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Eu sei que você não vai contar pra ninguém
J. Athayde Paula

Num domingo de março um rapaz adentrou a Catedral do Sagrado Coração de Jesus durante a missa, foi ao confessionário e revelou ao padre Chiquinho que havia praticado um assassinato de maneira extremamente cruel. Contou detalhes do crime e depois foi embora plenamente confiante da absolvição divina. Padre Chiquinho esperou a missa terminar, em seguida dirigiu-se ao 11º. Distrito Policial e fez a denúncia sem revelar absolutamente nada do homicida aos tiras, isso em decorrência dos segredos eclesiásticos da confissão. Os investigadores seguiram as orientações do padre Chiquinho e encontraram o corpo num matagal de um trecho particularmente selvagem às margens do córrego Jacutinga. Seu corpo estava carbonizado, mas documentos pessoais encontrados na bolsa a tiracolo revelaram tratar-se de José Henrique Toledo, travesti já conhecido da polícia pelo codinome Margô. O médico legista afirmou que Margô havia sido queimada viva. Margô tinha feições tão femininas, corpo tão definido, voz tão suave que muitos homens só descobriam que era travesti quando ela se despia. Eis os fatos, conforme relato do traveco Bilu: Margô começava a se arrumar por volta das cinco horas, calçava chinelas rasteiras vermelhas combinando com a cor das unhas dos pés, com artes de prestidigitador escondia os órgãos genitais masculinos dentro de uma sumária calcinha branca, vestia microssaia jeans, botava uma das muitas blusinhas tomara-que-caia, ajeitava os seios (frutos da aplicação de silicone e de repetidas dosagens maciças de estrogênios) de maneira que ficassem sedutores para uma clientela específica; amarrava um lenço de seda no pescoço com o propósito de disfarçar o pomo-de-adão e maquiava-se meticulosamente, como havia aprendido quando, em um período menos atribulado de sua vida, trabalhava num salão de beleza frequentado pelas mulheres da sociedade londrinense. Terminava seus preparativos aí por volta das seis, seis e meia, e logo que caía o crepúsculo pegava sua bolsinha a tiracolo, deixava o quarto que alugava na Rua Moravia e andava quinhentos metros até o seu ponto de prostituição, um dos muitos ao longo da Avenida Leste-Oeste. No dia 15 de março, às nove da noite, contou Bilu à polícia, estavam ele e Margô no ponto que compartilhavam quando uma camionete antiga, de cor amarelo-ouro, estacionou junto ao meio-fio. O motorista, um sujeito bem vestido, cara lisa de quem se barbeava todos os dias, fez um sinal para que Margô se aproximasse.
     Combinaram o preço, Margô sentou-se ao lado do moço, este acelerou e o veículo seguiu pela avenida sob a luz fraca dos poucos postes de iluminação pública. Constam ainda no boletim de ocorrências outros depoimentos: o travesti Ninon afirmou que naquela noite de 15 de março fora abordado por rapaz com cara de modelo – talvez fosse mesmo um modelo profissional – bonito e cheirando a perfume caro, que o dito galã guiava uma picape verde-limão e que não topou fazer o programa com o bonitão porque achou muito estranho o olhar do cara, sim, era isso, o posudo tinha uns olhos assim muito brilhantes, parecendo brasas, olhos iguaizinhos aos de um de seus tios que morrera enlouquecido pela sífilis; que viu quando, a uns cinquenta metros adiante, o utilitário antigo parar perto da Margô, então na companhia de Bilu; que Margô entrou no veículo e seguiram em frente, parece que em direção à cidade de Cambé. Podia ser Cambé, mas também poderia ser Ibiporã ou Jataizinho ou Rolândia, ou...

