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O discípulo
J. Athayde Paula

Eu tinha 19 anos e era sobrinho da prefeita – daí o cargo que ocupava como diretor da assessoria de imprensa. Nossa cidadezinha, encravada no vale, não tinha rádio, jornal, e os aparelhos de televisão só pegavam se usássemos antena parabólica. Aliás, éramos, ao todo, cerca de 40 funcionários do alto escalão unidos pelos laços sanguíneos, afora os apadrinhados políticos, todos coçando o saco e mamando no erário público.
Distrito recentemente elevado à categoria de Município, através de plebiscito manipulado, as únicas coisas que mudaram em São João do Breu foram, a saber: ampliação da subprefeitura para comportar o enxame de funcionários públicos, construção de prédio para os edis com o batalhão de assessores, a edificação de uma nova e imponente cadeia pública para os presos inexistentes e, já em fase de contratação de empreiteira, o Fórum majestoso cuja finalidade era desconhecida de praticamente todos os cidadãos. No mais, a rotina continuava a mesma, evidentemente com os mil e novecentos habitantes muito mais pobres com o acúmulo de tributos municipais e com as benfeitorias prometidas cada vez mais se tornando um sonho irrealizável – o esgoto continuava a céu aberto, a água transportada em lombo de burro do açude que dependia dos humores de São Pedro e a energia elétrica funcionando apenas em algumas horas do dia, provinda de um velho e estuporado gerador.
Deu-se que em certa tarde modorrenta surgiu na cidade um negro alto, cabelo pixaim espetado para os céus e uma barba de brancura encardida a lhe dar pelo tórax. Era magro como o tronco de eucalipto e vestia-se com molambos. Puxava, pelos varais, uma carrocinha do tamanho de uma escrivaninha, lotada de tralhas indescritíveis. Dirigiu-se ao coreto existente em nossa única e agonizante pracinha, subiu sem dificuldades a escadinha dando para o tablado e ali, lugar reservado aos músicos da bandinha para as retretas dos sábados à noite, armou uma estreita cama dobrável com o estrado apinhado de pregos. Uns pregões de meter medo. Depois se deitou nela, serenamente. Fechou os olhos e pareceu dormir. Ou morrer, porque só se olhássemos atentamente, veríamos o coração a trabalhar sob aquela carcaça numa lentidão exasperante. Fiquei um tempão perto do negro, fascinado. Em dado momento ele abriu os olhos, deu uma piscadela ladina e sorriu-me afetuosamente.
– Salve, caríssimo discípulo! – disse numa voz profunda e maviosa. Fiquei mudo e ao mesmo tempo encantado com o homem, observando que ele tinha uns dentes muito brancos e perfeitamente alinhados.
*
Minha tia mandou que me chamassem em seu gabinete. Quando entrei, ela discutia com o secretário de finanças a possibilidade de meter a mão no dinheiro enviado pelo Governo para as despesas da merenda escolar. Estavam nervosos e eu, timidamente, sentei-me a um canto, até que as deliberações chegassem ao fim. O secretário entregou uma pasta de couro à prefeita, “a comissão da empreiteira para a construção do Fórum, doutora”, disse, fez uma curvatura e saiu. Minha tia, que mesmo sendo semi-analfabeta fazia questão do título de doutora antepondo-se ao seu nome, abriu a pasta, tirou grandes maços de notas de cem reais, colocou-os numa valise de veludo verde – já abarrotada de dinheiro –, abriu o cofre num canto da sala de um jeito que eu não observasse os números do segredo sendo manipulados, guardou a bolsa recheada, trancou o cofre com meticulosidade, em seguida abriu a gaveta da mesa, tirou um cigarro de palha e pôs-se a caminhar pela sala. Por um longo tempo, cigarro na boca e mãos cruzando-se nas costas, ela desfilou em minha frente, seu corpo velho e balofo enfiado no vestido de seda, florido. Acabou o cigarro, jogou-o no chão, pisou em cima para apagá-lo, cuspiu um sarro grosso e marrom na cesta de lixo e depois se dirigiu ao janelão do gabinete.
