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Paixão gótica
J. Athayde Paula

Em 1989 eu estava em plena adolescência e a carga de problemas em minhas costas fazia de mim um enorme poço de esquisitices. Passava os dias entre quatro paredes com as grossas cortinas de veludo negro corridas na única janela do quarto impedindo qualquer luminosidade, um raio de sol que fosse. Naquele quartinho havia uma cama de armar, uma estante com volumes e volumes de ficção de horror violentados pela companhia de uma monstruosa, indigna coleção de livros escolares – eu me preparava para o vestibular. Também havia uma escrivaninha, em cima desta um crânio de gato. Sobre o crânio ardia, sempre, uma vela. Amigos eu não os tinha, exceto Elísia. Vinha me ver, essa Elísia, quando lhe apetecia, uma, duas vezes por semana. Às vezes, três. Elísia sentava-se na cama e começava a tocar flauta, ela possuía uma flautinha de uns dois palmos de comprimento, feita de osso – quase sempre executava uma música suave, fluida, que me entrava pelos ouvidos em borbulhas gasosas. Outras vezes, era um som mineralizado, rude, que tinha o poder de instigar-me os instintos libidinosos. Então Elísia, vendo-me ali, sentado à escrivaninha, trêmulo, tímido, envolto naquela palpável auréola de extático sofrimento, Elísia colocava o instrumento musical em sua bolsa e nos seus lábios aflorava um sorriso terno, enigmático, um sorriso monalístico, e punha-se de pé – alta, magra, eu a observava a despir-se com gestos lânguidos, dolentes: o vestido deslizava ao solo tal qual satélite artificial riscando o céu em mornas e estelares madrugadas. Nua, para o meu lado Elísia caminhava esbatida pelos rubros e bruxuleantes clarões da luz da vela, tomava-me pelas mãos, acariciava-me o corpo emitindo ganidos de prazer; desnudava-me, a roupa retirada a poder de lábios e dentes – a partir daí éramos feras no cio: lutávamos, arranhávamos-nos, entre rosnares Elísia esvaziava-me as entranhas de todas as substâncias nutrientes do desejo. Ficávamos, após, distendidos no solo, mãos dadas, o suor fervendo, lavas expelindo-se de nossos poros, o ar do quartinho compactando-se com os odores da química corporal, com o insalubre queimar da estearina do círio sobre o crânio felídeo – em silêncio de pensamentos e resfolegar de exaustão, acabávamos dormindo.
     Elísia sempre acordava primeiro; meu despertar era impulsionado pelo sentido olfativo – meus pulmões repletos de perfumes alimentares: sanduíches de berinjela, pimentões fritos nadando em óleo de oliva, crocantes pães sírios. Sentava-me na cadeira, ela na beirada da escrivaninha. Enquanto comíamos, eu invariavelmente perguntava: – E minha mãe?
     – Bêbada – ela respondia.
     Eram uma pergunta e resposta ritualísticas, sem nenhum compromisso com sua natureza intrínseca – apenas testávamos nossa capacidade de articular palavras. Eu era tão quieto, tão mudo e tão desfamiliarizado com meus próprios sons que me aturdia: era uma voz estranha, soturna, cavernosa, áspera como o ruído de besouros notívagos.
     Elísia era amiga de minha mãe e deviam ter a mesma idade, cerca de trinta e cinco anos. Só que, enquanto Elísia conservava as carnes firmes, os seios rijos, os nervos fortes, minha mãe arruinava-se com a bebida – bebia mais de dois litros de vodca por dia. Desgrenhada, suja, inchada, penso que só podia contar com a amizade e interesse de Elísia, um sentimento não compartilhado, pois todo o afeto, atenção e cuidados de minha mãe estavam direcionados à bebida. Há muito tempo meu pai a abandonara, com uma polpuda pensão alimentícia e os sinceros desejos que tivesse um fim rápido, ceifando assim os sofrimentos físicos combinados com sua medonha queda moral. Ele foi construir outro lar, refazer os sonhos, criar outros filhos. E com singular raciocínio, legou-me a obrigação de alimentar com amor à alma calcária de sua ex-esposa – eu, fruto pueril, verdoengo, fui, assim, subitamente, jogado ao solo infértil com a missão de maturar, fender a terra, de semente transformar-me em rebento e, finalmente, distribuir através das raízes, a seiva comiserativa à velha árvore de tronco carcomido de galhos nus distendendo-se aos céus a implorar pela graça de um raio fulminante.
