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O fantasminha abusado
J. Athayde Paula

No bairro mais elegante de nossa cidade existe uma residência antiga e sombria na sua pintura cor de bronze e na cobertura de telhas portuguesas esverdeadas de musgo. É cercada por um muro alto e sólido revestido por heras com um portão de ferro fundido com as pontas das hastes em forma de flecha – por esse portão os passantes matam a vontade de bisbilhotar os recônditos da propriedade. É possível observar as sebes malcuidadas, as roseiras velhas de galhos rugosos e as árvores ornamentais de procedência europeia. Pairando num pedestal de mármore no centro de um laguinho, um cupido barrigudinho com arco retesado nas mãos urina o dia inteiro nas águas límpidas onde pardais, rolinhas, pintassilgos e corruíras tomam banho. Há, ainda, uns bancos de granito sob os arbustos que são uma tentação para os jovens casais de namorados que passam pela calçada.
A residência é ocupada pelo Dr. Kaváfis e por sua esposa, a Sra. Aagje – um casal grego de meia-idade naturalizado brasileiro. O marido é um homem muito alto, magérrimo, possui anéis de esmeralda e rubi nos dedos, enverga ternos bem cortados e dirige uma Mercedes cinza-prateada de modelo obsoleto – diz-se que é empresário no ramo de joalheria. A mulher também é alta e magra e usa sempre um conjunto cor de vinho. Há cerca de um ano meu irmão Perseu, naquela época com dezenove anos (um ano mais velho que eu), começou a trabalhar para o casal como vigilante noturno. Era o seu primeiro emprego e estava empolgado com suas obrigações – os patrões pagavam um salário inacreditável e, além disso, tinha permissão para usar o carrão aos domingos, durante o dia.
Perseu em pouco tempo foi ficando rico. Usava roupas de grife, tênis importado, sua carteira estava sempre recheada de notas graúdas. Na mesa de nossa família a carne, um luxo dominical, tornou-se um acontecimento rotineiro; fez reforma nas portas e janelas do barraco; construiu um quarto para cada um dos cinco irmãos, já que, segundo ele, só os animais dormiam amontoados como nós. Ergueu uma lavanderia nos fundos, com máquina de lavar roupa automática, um sonho antigo de nossa mãe; instalou antena parabólica para que nossos pais vissem o futebol e a novela com mais nitidez de imagem; fez meu pai vender a carroça e o burro e para o trabalho de transportes de miudezas comprou uma caminhonete Ford, usada, é bem verdade, mas em bom estado de conservação – ensinou meu pai a guiar o veículo. Eu ganhei uma bicicleta de dez marchas e nossa irmãzinha caçula foi presenteada com bonecas Barbies originais, não aquelas imitações de camelôs que se desfaziam com menos de um mês de folganças. Meus outros irmãos menores ganharam bolas de futebol e uniformes autênticos das equipes do Corinthians e São Paulo para que fossem os reis das peladas na várzea e nunca mais ficassem no banco de reservas.
Perseu comprou para si um Gol com aquele perfume tão característico dos veículos recém-saídos da fábrica, num domingo encheu o porta-malas com cestas contendo frango assado, Coca Cola, pamonha e outros quitutes, embarcou a família e fomos para a beira do rio onde passamos um dia maravilhoso, fingindo que pescávamos. Em certo período da tarde, quando todos se refestelavam com a pança cheia, aproveitei que estávamos a sós, debaixo de um pé de guabiroba à margem do rio, e fiz a pergunta que me incomodava:
– Por que seus patrões pagam você tão bem?
– Se eu contasse você não entenderia.
– Tente.
– Vou contar, mas se você espalhar por aí, vão te chamar de mentiroso.
– Não abro a boca pra ninguém.
– Nem pra mãe e nem pro pai?
– Principalmente pra eles.
Perseu coçou a cabeça, um cacoete que se manifestava quando estava tentando achar as palavras certas. Coçava bem em cima da cicatriz provocada por um tiro – quando menor de idade tinha se envolvido com quadrilhas do tráfico de entorpecentes, atuando como mula. Andou passando a perna nos caras e se deu mal. Primeiro quebraram seus dois braços com uma barra de ferro, quando ele tirou o gesso e voltou à lida, roubou os chefões de novo, deram-lhe uma surra de moer os ossos e o jogaram desacordado no rio que abastece nossa cidade, um rio grande, volumoso, com correntezas e redemoinhos capazes de destroçar ônibus, pois não é que meu irmão sobreviveu? Ficou no hospital por duas semanas, uma delas em estado de coma, recuperou-se admiravelmente, recebeu alta – continuou metido no tráfico e passando a perna em gente perigosa. Então meteram uma bala em seus miolos. O filho da mãe se safou mais uma vez e parou em definitivo com o negócio de drogas, mas ficou assim meio destrambelhado.
– Eu cuido dum fantasminha – disse ele, finalmente.
