - da promessa de ser ele mesmo.
Quando finalmente parou e levantou os olhos, a arma estava sobre a mesa. Samuel desaparecera. Ficou a perguntar-se de quem era aquele revólver. Comprou-o? Onde o comprou? Sua mão tremia. Sua testa suava, embora bem no meio um círculo de gelo tivesse se formado.
Pedrinho trouxe a mãe pelo braço até a sala, preocupado. Os dois se aproximaram de Ernesto. Viram a arma sobre a mesa e seu ar perdido. Havia rabiscos por todo seu corpo, nos braços, nas pernas, na barriga. Havia versos e poemas na mesa. Havia contos nas paredes.
“Meu amor”, ele disse ante os olhos assustados da esposa e do filho, “quero que você se desfaça disso.”
E entregou-lhe o objeto mortal, cujo brilho se perdera.


Biografia:
Do passado tanta irrelevância. Pro futuro: escritor, enquanto der... Publica ensaios, contos, poemas nos sites www.blogdofrancesbsb.blogspot.com.br e www.bardoescritor.com.br
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