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O quarto do pavor
J. Athayde Paula

A hospedaria para rapazes era um sobrado amarelo perto do jornal que havia acabado de me contratar. A proprietária, dona Ismênia, era uma viúva magra, de olhar taciturno e voz áspera como limalha. Teria uns cinquenta anos, mas o vestido escuro e as maneiras bruscas davam-lhe uma aparência de mais idade. Levou-me para o segundo andar e mostrou-me o quarto amplo. Havia três pequenos guarda-roupas ocupando uma parede e a seguir três camas enfileiradas, cada qual ladeada por um armário de latão semelhante aos das enfermarias dos hospitais públicos. Abriu-me um dos guarda-roupas contendo dois pares de toalhas de rosto e banho, algumas mantas corta-febre e um acolchoado; mostrou-me com a mão a última das camas enfileiradas.
– Aquela é a sua. Você queria um quarto exclusivo, mas infelizmente não posso atender seu pedido. Terá que dividir o cômodo com outra pessoa, é o máximo que posso fazer. O pagamento é semanal. Exijo que se tome banho todos os dias, o banheiro coletivo fica no fundo do corredor. O café da manhã é das seis às oito. Almoço das onze às treze. Jantar das dezoito às vinte e duas horas. – Olhou-me dentro dos olhos: - Peço que suporte com bondade seu colega de quarto. Ele tem mais ou menos a sua idade... O problema é que você tem uma alma velha.
Depois que ela saiu, arrumei minhas coisas no guarda-roupa, coloquei os produtos de higiene no armarinho, tirei os sapatos e me estiquei de comprido na cama. Não conseguia parar de pensar na frase de dona Ismênia assegurando que eu tinha uma alma velha. Conclui depois de muitas conjeturas que ela me achava maduro para a idade – comecei a trabalhar como repórter de jornal aos dezessete anos, aos vinte e quatro eu já havia passado por redações dos três Estados do Sul; já vivera em sete anos o que muitas pessoas não viveriam durante toda a vida. Por fim peguei no sono e dormi algumas horas; às cinco da tarde tomei banho, saí, tomei uma cachaça no boteco da esquina e depois fui jantar.
Havia quatro pessoas na sala de estar vendo televisão ou conversando. Três rapazes e uma garota. Ela levantou-se e se apresentou como filha de dona Ismênia. Chamava-se Nora. Loura falsa, alta, sapatos de salto baixo, um shortinho azul que deixava metade das nádegas à mostra e bustiê roxo mal encobrindo os seios arrogantes. Era tão provocativa que nem dei atenção aos rapazes quando ela os apresentou.
– Já conhece a parte funcional da casa? – perguntou-me e, sem esperar resposta, pegou-me pela mão como se fôssemos íntimos e levou-me para a cozinha, apresentou-me às cozinheiras, uma negra gorda de carapinha branca e um varapau de rosto macilento e compostura sombria, ambas no momento supervisionadas pela dona Ismênia; mostrou-me a sala de jantar sendo arrumada por uma mocinha insossa, fomos por um corredor clareado por uma lâmpada de 60 velas – Norma apontou uma porta à esquerda:
– Este é o meu quarto.
Abriu a porta no fundo do corredor, indicou uma edícula:
– As empregadas dormem ali. Agora vamos comer.
No transcorrer do jantar foi um entra-e-sai de pensionistas que não guardei naquele momento o nome de ninguém – logo após serem apresentados eu os varria da memória. Meus olhos fixavam-se em Norma, os hormônios em ebulição, o desejo de possuí-la me comendo as entranhas. Ela ajudava a mãe a servir a mesa e brincava com os carinhas, mexia em seus cabelos, beijava-os nas faces e cochichava segredinhos divertidos em seus ouvidos – todos então me olhavam e morriam de rir. Uma intimidade de amantes. Sim, tive certeza, todos já haviam experimentado o sabor das carnes daquela imponente vaca premiada.
Quando me levantei da mesa, ela se aproximou, enfiou a mão no bolso da minha calça deixou lá uma objeto pequeno. Colou os lábios em minha orelha e murmurou:
– É a chave do meu quarto. Memorizou bem onde ele se localiza? Te espero peladinha à meia-noite.
Saí para a rua, dirigi-me ao boteco, sentei-me a uma mesa e pedi uma cerveja. Estava no segundo copo quando um rapaz lourinho sentou-se à minha frente. Reconheci-o, era um dos pensionistas que fora me apresentado durante o jantar.
– Vamos dividir o mesmo quarto – ele disse.
– Tudo bem. Peça um copo para o atendente, vamos dividir também esta cerveja.
Chamava-se Iran. Ficamos jogando conversa fora, ele contou-me que era funcionário numa concessionária de veículos; falou-me de uma boate que costumava frequentar aos sábados; de garotas bonitas que conhecia, algumas delas disponíveis caso eu me interessasse e, por fim, perguntou-me se a filha da dona da pensão tinha me convidado para transar no quarto dela.