– Como assim... fantasminha?
Perseu balançou a cabeça, desanimado.
– Viu? Eu sabia que você não ia acreditar.
– Se você explicar direitinho, talvez eu acredite.
– É o seguinte. Os meus patrões tinham um filho que morreu com sete anos de idade num acidente de carro. Acontece que o menino não foi pro outro lado, entende? Fica na casa e gosta de brincar comigo. Eu passo a noite brincando com o fantasminha. Meus patrões são gratos pela minha dedicação. Aí eles me recompensam com aquilo que acham que é valioso, ou seja, com muita grana. Entendeu?
– Acho que entendi – eu disse. Mas não acreditei. Como acreditar numa coisa tão incrível, ainda mais partindo de meu irmão, um doidão de pedra?
*
Na manhã seguinte após a excursão ao rio, meu irmão caiu doente. Primeiro começou a vomitar um líquido incolor, minha mãe deu a ele sal de frutas, remédios caseiros e nada de melhorar. Como minha mãe tinha que pegar no batente – era dia de faxina no consultório de um dentista – fui encarregado de cuidar do mano ao invés de ir trabalhar com meu pai, meu velho teve que se virar sozinho com a mudança de um vizinho com tantos cacarecos que era previsto pelo menos três viagens com a camionete carregada até as bordas.
*
Lá pelo meio-dia o vômito de Perseu era cinza-escuro, fétido, misturado a umas substâncias sólidas parecidas com lascas de madeira – e o mais impressionante é que ele foi acometido de uma fraqueza tão grande que teve de ser colocado na cama. Uma coisa incrível, haja vista que meu irmão é forte como um campeão mundial de boxe. Fiquei tão preocupado que fui ao orelhão e liguei para a emergência do Hospital Universitário, a ambulância veio, antes de ser carregado de maca para o veículo Perseu pediu que eu fosse à casa de seus patrões e contasse o sucedido. E me pediu:
– Olha, só eu e a Dona Aagje conseguimos ver e falar com a criança fantasma. Mas você é meu irmão, somos a cara escarrada um do outro, assim o guri pode nos confundir. Então eu te aviso, se você vir o fantasminha, não coma nada que ele te oferecer, tá bom? Ele é um fantasminha legal, mas tem um humor negro do Cão.
– Como assim?
– Aquilo que parece torta não é torta, aquilo que parece sorvete não é sorvete. Tem gosto de torta, tem gosto de sorvete, mas não é torta nem é sorvete.
– É o quê?
– Porra, eu sei lá! Só sei que desgraça o estômago da gente.
*
Fui com meu irmão de ambulância para o HU, depois que ele foi instalado num quarto com mais três enfermos, deixei o hospital e tratei de ir dar o recado para os patrões. Cheguei à residência às três da tarde, apertei a campainha no portão e a própria Sra. Aagje veio me atender. Identifiquei-me desnecessariamente, contei do incidente com meu irmão, ela ficou seriamente preocupada, pediu mais informações, eu as dei, ela disse que providenciaria para que Perseu fosse transferido da enfermaria para um leito particular e perguntou se eu queria entrar e tomar um refrigerante. Eu estava me mordendo de curiosidade a respeito daquela casa, assim aceitei o convite. Ela apertou o controle remoto e o portão abriu-se. Segui ao lado da mulher, ela tagarelando, querendo saber exatamente como era o vômito que Perseu expelia, se tinha cheiro.
– É um cheiro muito ruim – eu disse.
– Ruim como?
– É cheiro parecido com coisa podre. Igual à carne de um bicho que morreu há muitos dias.
Ela nada disse. Entramos numa sala grande, repleta de móveis solenes, feitos com madeira maciça e envernizados de marrom-escuro.
– Espere um minuto aqui – ela disse. E me indicou uma poltrona grande, de veludo bordô, sentei-me e fiquei olhando-a deslizar sem ruídos por cima de tapetes imensos, fofos, tão felpudos que os pés da gente afundavam bem uns quatro centímetros. A mulher desapareceu por um corredor escuro. Então vi que, parcialmente escondido detrás do piano de cauda, um garotinho de uns sete anos me fitava com um sorriso travesso. Após alguns instantes, ele saiu do esconderijo e caminhou para o lugar onde eu me sentava. Estava usando uma camisa branca com babados, gravata borboleta, um terninho preto e sapatos sociais brilhando de graxa. Parecia um noivo em miniatura. Os cabelos negros assentavam na cabeça naturalmente a destacar o rosto muito branco, branco mesmo, feito giz. Ele me estendeu a mão e, como que por encanto, surgiu nela um pratinho de papelão contendo um pedaço de bolo de chocolate. Com gestos instigou-me a pegar a guloseima. Olhei o bolo, depois os olhos do menino, santo Deus, que olhos mais magnéticos, mais sardônicos, mais peraltas! Fui tomado pelo terror.
