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O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo VII
O Adeus
Vicente Miranda

Início da primavera. Passaram-se alguns meses depois daquele estranho acontecimento com Mirtes sem que nenhum fato novo, marcante ou diferente interviesse no cotidiano do professor. Porém, como as tragédias e os acontecimentos da vida não costumam dar recados antes de virem à tona, agora, bem no finalzinho do mês de setembro, quando a alegria da estação das flores vem colorir e embelezar a sombria paisagem urbana de São Paulo, Alberto tomaria conhecimento de uma tragédia que o entristeceria profundamente.
Estava Alberto na sala dos professores, meia hora antes do início das aulas, preparando os últimos detalhes para a aplicação das provas finais do terceiro bimestre. Vinte minutos depois, terminados os preparativos, o professor se encaminhou à primeira sala de aula, adiantando-se aos alunos, pois tinha por finalidade organizar e alinhar as mesas para a aplicação do exame, entrou na sala e sentou-se na sua cadeira, pôs seus pertences, pacotes de provas e pastas escolares sobre a mesa. Abriu o pacote com as provas que seriam aplicadas aos alunos daquela classe, organizou algumas mesas que não estavam alinhadas às demais e foi colocando as provas viradas para baixo sobre cada uma delas. Logo depois, notou que os alunos vinham caminhando pelo corredor em direção à sala de aula, o ruído das vozes e os comentários sobre a prova eram cada vez mais evidentes. Os alunos começaram, aos poucos, a entrar na sala de aula, ocupando cada qual o seu respectivo lugar, o mestre ainda esperou mais dez minutos para que ninguém, que porventura estivesse atrasado, perdesse a prova, era um tempo de tolerância dado generosamente pelo professor aos alunos mais tranquilos e vagarosos. Decorridos os dez minutos de tolerância, Alberto observou a classe e notou que três lugares estavam vagos, dentre eles o lugar que era ocupado por Cléverson, a última mesa da última fileira da sala de aula –– “Certamente estes alunos não chegarão mais a tempo para o exame” –– concluiu o mestre que já estava preparado para iniciar a avaliação –– “A única coisa que estranho é que o Cléverson não costuma faltar ou chegar atrasado em dias letivos normais, e em dias de provas ele é sempre um dos primeiros a entrar na sala de aula, o que será que aconteceu para que ele não viesse hoje?” –– perplexo com a ausência de Cléverson logo no dia da prova, o professor assim questionava-se mentalmente. Enfim, com todos os alunos que estavam presentes devidamente acomodados, o professor deu início à prova:
–– Boa tarde, pessoal. Agora que todos estão prontos, podem virar as provas que estão sobre as mesas e...
Subitamente a fala do professor foi interrompida por uma aluna que não estava na sala de aula, mas que chegava atrasada e afoita, parando em frente à porta como se não fosse entrar, atrapalhando sobremaneira a concentração do mestre:
–– Professor, professor...
–– Entre, Analú. Você está atrasada, mas há tempo de fazer a prova, vamos iniciá-la agora, entre e sente-se, por favor. –– O professor tentou confortar a aluna que parecia preocupadíssima, sem perceber à primeira vista que ela tinha algo a dizer.
–– Professor, eu não vim aqui para fazer a prova, eu não tenho condições emocionais, eu cheguei um pouco atrasada, mas dava tempo de entrar na sala, até que eu soube que uma tragédia aconteceu.
–– O que aconteceu, Analú?
–– Eu não iria contar nada para não estragar a prova, mas acho que algo assim deve ser avisado imediatamente, além do mais, o diretor Martins autorizou que eu contasse tudo agora para o senhor –– irrompeu em lágrimas a menina já com dificuldades para articular as palavras.
–– Analú, o que aconteceu para que você esteja transtornada deste jeito? Fala, menina! Fala, pelo amor de Deus!
–– Professor, acabou de chegar a notícia de que o Cléverson morreu. Mataram ele, professor! Mataram ele!
Alberto ficou pasmo com o impacto da notícia que era narrada pela fala chorosa de Analú, a classe ficou em silêncio por um tempo, silêncio este logo interrompido pela falação geral dos alunos que comentavam e lamentavam o ocorrido. O professor visivelmente chocado dirigiu-se à aluna, que ainda permanecia estática na porta de entrada da sala de aula, na tentativa de obter mais informações:
–– Quando aconteceu isso, Analú?