     Num domingo de abril, nove da manhã, durante a missa um rapaz entrou na Catedral do Sagrado Coração de Jesus e foi direto ao confessionário onde padre Chiquinho ouvia os fiéis em confissão. Padre Chiquinho sentiu vontade de chorar, tamanha a angústia, ao reconhecer o assassino que tornara suas noites uma eterna vigília, seus cabelos mais brancos e sua voz mais entristecida. Através das treliças da janelinha do confessionário padre Chiquinho viu o sujeito ajoelhar-se à sua frente e despejar em seus ouvidos cansados mais um ignominioso homicídio. O sujeito disse onde o corpo jazia, relatou que dessa vez fizera uma degola usando uma navalha de cabo de osso, herança do avô, e que nunca pensara que os nervos e vértebras do pescoço fossem tão difíceis de seccionar. O corpo, disse o assassino, ele o tinha jogado às margens do córrego Cambezinho. Depois que o sujeito saiu, padre Chiquinho entrou na Kombi paroquiana e foi ao 11º. Distrito Policial, onde contou o pecado sem apontar o demônio, impedido como estava pelos segredos eclesiásticos da confissão.
     Em depoimento à polícia a prostituta Carminha relatou que na noite de 15 de abril tinha acabado de fazer um programa no motel Azaléia e que voltava de táxi para o seu ponto na Avenida Leste-Oeste, ponto este próximo ao da prostituta Leiloca, quando viu uma camionete, dessas antigas, não saberia dizer qual a marca, estacionar em frente da amiga. Leiloca conversava ainda com o cara quando Carminha saltou do táxi e foi para o seu lugar. Nesse momento a amiga a chamou, pedindo para trocar uma nota de cem reais. Com a Leiloca era assim, estabelecia todo o cronograma com antecedência: o tempo do programa, o lugar em que fariam sexo e pagamento adiantado. Contou Carminha à polícia que pensou em negar ajuda à amiga, já que a noite ainda era uma criança e ela, efetivamente, iria precisar de troco para os encontros que aconteceriam no passar das horas. No entanto estava curiosa, quem é que dirigia um veículo tão antigo quanto aquele, um carro cor de abóbora, veja só, cor de abóbora, mas que coisa! Aproximou-se da picape e atendeu à solicitação da amiga: pegou os cem reais, guardou na bolsa e tirou uma nota de cinquenta reais, duas notas de vinte e uma de dez, que entregou a Leiloca. A amiga embolsou uma nota de dez e outra de vinte, o preço combinado com o freguês, e devolveu ao sujeito as outras notas, uma de vinte e outra de cinquenta. Leiloca entrou no veículo e partiram. Como era o sujeito? Oh, era um cara lindão que só vendo. Tipo assim galã de novela que a Globo passava durante o dia, à tarde, se é que o doutor delegado estava entendendo o que ela queria dizer. O delegado não entendia nada de novelas, ela que fosse mais clara, por favor. Mas Carminha não podia ser mais clara no depoimento, afinal a noite do ocorrido era muito escura, tipo assim nublada, o delegado tava sacando? E se bem lembrava, tinha chovido de madrugada, lá pelas três ou quatro da matina. Um saco, esse negócio de chuva estragava o trabalho que se tornava mais árduo a cada dia, já que nesses tempos de internet os vídeos pornôs satisfaziam assim mais ou menos os clientes solitários, não achava isso o delegado? O delegado não achava nada, dispensou Carminha e levantou as mãos para os céus. A coisa estava muito enrolada.

