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O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo XIV
Ascensão política
Vicente Miranda

Alberto vendeu o casarão e comprou dois apartamentos, um para Mirtes e os filhos, no Ipiranga, bairro exigido e preferido por ela, e outro para ele em Higienópolis, um dos bairros mais charmosos de São Paulo. Alberto cuidou ainda de acertar judicialmente o valor da pensão e não criou nenhum empecilho no que dizia respeito à guarda dos filhos, pois as intensas e agitadas atividades políticas vividas por ele, principalmente na condição de candidato à Prefeitura de São Paulo, não lhe davam condições de se preocupar ou perder tempo com ninguém. Comprou também um carro novo para Mirtes e, fora pensão e mesada, assumiu a responsabilidade pelas despesas educacionais de Raphael, Lívia e Betinho. Dinheiro para Alberto não era problema. Os cofres lícitos e, lógica e principalmente, também os ilícitos do PSE estavam cada vez mais abarrotados de dinheiro provindo das administrações irregulares do partido nas prefeituras e governos conquistados, os políticos eleitos firmavam todos os tipos de contratos irregulares com empreiteiras e empresários corruptos, o que era muito vantajoso para o partido, admitia-se a prática de quaisquer falcatruas e trambiques possíveis e imagináveis que aparecessem pela frente. Em razão disso, tudo andava otimamente bem para os políticos da alta cúpula do partido –– Alberto estava rico, Mário riquíssimo. O doutor Tavares, presidente do partido, dizia sempre sorrindo aos seus colegas correligionários que o PSE já tinha cacife até para eleger o presidente da República.
Após os últimos acertos decorrentes da separação, Alberto pode dispor de todo o tempo do mundo para se dedicar única e exclusivamente à sua candidatura. Depois de alguns meses de trabalho, o homem sem coração sentia-se muito bem com os resultados da campanha política. Na realidade, há muito tempo Alberto já não tinha vontade de ir para casa e encontrar a mulher e os filhos de braços abertos à sua espera, faltava-lhe aquele sentimento que une afetivamente as famílias. A convivência, que vinha se arrastando entre ele, Mirtes e os filhos, estava lhe fazendo mal. Alberto não sentia mais amor pela família e não conseguia disfarçar mais nada. Por outro lado, a política e a busca incessante pelo poder supriam-lhe todas as expectativas de vida. Alberto estava tomando gosto por aquele mundo onde a mentira, o blefe e a corrupção caminhavam juntos. Faltando poucos meses para o início das eleições municipais de 2008, o candidato entregava-se completamente à corrida eleitoral. Na reunião restrita, que ocorria entre ele, Mário e Chiquinho Sollo, discutia-se a arrancada final à Prefeitura de São Paulo, esquematizava-se também como seriam as gravações dos programas de rádio e televisão do PSE. Chiquinho Sollo, o marqueteiro da campanha de Alberto e do PSE, anunciava entusiamado:
–– É agora, quando começa a divulgação dos candidatos no rádio e na televisão, que a eleição pega fogo! Eu até aprontei um ‘slogan’ para a nossa campanha que gruda que nem chiclete!
–– E qual é o ‘slogan’, Chiquinho? –– indagou o candidato a prefeito.
–– Ouçam bem, meus amigos: “Esse é o homem que esta cidade precisa”. Que tal, gostaram? Não é lindo?
–– Está muito bom, Chiquinho! Taí, gostei! Será um prato cheio para os cartazes que espalharemos pela cidade. –– planejou Mário, imaginando o efeito daquela frase nos eleitores. ¬¬–– E você, Alberto, o que acha? –– indagou voltando-se à reunião.
–– Eu também gostei, mas faço uma pequena ressalva. –– Chiquinho e Mário olharam para Alberto que continuou: –– Eu gostaria que fosse corrigida a regência verbal, pois analisando a frase, nota-se claramente que a preposição, imprescindível ao verbo ‘precisar’, foi ignorada. –– concluiu a manifestação em socorro à linguagem culta e formal.
–– Como assim? A frase não está certa? –– indagou o publicitário.