–– Eu não sei direito, professor. Alguns moradores da favela onde ele morava estão no portão de entrada da escola conversando com o diretor Martins e contando a ele tudo o que aconteceu.
Imediatamente, Alberto apressou-se até o portão de entrada da escola onde um grupo de pessoas, dentre elas o diretor Martins, conversava sem parar.
–– O que aconteceu, Martins?
–– Alberto, estas pessoas e, principalmente, estas duas mulheres que são parentes do aluno Cléverson –– falava o diretor indicando duas mulheres de fisionomia sofrida e triste –– vieram nos trazer a triste notícia do assassinato do jovem aluno ocorrido nesta manhã, as outras pessoas que aqui estão são amigos e vizinhos da família do Cléverson, família esta que mesmo em um momento tão delicado achou por bem que fôssemos avisados do ocorrido, por esta razão, mesmo sabendo que você estava aplicando prova aos companheiros do menino assassinado, pedi a uma aluna sua que fosse avisá-lo imediatamente.
–– Fez bem, Martins. Mas, por que aconteceu isso com o Cléverson? Ele era um menino bom, estudioso, inteligente, batalhador...
–– Calma, Alberto. Nós sabemos das qualidades que tinha aquele menino, lamentamos muito o ocorrido. Vamos voltar à escola e às nossas atividades, depois quero que você vá até a minha sala para conversarmos mais.
O professor Alberto e o diretor Martins despediram-se dos parentes, vizinhos e amigos de Cléverson, cumprimentando solidariamente cada um deles. Alberto voltou à sala de aula, suspendeu a prova, arrumou os seus pertences e chorando dirigiu-se à sala do diretor Martins, alguns alunos o acompanharam silenciosamente em sua caminhada –– não havia o que falar, nenhuma palavra serviria para nada num momento de tamanha tristeza –– preferiram apenas permanecer do lado de fora da sala do diretor em respeito ao sentimento de dor e solidão do professor, que entrou e sentou-se levando as mãos de pronto à cabeça e, desta maneira, ficou aguardando pela volta do diretor Martins. E logo, apontou apressado no corredor da escola o diretor, pediu licença aos alunos que permaneciam na porta de sua sala, entrou e fechou-a:
–– Alberto, meu velho, eu nem sei o que dizer. Todos nós nesta escola gostávamos muito do pobre menino.
–– Martins, o Cléverson seria um vencedor na vida se o caos e o mundo em que ele vivia o deixassem em paz.
–– É... Como esses bandidos são desumanos e covardes. Eles tiram vidas como se o fizessem por diversão.
–– Como e por que isso aconteceu, Martins? Fala logo, vai. Eu sei que você sabe de tudo.
–– Alberto, eu sei que nós todos gostávamos do garoto, mas ninguém o estimava mais do que você, eu não queria transtorná-lo ou revoltá-lo mais ainda.
–– Mas eu preciso saber, Martins. Por favor.
–– Tudo bem, Alberto, você tem o direito de saber. Foi mais ou menos assim, os assassinos foram à casa do Cléverson nesta manhã com a finalidade de roubar cerca de vinte reais que ele e o tio haviam conseguido ganhar vendendo latas e papéis velhos ontem. Não se sabe de que forma souberam da existência deste mísero dinheiro. Bem, o tio, que era quem estava com o dinheiro, havia saído e a mãe do Cléverson também não estava em casa, no entanto, os assassinos não acreditaram quando o menino contou a eles que não estava com dinheiro nenhum, acharam que Cléverson tentava os enganar. Um dos bandidos queria que o pobre menino desse conta dos vinte reais de qualquer forma, como isso não foi possível, ele matou o Cléverson com dois tiros à queima-roupa. O irmãozinho mais novo do Cléverson, uma criancinha de dez anos que estava na casa na hora do ocorrido, viu como tudo aconteceu, mas foi polpado pelos assassinos, a pobre criança contou à polícia o que havia presenciado, porém disse que nunca havia visto naquela região da favela aqueles homens que assassinaram o irmão dele, tudo indica serem os assassinos de outra região ou que o menininho foi ameaçado por eles e está com medo de delatá-los.