– Disse que vai me esperar à meia-noite, mais pelada que uma criança recém-nascida. Por quê?
– Aquele quarto não é o dela. Não vá. Vou te contar um segredo, Nora faz isso com todos os novatos na pensão. Fez comigo, com todos nós. Você entra no quarto e terá a maior surpresa da sua vida. Cara, eu fiquei com tanto medo que mijei nas calças. Olha aqui o meu braço, vê como tá arrepiado? Fico assim toda vez que lembro do cagaço que passei.
– O que aconteceu?
– Nem queira saber.
– Conta aí.
– Fui atacado por um lobisomem. Aliás, por uma fêmea de lobisomem. Sei que era fêmea porque os grunhidos dela eram finos. Se fosse lobisomem macho, seria um som grave, é lógico.
Só não caí na risada porque o rosto de Iran estava muito pálido, de alguém revivendo momentos terríveis. Mas que aquela conversa tinha descambado para comédia pastelão, eu não tinha dúvida. Resolvi zoar com o carinha.
– Então a Nora se transforma em lobisomem...
– Não é a Nora! Depois que fui atacado pelo bicho, atacado sim, veja essas marcas – disse abrindo a camisa e mostrando o peito lanhado por unhas – saí do quarto num carreirão e quando cheguei à sala, lá estava todo mundo me esperando para curtir com a minha cara. A Nora e os outros pensionistas. Tiraram sarro do meu cagaço durante uma semana. É por isso que tô dizendo, não vá ao quarto esta noite!
– Eu tenho que ir, Iran.
Mas por quê?!
– Acontece que eu sou jornalista. Só por isso.
A gente tomou mais uma cerveja, falamos de outros assuntos mais pé-no-chão e meia-hora após Iran se retirou, já que tinha um encontro com uma garota. Fiquei bebericando até dar meia-noite. Então voltei para a pensão.
*
A sala de estar estava às escuras, andei por ali às apalpadelas até chegar à sala de jantar também mergulhada nas trevas – rumei pelo corredor pouco iluminado. Lembrava-me perfeitamente da localização do quarto que Norma dissera ocupar, tirei a chave do bolso, introduzi-a no buraco da fechadura, destranquei a porta suavemente. Entrei, fechei cuidadosamente a porta às minhas costas, porém sem chavear, que precaução não faz mal a ninguém. Era um quarto grande cujo ambiente mesclava-se de sombras e luz vacilante de um abajur ao lado da cama; do banheiro vinha o som de água escorrendo do chuveiro. Sentei-me na borda da cama e esperei. Não estava com medo, apenas curioso. Meu falecido avô tinha sido um médico dedicado aos estudos das doenças raras, em sua casa havia uma imensa biblioteca abordando todos os tipos de anomalias, lembro-me que na infância e adolescência os grossos livros me fascinavam, eu passava tardes inteiras no meio dos volumes devorando páginas e páginas, fazendo perguntas de todo o tipo ao velho, que geralmente me fazia companhia transbordando de entusiasmo com o neto que, ele sonhava, poderia seguir seus passos na medicina. Por essa época, lembro-me, artigos abordando a Hipertricose Lanuginosa Congênita, popularmente conhecida como Síndrome de Lobisomem, tinham a minha especial atenção. Pouquíssimas pessoas tiveram a possibilidade de observar um ser humano portador dessa mutação genética. Eu era, pois, um tremendo felizardo.
Estava mergulhado nesses pensamentos quando ouvi um barulhinho, olhei para o banheiro e vi que a porta se abria. Emoldurado pela forte luz às suas costas, vi se destacando um ser de aproximadamente um metro e sessenta de altura, sem roupas e com o corpo, da cabeça aos pés, completamente coberto de lanugem longa e escura. Se eu não fosse um sujeito de alma velha – como queria dona Ismênia –, acostumado a escrever reportagens sobre os mais estranhos acontecimentos, se não tivesse uma boa cultura para um jovem de vinte e quatro anos, se não fosse pelos conhecimentos adquiridos nos livros de medicina do meu avô, confesso que teria me levantado da borda da cama e fugido como um doido daquele quarto. Mas permaneci ali, firme, olhando para aquela coisa – em tudo idêntica a qualquer lobisomem que vemos em histórias em quadrinhos ou filmes de terror. A criatura, porém, não me viu, já que o quarto estava na penumbra e não haveria razão plausível para ela esquadrinhá-lo com metódica atenção. Lembrei-me dos cortes no peito do Iran, meu colega de quarto, e soube de imediato que tinha que me apresentar sem qualquer vestígio de animosidade ou medo. Aquela criatura pequenina, frágil, não era dotada de ferocidade, deduzi. O que a fazia tão agressiva era apenas o impulso natural de autodefesa.