     Numa manhã de segunda-feira de maio padre Chiquinho deixou a sacristia e foi se sentar num dos bancos da Praça da Catedral. Estava muito abatido, o rosto chupado, o corpo encurvado, as pernas bambas. Ficara duas semanas internado no Hospital Universitário, tinha dores por todo o corpo, diarreias, ânsias de vômito e outros males físicos – foi submetido a inacreditáveis baterias de exames e nenhuma doença tinha sido diagnosticada. Ao fim de tudo, os médicos chegaram à conclusão que padre Chiquinho sofria apenas estafa física e mental. Recomendaram repouso e boa alimentação, após o que foi liberado. Levaram-no de ambulância para a casa de uma irmã de sangue que residia no Jardim Leonor – isso numa sexta-feira. Padre Chiquinho recebeu carinho, atenção, desvelo e comida saudável, mas na segunda-feira ninguém conseguiu segurá-lo na cama – nem a irmã atenciosa, nem o cunhado se sentindo muito importante com a presença do religioso em sua casa e nem os sobrinhos empolgados com a novidade ou a vizinhança alvoroçada com a honraria. Muniu-se de uma bengala, pegou o ônibus circular e foi para a Catedral. Lá, na Casa do Senhor, ninguém o incomodou, o ambiente era fresco, silencioso, inundado de energia celestial. Pois bem, saíra para tomar um sol matutino, aspirar a brisa envolvendo as grandes, majestosas e antigas árvores da praça – e ali estava o padre quando viu estacionar na rua, a quarenta passos do banco onde se sentava, uma camionete Studebaker de cor alaranjada, ano 1949, brilhando como se houvesse acabado de sair da fábrica. E da picape apeou um rapaz alto, magro, porém forte, vestindo camisa xadrez em tons cinza e azul, calça jeans e botas de caubói. Sentou-se ao lado de padre Chiquinho, encarou-o. E o sacerdote teve um estremecimento de horror. Aquele rosto, aquele maldito rosto!
     – Procurei você ontem, meu chapa. Queria te contar mais um crimezinho. Onde diabos você se meteu?
     – Estive doente – disse padre Chiquinho.
     – Dessa vez é uma estudante da UEL. Bacana, não? Uma estudante de medicina. Vou te dizer uma coisa, meu chapa, não sei como essas garotas metidas a bestas ainda não sacaram que homens bonitos como eu podem ser perigosos.
     – Onde deixou o corpo?
     – Nas margens do riacho Taquara. Joguei o corpo lá na sexta-feira. Então faz três dias, deve estar bem podre.
     – Não teme que eu o denuncie?
     – Qualé a sua, velhinho? Você tem o rabo preso com o seu Deus. Eu sei que você não vai contar pra ninguém.
     O rapaz tirou o maço de Hollywood do bolso sob o olhar atento de padre Chiquinho. Pegou um cigarro, acendeu-o, soprou fumaça no sacerdote, riu de um jeito muito debochado e levantou-se.
     – Até o próximo mês, velhinho. E esteja todos os domingos no confessionário, ouviu? Voltarei com novidades.
     A audácia do sujeito, sua arrogância, a impertinência, a certeza absoluta da impunidade deixaram o sacerdote com o estômago revirando de nojo. Esse seria o terceiro crime. O rapaz mudara muito deste a primeira confissão. Quando viera dizer sobre o assassinato do travesti Margô, parecia estar sinceramente arrependido, culpara os genes pelo impulso homicida, a infância atroz, os desvios e amizades erradas na adolescência. Quando veio confessar a morte da prostituta Leiloca, já não culpava nada e nem coisa alguma pelos seus atos, com voz chorosa dissera incapaz de se conter. E que sentira prazer. Prazer sexual. Tivera um longo, estranho e infinitamente prazeroso orgasmo. E agora vinha contar sobre a universitária. E estava assim, debochando. Aonde iria parar aquilo? Padre Chiquinho ficou olhando o rapaz dirigir-se para a Studebaker alaranjada num passo descansado, entrar no veículo e acenar-lhe um adeusinho antes de dar a partida. Só depois que a camionete se perdeu no trânsito intenso é que o sacerdote curvou-se e pegou uma carteira de identidade caída ao pé do banco. Ao tirar os cigarros Hollywood do bolso da camisa o documento viera preso ao maço e caíra ao chão sem que o sujeito desse pela coisa. “Eu conversei com o assassino, mas eu não estava no confessionário e nem preso ao sigilo eclesiástico”, diria pouco depois padre Chiquinho ao delegado Silas Baruch, do 11º. Distrito Policial. “Vamos enjaular o desgraçado e jogar fora a chave da cela”, concluiu com tanta energia que ninguém ousaria dizer que ele estivera hospitalizado recentemente.
     


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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