     Às vezes, Elísia perguntava-me, após comermos, seu eu tomaria uma xícara de chá – uma pergunta também sem nenhuma significação – e após escutar atentamente o cicio agradecido de minha alma, ia prepará-lo na cozinha (uma erva que trazia consigo, umas folhas parecendo ponta de flecha, dentadas nas bordas, ocres pela ação desidratante e de forte olor adocicado, quase nauseante). Enquanto bebíamos a infusão, entre um gole e outro ela tocava sua flauta de osso, ali, sentada na borda da cama, a xícara solenemente pousada no solo a fumegar vapores de inóspita, agreste selvageria. O tempo fluía langoroso, em inebriante elegia, eternizando-se em cada segundo, suspenso no tremeluzir da vela, nas sombras dançantes – o tempo existia na sonoridade da flauta. Elísia ia-se, no principiar da noite. Em silêncio, etérea, deslizante – na solidão do quarto, deixava ocupando todos os espaços o fantasma de sua presença e os eflúvios almiscarados de seu espírito.
*
     Eu preparava o jantar de minha mãe, geralmente sopas de legumes e carne, tudo batido no liquidificador. Uma sopa rala, de uma cor lutuosa, que eu lhe servia em copos: o estômago dela, esburacado pela bebida, recusava qualquer alimento sólido. Apenas nessas ocasiões eu a via, gordamente esparramada na cama, sob edredons – e todo o quarto com o ar saturado de cheiros amoníacos como se fossem fina poeira a grudar-me nas fossas nasais: impregnações de urinas podres, suores mórbidos, vômitos azedos. Minha mãe intercalava os goles de alimentos com mamadas no gargalo do litro de vodca, um olho perscrutador e infame pregado em mim, eivado de insondáveis maldades (só mais tarde compreendi que dele chispavam temores e vergonhas). Sombra pregada junto ao guarda-roupa, eu esperava o término daquele alimentar e, no momento de sair do quarto com a bandeja, ouvia sua voz rascante, arenosa, um som ocupando todos os espaços com a consistência de limalhas: – Se for para a rua, vista agasalhos. Meu Deus, como faz frio! – Minha mãe tinha na medula da alma, nos gânglios do corpo e no cerne da consciência, um frio de neves eternas.
     Ia banhar-me. Sempre que saía daquele quarto, ficava-me a impressão de ter crostas seculares de sujidade pelo corpo. Despia-me e fitava-me no espelho imenso do banheiro: por vários minutos meus olhos aureolados por lúgubres manchas violáceas analisavam aquele rosto emoldurado por espessos cabelos pretos, dando à face lívida uma aparência espectral – um branco lunar que, de resto, encobria-me o corpo todo. Então, flexionava os músculos – sim, eu tinha uma estatura formidável, e sim, eu era forte, a cada movimento descobria sob a pele vivas e famintas serpentes enroscando-se, exibicionistas, aplaudindo meu corpo sadio: sabia então que dentro de mim havia um caudal fabuloso de vida, energia, vontade férrea de jamais me subjugar aos desígnios de meu destino estigmatizado pela fatalidade.
     Após o banho, colocava minhas roupas negras, as botas de solado áspero, a capa draculina – ia jantar. Para mim, preparava rações energéticas: massas, carnes – entupia-me de substâncias protéicas, calóricas, carboidráicas. Comia olhando as paredes grossas, por certo erguidas em fileiras de três ou quatro tijolos, e altas. Por que, oh céus! paredes tão altas? Paredes de mais de quatro metros circundando um espaço absurdo – nunca mais vi uma cozinha tão grande, tão alta, tão fria, tão desumana.