– Boa noite, mocinha – eu disse, levantando-me da borda da cama. Ela ficou instantaneamente paralisada pelo susto, em seguida arreganhou os dentes pequenos, uniformes, brancos, bonitos, perfeitos – se estivesse sorrindo seria o sorriso mais lindo que uma garota poderia desejar – e rosnou como faria uma cadela pitbull pronta para estraçalhar. Eu ali, firme, encarando-a. Ela ergueu os braços em posição de ataque esperando que eu fugisse, mas o que fiz foi caminhar ao seu encontro calma e amigavelmente. À medida que me aproximava, a criatura começou a ser tomada pelo terror, os belos olhos negros arregalaram-se e foi andando para trás até encostar-se à parede azulejada nos fundos do banheiro. Ali ela encolheu-se dobrando os joelhos, os braços cruzados no peito protegendo os seios, aqueles dois montículos cobertos de penugem escura.
– Não me machuque – disse numa voz de choro. Era uma voz macia, baixa e melódica.
– Não vou te fazer mal, garota. Como é o seu nome?
– Camila.
– Não tenha medo de mim, Camila. Quero ser seu amigo.
Peguei no gancho da parede a grande toalha branca e a dei para que a criatura se cobrisse. Ela se enrolou no pano apressadamente sem despregar de mim seus olhos assustados, marejados de lágrimas.
Estendi-lhe a mão:
– Venha, vamos sentar na cama e conversar um pouco.
Ela relutava, desconfiada.
– Vamos, pode confiar. Quero ser seu amigo. Acredite, é a pura verdade.
Demorou mais alguns instantes, mas por fim ela me deu a sua pequena mão peluda e caminhou ao meu lado para a cama. A lanugem cobrindo sua mão era macia, quente e agradável ao toque. Sentamos na borda do colchão e, para quebrar sua timidez e mutismo – certamente Camila não conversava naturalmente com outro ser humano fazia muitos anos – tratei-a como se trata nossa irmã mais nova, com afeto e sentimento de proteção. Falei que ela sofria de uma doença rara, Camila olhou-me espantada com a revelação, pediu mais detalhes, eu vasculhei a memória e passei-lhe todo o conhecimento que tinha adquirido através dos volumes do meu avô, Camila pareceu-me mais desoprimida ao constatar que, afinal, ela era vítima da genética, apenas isso, não era produto da ira divina ou de caprichos demoníacos. Depois lhe contei da minha vida, narrei algumas aventuras vividas durante minhas reportagens jornalísticas, a fiz rir com algumas passagens engraçadas e ao cabo de quinze minutos senti que tinha conquistado sua amizade. Sem pressa, sem atropelos, Camila aos poucos foi abrindo seu coração e, aliviada por encontrar um porto seguro, contou de suas amarguras, angústias, medos e raivas. Fiquei sabendo que Ismênia, sua mãe, começou a renegá-la logo ao constatar que dava à luz um monstro apavorante. Nora era sua irmã adotiva e não só lhe tinha desprezo como era a crueldade em pessoa – a brincadeira de assustar os pensionistas novatos era a mais inofensiva. Sabia ler e escrever graças ao pai, poeta inédito da mais alta estirpe, que varava noites ao seu lado, paciente e amoroso. Mas ele morrera de infarto quando ela entrava na adolescência. Nunca pôs os pés fora daquele quarto, ansiava por ar puro, pela luz do sol, seu maior sonho era um dia caminhar pelos campos sendo acariciada por uma lufada de vento repleto de cheiros de terra, mato e flores.
Eu dava asas à imaginação procurando encontrar um meio de tirá-la daquele isolamento, quando vimos a porta do quarto ser entreaberta e observamos Nora introduzir a cabeça para verificar o que diabo se passava ali, já que a turma esperava na sala que eu surgisse mijado de medo e fosse alvo das gozações. Ao ver que Camila e eu estávamos numa boa, batendo um papo animado, fez uma cara decepcionada e gritou: – Mas que merda! –, fechou a porta com violência e foi embora. Camila e eu nos entreolhamos e caímos na risada.
Amei o riso cristalino da Camila. Eu estava encantado e, naquele momento, tive certeza de que haveríamos de nos dar muito bem. Compreendia profundamente a alma, a mente, o coração daquela garota porque, afinal, eu também sou uma aberração aos olhos da humanidade. Tenho medonha necessidade de ingerir grandes quantidades de sangue fresco, sofro de Porfíria, a doença mais conhecida como Síndrome do Vampiro. Sabia que, após revelar meu terrível segredo, estaríamos unindo forças para lutar contra o mundo. É como diz o ditado: cada panela tem sua tampa sob medida.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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