– Que é aquilo, Afonsinho? – perguntou, apontando um dedo raivoso em direção à pracinha. Lépido, saltei da poltrona e, emparelhando-me a ela, meus olhos seguiram o esmalte vermelho de sua unha. Lá no coreto formava-se o agrupamento de curiosos. Compreendi imediatamente o ciúme de minha tia – ora, a única pessoa que poderia reunir os capiaus era ela!
– Um pobre coitado – eu disse temeroso. – A senhora não vai acreditar, mais ele está deitado numa cama de pregos.
A prefeita fulminou-me, o brilho de cão danado nos olhos.
– Não quero, como se diz? distúrbios em minha cidade. Expulse-o daqui.
Então, movido pela simpatia ao estranho homem, resolvi defendê-lo.
– Não acha melhor tirar partido da situação? – aventei cauteloso.
– Tirar partido como?
Botei a cabeça para funcionar. A velha só tinha um objetivo na vida: eternizar-se no poder a qualquer preço.
              – Eu converso com ele e depois mandamos o carro de som espalhar pela cidade que o artista veio para cá numa iniciativa da prefeitura. Assim, a senhora divide com o velho todo o prestígio...
*
Durante a noite a curiosidade do pessoal era tanta que precisou a intervenção dos três únicos policiais do município para manter a ordem. Por volta das 22 horas, no entanto, a pracinha esvaziara-se. A sós com o velho, sentei-me ao seu lado, as mãos enlaçadas à altura dos joelhos, e fiquei a fitá-lo. Sereno como um cadáver, ele inexistia. A noite era quente, agradável, às vezes um ventinho noturno espalhava com suavidade sonora as folhas das poucas e raquíticas árvores. Estava assim, meditabundo e, diria, senão feliz, pelo menos em paz comigo mesmo, quando ouvi uma risada roufenha.
– Eu lhe disse que podia me chamar como bem entendesse... O carro do alto-falante berrou aos quatro ventos que me chamo Demônio. Onde arranjou esse nome?
– Eu sei lá... me pareceu adequado como propaganda. Tem alguma importância?
   – Claro que não, mas meu nome não tem a mínima importância.
Ficamos por longos minutos em silêncio. O velho adivinhou minhas inquietações.
– Ainda é cedo pra você entender os mistérios da vida. Vá pra casa, vá dormir.
Eu não tinha a menor intenção de sair dali. Na condição de órfão, não precisava dar satisfação a ninguém, exceto à minha tia, com quem morava – e tia Clarice só se preocupava com o próprio umbigo.
Demônio cerrou os olhos; eu fiquei ali, ao seu lado, na paz da noite de ventos farfalhantes. Uma lua imensa passeava pelo céu.
– Você faz isso por dinheiro? – perguntei, assim que o gerador de energia foi desligado e a pracinha encheu-se de pontinhos luminosos pisca-piscando da nuvem de vaga lumes.
– Você está vendo algum dinheiro?
– Se não está esmolando...
Ele riu alto, assombrando o silêncio da noite.
– Expiação, disse.
Não entendi, no entanto calei-me. Meia hora após voltei à carga:
– Por que os pregos não se enterram em suas costas?
– Leis da física, o velho limitou-se a dizer.
– Mas esses pregos devem doer, não?
– Vê se dorme, rapaz, já que não vai mesmo para casa – disse ele, com uma ponta de irritação.
*
Aos poucos a curiosidade das pessoas foi cessando. Ora, o que significava um velho sujo e magro estendido numa cama de pregos? E além do mais, o sujeito não comia nem bebia e, mais grave ainda, o fim de semana estava chegando, aquele trambolho iria atrapalhar a retreta de sábado, única diversão do lugarejo e ocasião para os namoricos.
– Chispa com ele – ordenou a prefeita, contabilizando os possíveis lucros que conseguira com o burburinho inicial e temendo perdê-los por conta do desinteresse a se manifestar na população. – A não ser que o idiota tenha outros truques – sentenciou.
Saí do gabinete da prefeita cheio de preocupações, falei claramente das intenções da minha tia Clarice ao Demônio. Ele me informou que sim, tinha mais coisas interessantes, além de deitar-se numa cama de pregos.
– Vocês vão me enterrar vivo. Dentro de três dias me desenterrem e estarei respirando como hoje.