     Depois, saía à rua. Eis-me, nódoa semovente na noite escura, esgueirando-me por becos, companheiro de gatos chorando de inconcebíveis paixões nos telhados invisíveis, eis-me, figura sinistra a desviar de lixos infectos, caminhando sob luzes fantasmagóricas de inacreditáveis ermos ulcerados pela pobreza, eu figura imensa espantando os seres da noite, mergulhado na mais abjeta solidão. Caminhava sem cessar, horas e horas. Quando a madrugada anunciava-se na disposição da lua e estrelas, eu deixava os limites da cidade. Ganhava uma estradinha nua, ladeada por uma cerca de arame farpado e tufos de carrapicho, guaxuma, melões-de-são-caetano, erva-cidreira e espinhentos juás, tudo imerso no escuro-prateado das luzes siderais – resoluto eu seguia.
     Ia dar-me num paredão de uns cinquenta metros – uma pedreira há muito desativada. Paredão imenso e brilhante na noite fria e solitária, com suas entranhas expostas em centenas de arestas de um negro diamantino, sisudas, terríveis e desafiantes. Eu conscienciosamente retirava a capa negra, pendurava-a num galho de arcaico limoeiro apodrecendo-se em meio aos frutos auríferos, ali, sentinela absurda, e punha-me a escalar o penedo: ia-me na perpendicular, na vertical, na horizontal, em direções ziguezagueantes e só parava quando meu corpo exaurido pedia por clemência – tudo isso para manter-me sempre hercúleo, sadio, perfeito para minha sobrevivência e digno de receber as carícias de Elísia.
*
     – Tenho que fazer uma longa viagem – disse-me Elísia em certa tarde de ventos insanos a açoitar uma chuva metalicamente rebentando na vidraça cingida pela cortina de veludo. Pegou um dos meus cadernos escolares, abriu-o. Vi sua mão ossuda pegar o lápis, firmar os dedos nas planuras sextavadas e rabiscar alguma coisa – certamente estaria fazendo mais um de seus indecifráveis desenhos geométricos; pôs o caderno no meio dos livros estudantis e saiu. Passou-se uma semana; duas; um mês. Até então, eu aguardara o retorno de Elísia com calma e resignação, alimentando meu espírito de sua presença virtual – mas ao cabo de dois meses sua ausência foi ocupando todos os espaços e pensei, por fim, que não suportaria tanta saudade. Numa noite de tempestade idêntica ao do nosso derradeiro encontro, me lembrei de quando ela fizera uso de meu caderno. Teria deixado uma mensagem de despedida? Peguei o caderno, verifiquei folha por folha e dei-me com um endereço escrito em sua letra perfeita como a de uma professora de caligrafia:

Bar Armagedom – Rua Álvares de Azevedo, 38

     Saí para a noite de pavorosa escuridão e ventos enlouquecidos. Andei por ruelas, becos, avenidas e, finalmente, encontrei o local que Elísia anotara. O nome – Bar Armagedom – era escrito em néon roxo sobre uma portinhola de madeira negra, uma portinhola insignificante, menor que os meus um metro e oitenta e seis de altura, incrustada num pequeno prédio de dois andares, sujo e decadente. Depois de breve indecisão, empurrei a portinha e entrei. Em tempo exato: uma chuva granizada desabou dos céus de supetão. Dei-me com um ambiente violáceo, algumas mesas dispostas em frente a um tímido tablado onde alguém dedilhava no violão uma desolada e cinzenta melodia. Havia ali cerca de dez pessoas – todas jovens e, como eu, vestidas de negro, porém com argolas douradas penduradas nas narinas, orelhas consteladas de brinquinhos de brilhante, além das bocas e olhos pintados de negro ou azul sombrio. Sentei-me numa das mesas vagas e um homem grande, gordo, de barba e cabelos longos e grisalhos veio me atender. Olhou-me fixamente – olhamo-nos num silêncio entremeado pelas plangentes notas musicais.