– Não quero merda nenhuma de bolo! – gritei. E saí da casa a passos largos, corri como louco pelo jardim. O portão estava trancado. Não sei como, mas escalei o muro alto, saltei, sentei-me no meio-fio e fiquei lá por mais de quinze minutos, esperando a tremedeira passar. Em seguida fui ao ponto de ônibus, peguei o coletivo e voltei para o hospital.
*
Perseu fora transferido para um leito particular, após telefonema da Sra. Aagje à administração hospitalar. Meu irmão estava muito mal e respirava através de aparelhos. Eu me sentia exausto, tirei os sapatos e deitei-me na cama de acompanhante, estava pegando no sono quando vi que uma turma de estudantes de medicina adentrava o recinto, capitaneada por um professor da universidade. Temendo que as conversações se restringissem aos jargões médicos para me manter ignorante do quadro geral do paciente, fechei bem os olhos fingindo que dormia como pedra. Eles confabularam em surdina, os rapazes e moças fazendo anotações nos grandes cadernos. A linguagem era acessível, por isso fiquei sabendo que análises laboratoriais tinham revelado que o vômito de Perseu continha madeira podre e substâncias de carne em decomposição.
– O organismo do paciente está infestado de micro-organismos letais – explicou o professor e começou a falar uns nomes científicos.
– O senhor está dizendo que ele comeu um cadáver e pedaços do caixão? – perguntou um aluno que devia se achar muito espirituoso. Podia não ser espirituoso, mas certamente era o palhaço da turma, porque provocou risinhos excitados. Aquilo me magoou, deu uma vontade de chorar imensa. E chorei. Chorei forte perdido na minha angústia, naufragado na minha desolação. Chorei desbragadamente, chorei vergonhosamente, chorei como aqueles bezerros desmamados à força que incomodam todo mundo num raio de muitos quilômetros. Nesse estado de espírito a gente não dimensiona o quanto somos escandalosos. Só sei que um aluno foi buscar uma enfermeira, ela veio, aplicou uma injeção em meu braço e pimba! – fui a nocaute.
*
Às nove da noite minha mãe veio ao quarto trazendo com ela a Dona Maria, a curandeira da nossa vila. Dona Maria é uma espécie de faz tudo: realiza partos difíceis, dissolve namoros perigosos, amansa marido metido a besta, cura bicheira de animais, faz poções mágicas para apaixonados e poções de ervas para criança lombriguenta, lê cartas de tarô, cartas ciganas, runas e búzios. É especialista em maleita, mordida de cobra e estancamento de hemorragias em abortos malfeitos. Seus maiores ganhos, no entanto, vêm da venda de patuás de proteção contra tiros e facadas – traficantes e ladrõezinhos rastaqueras são os seus maiores clientes. Minha mãe me cumprimentou com um aceno e postou-se ao lado do meu irmão que, agora, não estava mais ligado a máquinas, no entanto respirava como se estertorasse. Dona Maria abriu sua bolsa de palha e sacou do interior uma garrafinha do tamanho de um palmo, destampou-a e arreganhando a boca de Perseu despejou todo o conteúdo, um líquido espesso como groselha de supermercado, só que era verde – em seguida travou-lhe a boca impedindo a regurgitação. Devia ser uma poção ruim pra cacete, só pela cara de repugnância do mano. Depois as duas vieram falar comigo, mas por pouco tempo, eu estava muito grogue por causa da injeção de calmante. Pedi que fossem embora, eu queria dormir. Elas partiram. Dois minutos após eu ferrava no sono.
Acordei de manhã com o alvoroço dentro do quarto. Médicos, enfermeiras e até um pessoal da administração rodeavam a cama de Perseu que, sentado com as costas apoiadas à cabeceira, contava lorotas a respeito de sua formidável resistência física, repassando todas as vezes que driblou a morte quando fora – injustamente, covardemente, implacavelmente – caçado por traficantes durante toda a adolescência.
*
Perseu ficou mais um dia internado para a realização de novos exames que só comprovaram a sua total recuperação. Recebeu alta e voltou para o trabalho de pajem do pequeno espectro – permanece até hoje no emprego e o seu salário é aumentado todos os meses. Acho que dificilmente irá mudar de profissão, principalmente porque nesta última semana outros fatores vieram somar-se ao seu entusiasmo. Ontem, após o almoço, fomos fumar um cigarro na varanda então lhe perguntei qual a causa de tanta alegria, tanta empolgação, tanto brilho no olhar. Perseu me explicou: A sobrinha de Dona Aagje está hospedada na residência, passando umas férias. Chama-se Andrômeda e, Perseu não soube explicar bem, mas parece que ela é autoridade em fenômenos paranormais. Meu irmão disse ainda que Andrômeda, além de muito inteligente, é bonita como uma gota de orvalho. E que também vê o fantasminha.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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