Espalhei a notícia pela cidade. Na manhã seguinte, às nove horas, o coveiro abriu um buraco junto à imensa castanheira, cuja copa abrigava o Cruzeiro. A quarta-feira era festiva como se fosse feriado nacional, um feriado da envergadura do Sete de Setembro ou de Nossa Senhora Aparecida. Não vi, porém, o enterro. Tia Clarice chamara-me ao gabinete. Estava possessa. Eu organizara tudo sem ao menos consultá-la.
– Se esse mendigo morrer, mando te capar! – berrou, dando tragadas no cigarro de palha capazes de expulsar a alma pelo rabo.
– Mas foi a senhora que mandou ele fazer outros truques! – argumentei.
A prefeita esbofeteou-me. Trêmulo, sabia que se Demônio viesse a falecer, eu efetivamente perderia os colhões. Aquela mulher não usava expressões figurativas.
Ao anoitecer, dirigi-me ao cemitério e armei uma barraca junto à cova. Ah! que três dias! Mesmo com a chuva que desabou naquela primeira noite, o povaréu se revezou em intermináveis procissões pela sepultura. E finalmente chegou o momento de desenterrá-lo. Suado, arfando, o coveiro tira as duas últimas pazadas de terra e logo, sob os aplausos retumbantes do populacho, em peso no cemitério, o homem põe-se de pé.
– Corra e avise a prefeita! ordenei, explodindo de alegria, à pessoa mais próxima.
Num tempo que me pareceu átimos, tia Clarice surgiu rodeada pelos vereadores; abraçou Demônio, disfarçando o asco pelo contato com o sujeito imundo da cabeça aos pés, e deitou discurso – o homem estava vivo graças às suas orações, o fato ficaria gravado nos anais históricos do município e coisas que tais. Ao meu lado, Demônio permanecia impassível.
Quando a multidão se dispersou, tia Clarice espetou o dedo no nariz do Demônio, com a outra mão agarrou-me pelo colarinho e berrou:
– Chispa com esse lixo da minha cidade! Não quero ver nenhum dos dois pelo resto da minha vida!
Com Demônio à frente arrastando a carrocinha, saímos da cidade. Então me emparelhei com ele e seguimos juntos, silenciosamente, pelo menos uma dezena de quilômetros. Foi aí que Demônio deixou a estradinha de terra, encostando a carrocinha junto ao mourão de uma cerca de arame farpado.
– Está com fome? – perguntou. Acenei que sim. Ele remexeu nos trastes dentro da carrocinha e tirou um grande pão feito em casa e um litro de leite. Partiu o alimento e me deu um pedaço, depois despejou o leite numa caneca de latão. O pão cheirava como se acabasse de sair do forno e o leite estava fresco. Comemos o pão, bebemos o leite, sentamo-nos na relva e descansamos por meia-hora.
– Para onde você vai? – ele me perguntou.
– Vou com o senhor.
– Comigo não. Daqui eu sigo sozinho.
O Demônio levantou-se do chão, mexeu nos trastes dentro da carroceria da carrocinha e tirou um saco bojudo de plástico preto. Estendeu-o para mim.
– É um presente de despedida. Só abra quando eu estiver bem longe – disse, entrou no meio dos varais de sua carrocinha e seguiu pelos campos. Fiquei olhando sua figura ir se tornando um pontinho escuro no horizonte até desaparecer por completo. Então abri o saco de lixo. Dentro havia uma valise de veludo verde, a valise da minha tia. Abri-a, despejei seu conteúdo no chão, contei pausadamente os maços de notas. Havia exatos trezentos e cinquenta mil reais em cédulas de cem, mais oitenta reais em notas de vinte. Coloquei na minha carteira os oitenta reais. Guardei o resto de volta, coloquei o saco nas costas, caminhei leve e solto pela estradinha de terra batida até encontrar a rodovia federal, ali parei no acostamento e fiquei esperando um ônibus pinga-pinga aparecer, fiz sinal, o veículo estacionou, entrei, sentei-me bem no fundo, o saco de lixo contendo a valise de veludo verde apertado junto ao meu peito como num abraço de tamanduá – já tinha lastro monetário mais que o suficiente para começar nova vida.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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