–– Chiquinho é melhor que a frase fique assim: “Esse é o homem de que esta cidade precisa” ou, caso prefira, “Esse é o homem do qual esta cidade precisa”. É só acrescentarmos a preposição que a frase fica correta. –– arrematou o ex-professor.
–– Isso aí tanto faz, Alberto. O importante é a mensagem e não a regência, meu caro. –– teimou o marqueteiro que não queria dar o braço a torcer.
–– Tanto faz pra você que escreve de qualquer jeito, esse pequeno detalhe pra mim faz muita diferença. –– retrucou nervosamente Alberto já se levantando da cadeira.
Mário, tarimbado em futricas políticas e ciumeiras frequentes nas calorosas reuniões do PSE, interveio providencialmente na discussão gramatical para acalmar os ânimos exaltados:
–– Êpa! Êpa! Êpa! Que isso gente! Vamos nos acalmar! Estamos quase para ultrapassar o candidato que está em segundo lugar e o trabalho até aqui está sendo ótimo, ok? Vamos planejar os nossos passos daqui pra frente e se houver pequenos detalhes a serem dirimidos, discutiremos todos eles civilizadamente.
Alberto e Chiquinho Sollo concordaram com Mário e findaram, pelo menos por enquanto, as adversidades. O astuto Mário, satisfeito com o retorno da paz necessária ao prosseguimento da reunião, continuou:
–– O seu ‘slogan’ está ótimo, Chiquinho. No entanto, o Alberto tem razão ao se importar com a escrita correta da frase, afinal o PSE é um partido que se caracteriza pelo interesse que tem com a cultura e a educação. Agora, vamos ao que interessa. Chiquinho, por favor...
O marqueteiro levantou-se de sua cadeira e caminhou até uma mesinha onde estava uma garrafa de café, serviu-se e, voltando à reunião, iniciou a sua explanação:
–– Bem, ressalto que até aqui o que tem proporcionado está boa campanha é que o nosso candidato é um homem identificado com a causa do partido, ou seja, a educação e a cultura. Por isso, devemos dar mais ênfase ao fato de ele ter sido professor. Estou em contato com um dirigente da classe professoral, que me disse que dentro de duas semanas haverá uma paralisação de professores da rede estadual de ensino na praça da República, Alberto deverá se preparar, desde já, para tirar vantagem disso. Outro ponto importante é que nos programas de rádio e televisão nós devemos sair da mansidão e irmos para o ataque aos outros candidatos, principalmente ao candidato que está em segundo lugar, ele é o primeiro adversário a ser batido por nós, estamos praticamente empatados tecnicamente com ele, mas precisamos passá-lo para irmos ao segundo turno das eleições. Devemos também, além de enfocar a educação, nossa matéria-prima, conquistar os votos dos eleitores preocupados com a saúde, moradia e emprego. Eu já elegi até defunto político, lembram-se do Joaquim Ramalho? Eu que elegi aquele crápula, e, mesmo assim, aquele velho desgraçado morreu me devendo. Imaginem agora o que eu não sou capaz de fazer com um candidato como o Alberto, se chegarmos ao segundo turno. Alberto, você é um homem inteligente e que sabe se expressar e, ainda por cima, ninguém pode atacar você diretamente porque você ainda não administrou nada. Mas, para ganharmos esta eleição, peço aos senhores que continuem confiando plenamente no meu trabalho e, então, verão que a Prefeitura de São Paulo de 2008 está no papo.
O marqueteiro sabia do que estava falando, porque a sua influência ultrapassava o marketing político e se estendia até conhecimentos e influências em outras áreas administrativas, sindicais e públicas.
–– Você está certo, Chiquinho. Gosto da sua linha de raciocínio. Daqui a duas semanas vou à paralisação dos professores na praça da República e, no horário político, vou imediatamente pra cima do candidato que está em segundo lugar. No segundo turno a história será outra, quero assumir logo a liderança. –– com estas palavras Alberto retribuiu o elogio do experiente marqueteiro.
–– Assino embaixo de tudo o que você disse Chiquinho, esta campanha sempre esteve e continuará em suas mãos. Cuide agora da gravação dos programas de TV e rádio. –– enfatizou as palavras de Alberto, Mário.
–– Xá comigo! –– exclamou Chiquinho Sollo abrindo papéis sobre a mesa para explicar o esquema de gravação dos programas políticos.

