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O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo XIII
Retrato de Família
Vicente Miranda

–– Doutor Alberto, pelo amor de Deus, não faça uma coisa dessas! Eu tenho dois filhos pequenos pra criar e o meu marido está desempregado, doutor! Eu preciso demais deste meu emprego! Não faça uma coisa dessas comigo, doutor Alberto, pelo amor de Nossa Senhora! Eu lhe imploro! –– suplicava a empregada doméstica, dona Selma, ao homem sem coração.
–– Cala a boca, cobra peçonhenta! Eu já falei que a senhora está despedida! Arruma a trouxa e some da minha frente, rápido! Rápido!
–– Mas doutor Alberto me perdoe! O senhor pode descontar do meu salário o vaso que eu quebrei do seu escritório! Foi um acidente, doutor! Pelo amor de Deus! Não foi por querer, não!
–– Para de rastejar feito um verme, mulher! Se eu for descontar deste seu salário de miséria o preço desta relíquia, a senhora terá que trabalhar uns três meses de graça nesta casa!
–– Eu aceito, doutor Alberto! Só não posso perder esse emprego e...
Mirtes, que ouviu do andar superior da casa o barulho que vinha do escritório de Alberto, desceu rapidamente as escadas e interveio na confusão causada por mais um dos chiliques do marido com os empregados:
–– O que está havendo aqui, Alberto?
–– Essa lacraia abominável quebrou aquele vaso, Mirtes! –– Alberto apontou para os cacos do vaso que estavam sendo recolhidos por dona Selma aos prantos no chão do escritório. –– Nem trabalhar em paz nesta casa eu posso mais, Mirtes! Está vendo como esses empregados ordinários que você contrata são incompetentes?
–– Dona Mirtes, pelo amor de Deus! –– suplicava a empregada, tremendo com os cacos do vaso nas mãos. –– Eu não tive culpa, foi um acidente, eu só estava limpando, esbarrei no vaso e ele caiu, mas eu vou pagar tudo...
–– Acalme-se, dona Selma. Eu sei que a senhora não fez por querer. Este vaso é baratinho, depois comprarei outro. Não se preocupe. Deixe os cacos para depois, a senhora pode ir cuidar dos outros afazeres da casa, sim?
–– Sim, senhora! Com licença!
Alberto, com os olhos transbordando raiva e ódio, fitou Mirtes, balançou várias vezes a cabeça num gesto que claramente desaprovava a atitude da esposa e começou o enredo sem papas na língua:
–– Por que você está bancando a protetora destes serviçais incompetentes, hein Mirtes?
–– Desde que nos mudamos para esta casa, todas as pessoas que trabalham nela são selecionadas cuidadosamente por mim e, apesar de serem serviçais, como você diz, são seres humanos merecedores de respeito como qualquer outra pessoa, Alberto. Além disso, todos estão sob os meus cuidados sim.
–– Essa empregada vagabunda, cretina e descuidada está despedida, Mirtes! Eu não quero nem saber!
–– Não, ela não está! Enquanto eu também mandar aqui nesta casa, ela não será despedida por um simples acidente ocasional, Alberto! E meça as palavras quando falar dos outros, tenha mais respeito pelas pessoas!
–– Ah, é! Então, pague você o salário dela!
Alberto virou-se de costas para a esposa, retirou-se do escritório indignado, batendo a porta com toda a força de que dispunha, foi à garagem, pegou o carro e saiu de casa sem dar satisfação alguma do rumo que seguiria. Mirtes permaneceu no escritório sem compreender o porquê de uma atitude tão extremada do marido, decorrente apenas pela quebra de um vaso ordinário. Olhou para os cacos no chão e um filete de lágrima já lhe percorria o rosto. O escritório impecavelmente decorado, a mobília de madeira nobre destacava-se aos olhos de quem o vislumbrasse, tudo muito limpo, tudo muito organizado, não havia motivos para outro destempero do homem sem coração, nenhuma razão sequer plausível. Alberto parecia aguardar um simples deslize para humilhar e torturar psicologicamente os empregados e até as pessoas estimadas por Mirtes.
