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Um submarino no jardim
J. Athayde Paula

Minha mulher tinha pegado os dois filhos pequenos e dado no pé, deixando-me sozinho na fazenda com minhas bebedeiras, meus picos, minha plantação de cannabis sativa. Isso há uma semana. Passei sete dias alucinados, do fígado deixei só a casca; veias nos braços, pernas e pés ficaram estropiadas pelas visitas da agulha; o pulmão inchou saturado de baseado da mais alta qualidade, e, muito pior, nesse tempo todo não coloquei nem mesmo um grão de arroz no estômago. Hoje cedo eu acordei com um pequeno submarino de trinta e seis pés estacionado no jardim da residência. Pulei da cama, ou melhor, me arrastei da cama para o chão, trêmulo e suando de fraqueza, rumei para a janela do quarto, levantei-me do assoalho apoiando as mãos no parapeito e, cheio de curiosidade, fiquei observando por alguns momentos o submergível negro que, assim banhado pelo sol matutino, pareceu-me novinho. Não fosse o mal-estar desgraçado que sentia por causa da ressaca, teria mergulhado em algumas divagações investigativas. Mas não fiz perguntas a mim mesmo, só sei que estava bastante contrariado, uma vez que o bruto havia achatado com seu peso algumas dezenas de roseiras que eu vinha cultivando com esmero há mais de um ano.
Dirigi-me ao banheiro, abracei o vaso sanitário e vomitei a gosma cor de ferrugem da bílis, meti a boca na torneira da pia e bebi hectolitros de água, vomitei novamente, desta vez na cuba; lavei o rosto, passei água pelos cabelos pesados de sujeira, arreganhei os dentes para minha imagem refletida no espelho do armarinho e observei meus dentes amarelados, coloquei pasta dentifrícia na escova e tentei limpá-los – apenas tentei. O gosto mentolado do produto higiênico me provocou engulhos, vomitei outra vez. Estiquei a língua e observei-a no espelho, estava marrom, visualizei a quantidade de bactérias nadando na cavidade bucal, lembrando-me que lera em algum lugar que seu número poderia chegar a duzentos milhões. Concluí que duas centenas de milhões eram bagatelas no meu caso específico.
Fui à cozinha e fiz um café na cafeteira elétrica, enchi pela metade uma xícara grande e fui para a varanda da casa, sentei-me na espreguiçadeira de lona e fiquei observando o submarino logo ali, a uns trinta metros de distancia. Do seu interior vinham ruídos estranhos, grunhidos, sons estertorantes. Então vi que a escotilha estava sendo aberta. Senti meu corpo enrijecer, a xícara de café ficou estática a meio caminho da boca. Ouvi o baque da tampa caindo de lado presa em suas dobradiças e vi duas mãos alvas apoiarem-se no rebordo da abertura. Logo, a metade de um corpo içou-se. Poderia ser uma mulher, já que tinha um chapéu branco de aba mole enfiado na cabeça e os seios protegidos por sutiã vermelho. Poderia ser uma mulher – em termos. A parte posterior do corpo dourado era, sim, de uma beldade, exceto pela cabeça. Era uma cabeça de hipopótamo. Olhos de hipopótamo, boca de hipopótamo, tudo hipopótamo acima do pescoço. E até fedia à lama pútrida onde esses bichos costumam chafurdar, como me informou um vento repentino vindo do Sul. O ser fantástico girou a cabeça para os lados, analisando o ambiente, e penso que não me viu. Ou se viu, deve ter me achado desprezível demais para ser digno de alguma atenção. Depois de alguns minutos perscrutando o lugar, a mulher-hipopótamo deu-se por satisfeita e voltou a deslizar para o interior do submarino. A xícara caiu de minha mão, estilhaçando-se no piso da varanda. Saltei da cadeira atabalhoadamente, meu corpo debilitado mais trêmulo que asa de beija-flor, e corri aos tropeções de volta ao interior da casa, descansei um momento na sala – o suficiente para expandir o pulmão com um bocado de ar – em seguida dirigi-me à despensa. Desviando-me dos compactos tijolos de maconha (a mais recente colheita tinha sido pródiga), alcancei aos fundos do cômodo minha escopeta pendurada num gancho na parede, verifiquei desnecessariamente se estava carregada, peguei a caixa de cartuchos calibre 10, retornei à varanda e abri fogo contra o submergível, sempre recarregando a arma num ritmo frenético. Eu sabia que era tolice o que estava fazendo, meu chumbo-grosso ricocheteava no submarino produzindo um sonzinho agudo que mais parecia provir de um instrumento musical – um daqueles instrumentos que damos às crianças no aniversário para depois nos arrependemos amargamente. Usei toda a caixa de cartuchos e, cansado, voltei a me sentar na cadeira de lona, a cabeça zunindo, o coração bombeando descompassado dentro da caixa torácica, um suor pegajoso brotando dos poros como fonte de riacho. Então a escotilha abriu-se novamente e dessa vez emergiu a metade de um homem-hipopótamo. Sei que era do gênero masculino porque tinha um boné de almirante no topo da cabeça, além de usar um paletó branco com insígnias douradas nos ombros. Os olhos me fitaram longamente. Coloquei a escopeta em posição de tiro, mas o ser extraordinário continuou me encarando inexpressivamente – compreendi, assim, que ele sabia que a minha arma estava descarregada.
– Tenho ainda mais de quinhentos cartuchos, cara! – gritei. – Vou infernizar a vida de vocês para sempre!
Era mentira, eu desperdiçara os cartuchos da minha última caixa, nada mais restava em minha casa que servisse de munição – agora estava miseravelmente à mercê dos visitantes. O homem-hipopótamo, no entanto, teria engolido a patranha? Acho que sim, pois ele deslizou novamente para o interior do submarino, fechou a escotilha e, um minuto depois, ouvi o ronco de motores sendo acionados, estrondos, guinchos – logo o submergível começou a balançar para os lados e finalmente alçou voo. Isso mesmo, o objeto ergueu-se no ar verticalmente como se fosse um helicóptero sem hélices ou disco voador. Ganhou altura e sumiu na imensidão azul do infinito. Senti-me um vencedor, mesmo sabendo que os homens-hipopótamos tinham partido não por sentirem medo, mas por uma razão bem mais prosaica: eu demonstrara ser um daqueles vizinhos chatos, babacas, insuportáveis. Os seres fantásticos no mínimo acharam que no mundo deveria haver um sujeito menos bundão.
*
Foi uma vitória pífia, mas mesmo assim resolvi comemorar. Comemoração é comigo mesmo. Comemoro tudo, de uma boa cagada depois de ficar dias com o intestino preso até o surgimento de um fio branco na minha barba. Assim, enrolei um baseado da grossura do polegar, acendi-o, liguei a tevê no canal Discovery Kids – estendi-me de comprido no sofá e me empapucei enquanto ria feito maluco com as peraltices dos personagens de desenhos animados próprios para crianças com menos de seis anos de idade. Por volta do meio dia saí do embotamento com uma fome desgraçada, fui à cozinha e preparei no liquidificador seis ovos crus com meio litro de vodka e dois copos de açúcar, bebi a mistura diretamente da jarra do eletrodoméstico, cheirei uma carreirinha de coca em cima da mesa de tampo de vidro e só então resolvi ver o que era possível salvar das minhas roseiras esmagadas pelo submarino. Saí na varanda e estaquei, petrificado. Havia no jardim, pastando o que restou de minhas flores, pelo menos duas dezenas de dinossauros do tamanho de avestruzes.


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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