–– Malditos, desgraçados! É uma barbaridade o que fizeram, Martins.
–– Sinto muito, Alberto. Parece-me que a sociedade entrou numa fase perigosa. Mata-se por tão pouco, mata-se sem escrúpulos, mata-se um ser humano ainda criança como se não fosse nada.
–– Martins, eu vou à casa do Cléverson.
–– Vá, Alberto, e leve à família do menino Cléverson os sentimentos de nós todos aqui da escola, eles estão precisando de amparo neste momento difícil.
Na secretaria da escola, o professor Alberto tomou nota do endereço de Cléverson para onde se dirigiu.
A favela do Heliópolis não ficava longe dali, uns vinte minutos a passos largos seriam suficientes para que o professor chegasse onde a família do aluno assassinado morava. Já dentro da favela, o professor procurava pela rua e número da casa sem que obtivesse êxito diante da numeração irregular e da dificuldade de acesso local. De repente, um morador da região, um homem que estava numa das esquinas, cheio de indagações, álcool e fumo na cabeça, interrompeu Alberto:
–– Qué que tá pegando, bacana?
–– Boa tarde, senhor. Eu procuro por esta rua e por este número, talvez o senhor conheça. –– Perguntou o professor, mostrando ao homem o endereço anotado num pedaço de papel.
–– Cê tá procurando, por quê? Qualé o babado?
–– Morreu hoje um menino que morava neste endereço.
–– Cê é da onde, mala?
–– Eu era professor do menino que foi assassinado e quero prestar minha solidariedade à família dele.
–– Ah! Firmeza, bródi! Pensei que cê era outra coisa. Cê tá vendo ali embaixo, aquela casa com gente na porta, lá embaixo, é lá. O moleque morreu hoje né, só?
–– É. Uma tragédia como esta não deveria acontecer de forma alguma. Em que mundo nós estamos vivendo.
–– Esta é a realidade por aqui, dotô. Essa mulecada não tem escolha, se corrê o bicho pega, se ficá o bicho come. Não tem escolha, não tem idade, aqui cada um é cada um. Acho que quem matou o muleque num é nem daqui, deve ser treta de fora.
–– Desculpe-me, eu não me apresentei e nem perguntei o seu nome. Eu me chamo Alberto. E você?
–– Dum-Dum.
–– Prazer, Dum-Dum. Até mais.
–– Vai na paz, sangue bom. Inté.
Chegando à casa de Cléverson, casa pequena e simples de alvenaria, desprovida de qualquer detalhe de acabamento, bem no meio da favela do Heliópolis, o professor foi recebido por uma tia do menino assassinado e, em seguida, foi apresentado à mãe do garoto. A pobre mulher estava inconsolável, sentada numa cadeira, chorava um choro silencioso, um choro que misturava dor e angústia e, com um lenço branco nas mãos, enxugava cada lágrima que lhe descia dos olhos. Porém foi um bálsamo para ela saber da presença do professor ali naquele momento tão sofrido da vida:
–– Professô, como dói, professô. O meu minino era muito bão, estudioso, trabaiadô, sabia lê e escrevê dereitim, num mericia isso, professô. Ele gostava dimais da conta do sinhô.
–– Eu sei, minha mãe, eu sei. Esse menino era muito especial para todos nós. –– Alberto falava enquanto acariciava o rosto da triste mulher, mais uma Maria sofrida, iletrada, injustiçada pela vida, mas com a dignidade de uma mãe de verdade. As lágrimas derramadas por ela comoviam o mestre.
–– O meu minino dizia quais qui todo dia: “Mamãe dispois que eu estudá o úrtimu ano na iscola, vô sê um professô igual o professô Alberto”, ele falava bem assim, professô.
Alberto não se conteve, beijou as mãos da pobre mulher, agora também compartilhando aquele choro silencioso e doído, acariciou novamente o rosto dela e despediu-se prometendo que voltaria mais tarde para o velório e o enterro do garoto covardemente assassinado.