Ainda sob forte emoção, Mirtes caminhou até a sala de visitas daquela enorme casa recém-adquirida, pelas janelas contemplou a beleza do jardim cuidadosamente aparado e se lembrou do jardineiro que havia sido demitido por Alberto dois dias atrás, após mais uma discussão por motivo banal. Aquele casarão poderia ser um sonho de consumo para muitos, mas para ela parecia uma prisão na qual cumpria pena por um crime que não cometeu. A casa fora adquirida pelo marido no final do ano passado, 2007. Alberto Monteiro era um deputado estadual muito conhecido, um político em ascensão, era candidato a prefeito de São Paulo pelo PSE nas eleições que ocorreriam no final do ano corrente, 2008. Porém, aquela casa não vinha oferecendo a ela e aos filhos nenhum motivo de felicidade, muito pelo contrário, aquela mansão, adquirida pelo marido por uma quantia de dinheiro inimaginável e de procedência duvidosa, agravou ainda mais a situação emocional da família, o homem, depois que havia se mudado para aquele local, parecia um tirano igual aos das biografias que ele andava lendo: Ivan - o terrível, Hitler, Stálin, e outros da mesma linhagem, ele não estava poupando nem ela nem os filhos de sua selvageria gratuita. Ainda olhando pelas janelas da sala de visitas o belo jardim do quintal, viu muitas flores, muitas árvores, muitos pássaros, a vida lá fora parecia-lhe bonita, harmônica, poética e, então, por qual motivo aquele deslumbrante casarão, quando o marido estava presente, tinha que se transformar no inferno? A cada dia o homem estava mais diabólico. Implicava com os empregados e com os filhos, maltratava as pessoas conhecidas e desconhecidas, enfim, não fazia questão de demonstrar o mínimo de educação e de bons costumes com ninguém. Às vezes, quando Alberto se preparava para sair, ela perguntava aonde ele ia e, em seguida, ouvia sempre a mesma resposta grosseira: “Aonde eu vou não interessa a ninguém, Mirtes!”. Apenas naquela semana, ele havia maltratado, além de dona Selma e o jardineiro, duas amigas antigas dela que lhe fizeram uma visita. Mirtes não teve nem como se desculpar às amigas de tanta vergonha que sentiu dos disparates do marido. Confundia bastante a cabeça de Mirtes deparar-se com situação tão paradoxal, o povo nas ruas aplaudia o político Alberto Monteiro, candidato à Prefeitura de São Paulo, enquanto isso, dentro de casa o mesmo homem parecia um demônio.
Mirtes decidiu que naquele dia teria uma conversa séria e definitiva com o marido. Ele havia passado dos limites. Ou ele mudava suas atitudes recentes com ela, com as pessoas que lhe rodeavam naquela casa e, principalmente, com os filhos, ou não haveria mais possibilidades de convivência conjugal entre eles dois. Mesmo diante desta drástica decisão, ela nutria esperanças de que o respeito, o carinho e a dedicação que Alberto tinha por ela voltassem. Ultimamente, ela sentia que não passava de um mero objeto sexual para o marido. Era só sexo, sexo e mais sexo. Alberto a possuía como se consumisse uma laranja que se chupa para depois jogar o bagaço fora. Não era assim que ela queria.
Mirtes passou a noite acordada esperando pelo marido. Por volta das três horas da madrugada, ele chegou. Acendeu a luz da sala e se deparou com ela em pé à sua frente:
–– Ué, você ainda está acordada, Mirtes? –– falou como se não se lembrasse de nada do que havia feito naquela tarde.
–– Eu estava esperando você chegar, Alberto. Não vou conseguir dormir sem antes ter uma conversa séria com você!
–– Ê ê ê ê ê... Se for conversar sobre assuntos de empregados a essa hora da madrugada, não vai dar. Tudo bem? –– foi se aproximando de Mirtes tentando agarrá-la ali mesmo, a mulher se esquivou.
–– Tira estas mãos de mim, Alberto! Chega! Nada está bem por aqui! O assunto que está em pauta é este seu comportamento doentio e destemperado.
–– Eu não sou adolescente para querer saber nada sobre comportamento, Mirtes! O meu jeito é este e acabou! Está bem? –– dito isto, virou-se de costas e foi se retirando.
–– Ei! –– bradou alto a mulher severamente –– Aonde é que o senhor pensa que vai, hein? Não vai fugindo, não! Você vai ter que me ouvir, nem que seja na marra!
Alberto voltou-se à mulher com um sorriso irônico, parecia até gostar da atitude enérgica e mesmo nervosa com que Mirtes lhe dirigia as palavras, sentou-se no sofá e disse à esposa:
–– Então, pode falar. Sou todo ouvidos.
–– Alberto, –– continuou Mirtes um pouco ofegante, porém mais controlada –– passaram-se mais de três anos desde que você sofreu aquele maldito acidente, já estamos em 2008 e você agora é um homem importante e abastado, é candidato a prefeito desta cidade, poderá inclusive ganhar a eleição, mas a cada dia que se passa você está ficando mais perverso e intolerante com todas as pessoas que o cercam. Por que isso, Alberto? Por quê?
–– Você está me achando perverso e intolerante?