* * * * * *

Decorridas duas semanas da reunião, Alberto, que em nova pesquisa realizada depois do início do horário eleitoral já aparecia em segundo lugar em intenções de voto, encontrava-se na Praça da República junto ao enorme contingente de professores da rede de ensino estadual, que ali estavam em paralisação por melhores salários e condições de trabalho. O candidato à Prefeitura sentiu que os ânimos estavam acirrados pela hostilidade que alguns professores expressavam quando o viam, mesmo assim, o homem estava decidido, iria subir naquele caminhão e frente ao microfone iria conquistar aquele povo: “Esse bando de professores são uns trouxas, vai ser moleza conquistar esses idiotas” –– pensava enquanto olhava para a multidão. Estava uma tarde bonita e ensolarada e fazia mais de meia hora que Alberto ouvia os pronunciamentos exaltados dos professores frente ao microfone e aguardava a sua oportunidade, foi quando o dirigente amigo de Chiquinho Sollo apossou-se do microfone e anunciou que um dos candidatos à Prefeitura, afrontando a lei eleitoral pela necessidade e urgência da ocasião, iria se pronunciar. O esquema estava armado, agora era com ele. Alberto subiu no caminhão sob uma chuva de vaias, esperou por um minuto em silêncio, apenas olhando para a multidão e, então, iniciou o discurso:
–– Podem vaiar à vontade! Podem vaiar! Estas vaias que me vêm aos ouvidos não são para mim! Estas vaias que me vêm aos ouvidos são para o quadro político nacional, por isso, podem vaiar! Eu espero vocês terminarem para que eu comece.
O homem sem coração deu um passo para trás do microfone e encarou novamente a multidão, tudo acontecia como ele esperava. Aos poucos, como se por um milagre, o barulho das vais foi se abrandando, se abrandando, até que, enfim, o silêncio, por ele esperado, se fez presente. Alberto, que parecia até ter calculado quando os professores se acalmariam, voltou ao microfone e disse:
–– Obrigado a todos! Eu sei que entre nós, professores, a educação tarda, mas não falha! Toda esta manifestação de repulsa é necessária, muito embora, volto a afirmar que as vaias não foram para mim. Afinal de contas, vocês me vaiarem é o mesmo que vaiarem a si próprios. Eu não estou aqui na condição de deputado estadual eleito em 2006 e muito menos na de candidato à Prefeitura desta cidade agora em 2008, meus amigos! Portanto, não considero que com esta manifestação, eu esteja infringindo a legislação eleitoral. Esqueçam-se de que há um político na frente de vocês, porque eu estou aqui na condição de professor da rede pública estadual de ensino! Eu sou mais um de vocês! Foram quase duas décadas da minha vida dedicadas à educação e à cultura, foram quase duas décadas da minha vida ganhando um salário igual ao que vocês ganham, sabem por quê? Sabem por quê? Porque toda essa canalhice que manda e desmanda na política nacional há décadas assim o quis. Eu sei, meus queridos amigos, o que é enfrentar a jornada de trabalho dentro das salas de aula com os dedos rachados pela cal do giz, giz que muitas vezes sai do nosso próprio salário, porque o governo não está nem aí em dar as condições mínimas para a educação pública. –– A multidão agora em silêncio prestava atenção em cada palavra pronunciada por Alberto. –– Eu sei o que é enfrentar a rebeldia de alguns alunos, mas também sei da emoção que sentimos, na condição de educadores, quando descobrimos os talentos e aptidões de tantos outros alunos. Meus amigos, a nossa carga de trabalho se estende até depois das horas que passamos nas salas de aula. Quantos de vocês corrigem provas e trabalhos nas salas de aula? Quase ninguém, não é? Não dá tempo, não é verdade? Levamos estas tarefas para as nossas casas quando, em vez disso, deveríamos levar amor e carinho para os nossos filhos, para as nossas famílias. É por estas razões que me propus, atendendo um pedido do comando organizador desta paralisação, a vir aqui conversar com vocês e de braços abertos prestar a minha solidariedade a este movimento. Digo mais, eu, em primeiro lugar na qualidade de professor, depois de deputado estadual e candidato a prefeito de São Paulo, estou me propondo a encaminhar pessoalmente ao governador do Estado a pauta de reivindicações de todos vocês em reunião marcada no Palácio do Governo depois de amanhã. O governador respeitosamente me receberá. Mas para que tenhamos um resultado bom, eu gostaria de pedir, humildemente, que todos vocês voltassem ao trabalho amanhã e aguardassem por boas notícias. Dou-lhes a minha palavra de que lutarei até o fim por todos vocês. Não estou aqui para pedir votos, estou aqui na condição de um professor exigindo respeito à nossa categoria! Muito obrigado, meus queridos irmãos!
Alberto abandonou o microfone sob uma chuva de aplausos e assobios. O homem sem coração havia de fato conquistado o respeito dos professores que estavam rendidos e hipnotizados pelo seu discurso. O movimento dividiu-se imediatamente, e todos sabem que um movimento deste porte dividido, dissolve-se. Mas, como havia prometido aos professores, dois dias depois, Alberto estava junto com o governador discutindo o movimento. O candidato a prefeito de São Paulo agindo com maestria convenceu o governador de que um reajuste salarial seria a melhor saída para o momento e conseguiu para os professores algo em torno de dez por cento de aumento nos vencimentos, não era o reajuste salarial que a categoria queria, mas pelas circunstâncias econômicas do país, era algo significativo. Surgia com força um político novo no cenário desgastado da política nacional, representando uma categoria esquecida por praticamente todos os políticos. Alberto ficou em evidência na classe professoral, que o via como uma espécie de luz no fim do túnel, e também conquistara a admiração do governador, que apesar de ser adversário político do PSE, era amigo de Chiquinho Sollo, que o havia elegido, por ter conseguido estancar o movimento grevista. Os jornais e as revistas divulgaram o fato em larga escala, além do programa político do PSE no rádio e na televisão, e a partir de então o ex-professor e candidato à Prefeitura de São Paulo, Alberto Monteiro, se tornaria um herói da política brasileira não só na cidade de São Paulo, como também no Estado e em nível nacional.
Com toda a popularidade que conseguira foi fácil para Alberto conquistar a ida ao segundo turno das eleições de 2008. O candidato do PSE havia chegado à reta final das eleições praticamente empatado em primeiro lugar, logo, como ele havia afirmado, assumiria a ponta e de lá não sairia mais. A votação final foi um massacre, Alberto derrotou o segundo colocado obtendo, na contagem final dos votos, 65% dos votos válidos contra 35% do candidato derrotado. Alberto Monteiro era o novo prefeito de São Paulo.


* * * * * * *


Este texto é administrado por: Vôgaluz Miranda
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