     – Pela descrição, você deve ser o namorado de minha esposa – disse ele.
     – Elísia? – perguntei. Ele confirmou com a cabeça.
     – Desejo vê-la.
     Ele nada respondeu. Virou-me as costas e dirigiu-se a um casal sentado à mesa junto ao violonista. Vi o rapazinho, gótico da cabeça aos pés, muito magro, muito ósseo, levantar-se, estendendo a mão à mocinha, muito gótica, muito raquítica, pequenininha, de palidez transparente.
     – Vamos – disse o rapaz, assim que se aproximaram. Saímos os três para a noite liquefeita. O vento bravio açoitava nossos corpos e a chuva despencava sobre o mundo tal qual comporta aberta de hidrelétrica no feroz firmamento. Nada dissemos durante todo o caminhar que durou mais de uma hora. Chegamos a um muro alto coberto de heras, liquens, musgos. Passamos pela murada através de um buraco próximo ao chão, de gatinhas, levantamo-nos, analisamos nossas roupas enlameadas e só depois reparei que estávamos dentro do cemitério. Continuamos a caminhar por entre os túmulos. Nossos pés afundavam na terra fofa, no barro grudento, nos tapetes gelatinosos de grama, até ganharmos uma alameda de cimento ladeada por frondosas árvores diluindo-se sob o aguaceiro e o tremeluzir das lâmpadas náufragas dos postes indiferentes, prosseguimos por entre suntuosas lápides e solitárias campas esquecidas pelos vivos.
     – Ela está ali – disse-me o rapaz, apontando um túmulo. Grande, imponente, de granito negro, o jazigo fitava-me. Perdi-me no tempo, nem me dei conta do momento em que o casal me deixou sozinho. Uma súbita fraqueza tomou-me as pernas, fui me dobrando, caí de joelhos no chão encharcado. A compreensão do final absoluto atingiu-me no exato instante em que o céu se abriu pela força de um relâmpago seguido pelo ribombar de muitos trovões. Naquele momento, ali, de joelhos, jurei que seguiria o destino de Elísia. Meu cérebro fervia, borbulhava, todo meu corpo tremia como que tomado por febre maligna. Então senti que vinha do túmulo uma fragrância adocicada, evolava misturando-se à chuva torrencial e, assim, impregnava minhas carnes. Logo, meus olhos viram – através da algidez das águas e do queimar das lágrimas – a diáfana figura de Elísia pairar sobre o monumento funéreo: estava nua e todo seu corpo vaporizava uma tristeza infinda. A visagem distendeu-se sobre a campa e em suas mãos surgiu a flauta de osso. Pôs-se a tocar, e eu, como que hipnotizado, arrastei-me pela lama, subi ao túmulo e deitei-me sobre Elísia. Suas substâncias incorpóreas fundiram-se em minhas carnes e, então, tive o mais absurdo, inexplicável e duradouro orgasmo jamais concebido a qualquer criatura. Foi tão longo, tão desvairado, que eu tinha a sensação de sêmen fluindo-me por todos os poros. Entrei em colapso, tive convulsões alucinógenas – morri e renasci em átimos de segundo. Mergulhei em sono cataléptico.
     Acordei com o sol fustigando-me e tremores anunciando uma gripe devastadora. Fui para casa, joguei fora o crânio de gato, as velas, os livros de terror. Arranquei as cortinas negras da vidraça, arejei a casa escancarando portas e janelas. Fui ao telefone e, enérgico, intimei meu pai a encontrar uma solução clínica para os problemas alcoólicos de minha mãe. E até hoje guardo a flauta de osso que, naquela manhã, encontrei no túmulo, junto ao meu corpo encharcado de chuva, febre e pavor.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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