–– É evidente. Você viu como você foi capaz de tratar aquela pobre empregada esta tarde? Você se lembra de todas as atrocidades que vem praticando ultimamente aqui nesta casa? Será que se lembra? E daquele cachorro que você matou desnecessariamente, você se lembra?
–– Ih! Já vem você de novo com esta história de cachorro e querendo defender estes serviçais cretinos e incompetentes.
–– Não, você está enganado, Alberto. Eu não estou em defesa de nenhum serviçal. O que estou tentando fazer é defender o que ainda resta do nosso relacionamento. Há três anos que não tenho paz, você nunca mais foi o homem que eu aprendi a amar, a admirar. Você só quer saciar seu apetite sexual e pronto. Não me dá mais carinho e nem dos seus filhos você se lembra mais. Eu acho que esta história de política mudou você demais, homem! E, infelizmente, você mudou para pior, você anda doente e obcecado com esta história.
–– Como posso ouvir isso? Como posso concordar com bobagens como estas? Vocês têm tudo o que querem nas mãos, tudo fruto do meu trabalho e suor, e ainda reclamam? Vocês queriam que eu continuasse sendo aquele professorzinho assalariado que eu era antes? Queriam?
–– Sim, tenho certeza de que queríamos. Ou você acha que este casarão, este dinheiro que não se sabe de onde vem e toda esta ostentação é tudo na vida, Alberto? Onde está a alegria que tínhamos? Onde está a paz que tínhamos? Onde está o amor que você tinha pela nossa família? Pelos nossos filhos? Você ainda me ama, Alberto?
–– Mirtes, eu vou ser bem franco, faz algum tempo que eu me sinto muito estranho, eu não sei se amo nem a mim mesmo, quanto mais aos outros. Mas eu me sinto bem assim, me sinto livre, nada mais me amarra, entende?
–– Não, eu não entendo. Então, quer dizer que você não me ama mais?
–– Mirtes, eu não amo mais você, nem ninguém. Sinto que este sentimento está longe do meu alcance.
–– Há outra mulher em sua vida, Alberto?
–– Não, Mirtes. Você é e sempre foi a única mulher em minha vida.
–– Você não vai mudar este seu comportamento e nem me amar mais para manter a nossa relação?
–– Eu não tenho por que mudar nada. Agora sou um político de sucesso, aclamado pelas multidões. Sou candidato a prefeito, estou empatado em segundo lugar nas pesquisas de opinião e tenho certeza de que, depois dos primeiros debates, assumirei a dianteira da disputa. Mirtes, eu, Alberto Monteiro, seu marido, serei o prefeito de São Paulo, você será a primeira dama desta cidade, entendeu? Eu não serei nunca mais um simples professor, a vida é assim. Gosto que seja assim.
–– Se os eleitores conhecessem as suas atitudes e o conhecessem de verdade...
–– Quem conhece quem de verdade, Mirtes? Nem a gente mesmo se conhece. O povo conhece o político Alberto Monteiro, o deputado estadual que clama por educação e progresso para a população e isso basta, o cidadão Alberto não interessa a ninguém.
–– A mim interessa.
–– Eu não vou mudar em nada, Mirtes. Eu não quero mudar. Mudar para mim seria o mesmo que morrer. Eu consegui sucesso assim e tenho que continuar assim.
–– Então, é definitivo, Alberto?
–– É.
–– Alberto, então eu fico por aqui mesmo, deste jeito eu não quero seguir em frente com você. Providencie um advogado para tratar das nossas papeladas.
–– Se você deseja assim...
–– Quem desejou assim foi você e não eu.
–– Vou arrumar as minhas malas, Mirtes. Quando o dia amanhecer eu vou embora. O advogado vai acertar tudo, não vou deixar você nem as crianças ao relento. Mas eu também acho que entre a gente não dá mais.
Mirtes viu Alberto subir as escadas em direção ao quarto como se nada o tivesse abalado. Ela, no entanto, estava destruída por dentro. Havia algo misterioso naquele homem que o blindava de qualquer sentimento de bondade inerente aos corações humanos. Viu quando Alberto entrou no quarto, fechou a porta e apagou a luz, enquanto isso, sentiu que lágrimas fluíam abundantemente de seus olhos e escorriam pelo seu rosto de feição triste e perplexa por não esperar que um amor de muitos anos chegasse de maneira tão complicada ao fim. Não era exatamente o que ela queria, mas não poderia ser de outra forma, o marido parecia já esperar por isso. Mirtes adormeceu ali mesmo no sofá e, ao acordar, notou que Alberto, agora em sua vida, era apenas uma lembrança saudosa de tempos felizes, eternizada em um retrato ao lado dela e dos filhos sobre o aparador da sala de visitas.

* * * * * * *


Este texto é administrado por: Vôgaluz Miranda
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