Chegando em casa, o professor avisou a esposa do ocorrido e trancou-se no quarto –– queria ficar sozinho –– muito triste com o que havia acontecido. Não conseguia se conformar com o assassinato de Cléverson e o pior de tudo era o sentimento de impotência diante do fato. Lembrava-se do choro angustiante da pobre mãe do aluno morto. Passou a tarde inteira absorto nas lembranças boas da convivência curta, porém definitiva, que tivera com o jovem na escola. À noite não quis jantar, tomou banho e por volta das vinte e duas horas, despediu-se da esposa –– Mirtes ficou em casa para cuidar das tarefas profissionais e dos filhos –– e rumou em direção ao Jardim Heliópolis onde passaria a noite no velório e acompanharia o enterro de Cléverson que se daria às nove horas da manhã do dia seguinte. A esposa recomendou-lhe muita cautela naquela região violenta, quando, depois de insistir para que o marido não fosse àquela hora da noite ao velório do menino, mas apenas ao enterro, percebeu que o homem estava firme e irredutível na idéia de ir ao velório também.
O professor tomou um ônibus numa avenida próxima de sua casa, decidiu que não faria a costumeira longa caminhada de que tanto gostava devido aos perigos das ruas nas noites paulistanas. Depois de quinze minutos, Alberto chegou ao ponto no qual deveria descer na Estrada das Lágrimas, nome real e sugestivo para a triste ocasião. Logo que o professor desceu viu a Paróquia de Santa Edwiges, uma igreja linda, com a imagem da santa erguida e sustentada por uma enorme coluna de concreto na porta da entrada principal onde há uma escadaria. Santa Edwiges, a protetora dos pobres e endividados, parecia olhar para a região dali do alto da igreja cravada sutilmente no coração da miséria e da pobreza da periferia paulistana. Dentro da igreja o velório já acontecia, não era costumeiro haver velórios naquele espaço, mas o pároco local, devido à comoção geral que o episódio trágico provocou na comunidade da região, entendeu ser coerente e providencial a concessão excepcional do espaço para a realização do velório de Cléverson, atendendo a um pedido comovente da família.
Alberto subiu a escadaria e entrou na igreja, da porta da entrada principal, quando olhou para dentro, contemplou a enorme construção singela e ao mesmo tempo bonita do lugar. Havia no altar, onde o corpo de Cléverson estava sendo velado, uma pintura de Jesus Cristo com as mãos espalmadas despejando farta luz sobre todos os presentes. As paredes laterais da parte interna da igreja não eram pintadas, nelas havia, propositalmente, tijolos à mostra de diversas tonalidades de cores que refletiam uma claridade suave, agrádavel e diferente ao recinto. O professor dirigiu-se vagarosamente pelo corredor formado entre os bancos, em que os fiéis sentam-se em dias de missa, na direção do caixão com o corpo de Cléverson, havia muita gente em volta do esquife: parentes, amigos, vizinhos e curiosos de toda ordem. Alberto cumprimentou novamente a mãe de Cléverson. A mulher chorava sem parar debruçada sobre o pequeno e franzino corpo que repousava com a face de aparência pálida, mas tranquila, para todo o sempre.
–– Olha pro meu minino, professô. Ele era tão bunitu. Ele tá cum Deus e Nossa Sinhora agora.
–– O seu menino descansa em paz, minha mãe. Ele parece tranquilo e distante, sei que está melhor que a gente aqui. Sentiremos muito a falta dele.
Passou-se a noite naquele clima de tristeza absoluta e revolta pela injustiça cometida. Uma comunidade esquecida, silenciosa e solitária –– a televisão não noticiou nada, os jornais não publicaram uma linha e o rádio calou-se sobre o fato –– velou mais um de seus moradores, um jovem que tinha toda a vida pela frente, assassinado cruelmente em meio à indiferença da grande Pátria brasileira, mãe gentil que, por vezes, dá as costas aos seus filhos socialmente excluídos.
Ao professor, na manhã seguinte, cansado e entorpecido pelo sono, depois que viu a última pá de terra ser lançada sobre o túmulo de Cléverson, nada mais restava fazer ali que não fosse caminhar de volta para casa.

* * * * * * *


Este texto é administrado por: Vôgaluz Miranda
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