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Os últimos cantos dos cisnes
José Luiz da Luz

A tarde ia bela, mas havia pedras nos meus passos tão incertos como incertos são os sonhos, e urdia o silêncio nos meus ouvidos: o crepúsculo chegara às últimas luzes do dia, frouxas pelas frestas das nuvens. Era numa estrada deserta. Ademais, quando a gente se sente só todos os lugares são desertos. Avistei à frente uma mulher vestida de seda de gaza; a pálida luz das nuvens envolvia a face dela e lhe dava um aspecto merencório nos olhos.
          A alva roupagem gotejante de luz, diriam também se a vissem — um anjo pendido.
          Estava prostrada ao chão, no colo dela repousava o corpo de um homem lívido.
          -É meu amado — falou a mulher — Coelis é o nome dele. Um poeta que dorme e sonha; um anjo que resvalou na terra. Sabeis que poetas são diferentes, têm o dom de ser introspectivos. Coelis dorme e sonha dentro de si, por certo quando acordar trará das cavernas do peito um poema tão profundo como é o canto dos cisnes.
          Pareceu-me insensata, porquanto olhei a tez lívida na imobilidade da morte. Li alguns poemas dele que a mulher trazia, e os últimos eram mais belos do que os primeiros. Talvez prelúdios da partida como fazem os últimos cantos dos cisnes. Sabeis, pois, que os cisnes entoam lindas melodias durante toda a vida, mas ao pressentirem a morte próxima, ainda assim, não deixam de entoar harmoniosas melodias, entoam ainda mais docemente e felizes, por saberem que vão libertar-se do peso da terra. Pobre homo sapiens que teme a morte, engana-se em pensar que os cisnes cantam lamentos nos dias finais.
          -Me chamo Dixus, digo-vos que dorme o sono da morte — temia ao falar para um coração sensitivo de mulher — Eis que foi poeta, sonhava e amava tanto que o seu corpo no silêncio derrama um canto!
          -Morto?... Não acredito!... não vedes que dorme? Achei-o deitado à ribeirinha do rio... Vedes que nem suspira, é sono profundo de poeta... Dorme assim há vários dias! Morto?... Não, ele é imortal!... Não sabeis que ele é o alimento que me sacia, meu ar, minha vida? É meu passado e meu futuro de mulher!... Sinto o amor arder no meu seio, a libido correr nas veias cálidas de esperança, meus nervos convulsivos inflamarem.
          Gratia era o nome dela. Apiedei-me daquela que ardia de amor e de sonhos sem conforto... O que ela tinha? Uma alma esvaecida; um poeta imolado! Restava apenas o amor a um poeta morto! Tentei convencê-la.
          -Vedes que é morto, não respira, é lívido como Romeu nos braços de Julieta. Duvidas? Tendes razão... não é fácil aceitar que o sol que aquecia uma alma, se acreditava que luziria pelo resto da vida, de repente se apagou. Que tarefa dolorosa é deitar numa teogonia insana, se tua crença não beija a verdade, não podeis mesmo.
          Coelis era uma espécie de dogmático que vivia o que escrevia, e escrevia o que sentia. Personagem dos próprios sonhos. Não fora simples ator porque palpitava sua alma e vivia na terra, sentia a fome dos excluídos; sentia a noite nas agonias; sentia o animal selvagem na fúria; sentia a ternura do amor poético de um Pequeno Príncipe por uma Rosa, de Saint-Exupéry.
          Coelis comovido ajoelhou-se na ribeirinha do Rio Solutus, no gemido das águas ouviu o Danúbio Azul como lamento de Johann Strauss, pôs-se em uníssono a chorar e a escrever. Eram letras que choravam: diziam a real face sensível da fome, da dor, do amor, da vida e da morte, banhadas das próprias chagas recônditas. Sentiu. Nas comoções em que se pendeu não viu o tempo passar: as dores do espírito matam tanto como as da carne. De tanto êxtase de inspiração, esqueceu-se de comer e dormir. Após dias e dias foi empalidecendo, aos poucos delirando, até que desmaiou e morreu de inanição!
          A mais forte comoção de uma alma é a que faz vibrar a alma e trespassa às cavernas íntimas do peito, com os mistérios da beleza ou da dor. A poesia nasce com a luz da alma cintilando em tudo, dando à virgem os eflúvios da bonança, ao homem as asas de Ícaro.
          Quando o poeta morreu o seu corpo foi para terra, sua alma foi para luz. Gratia vagava por rumos que só o coração dela entendia. Desvairou, declamava os poemas de Coelis de dia e de noite: para a lua, para as pedras, para os animais, para o céu, para o mundo.
          Aprendi amar Gratia, uma desconhecida que fora e que ao acaso encontrei no meio dos meus dias: amei-a como filha do meu sangue, ou como irmã espiritual.
           Acompanhava as vertigens, as lágrimas, a solidão. Depois do encontro com ela e o poeta, passei a freqüentar sua casa.
          -Arde meu corpo de febre — Gratia falou-me quando a encontrei curvada às margens do mesmo rio que Coelis partiu, e ela continuou!
          -É efeito do veneno — fiquei estupefato em saber que bebera veneno — para não sofrer muito tenho-o tomado lentamente, uma gota por dia. Ora tenho medo, ora sinto queimar meu coração, meus neurônios deliram, a raiz dos meus cabelos latejam. Meu Deus, como é dolorido morrer!...
          Reprimi severamente com uma mescla de pânico e piedade.
          -Arrependei-vos, porque a vida é bela, por que não concebeis o ideal tornar-se vida? Como a face bela de Coelis morto, não podeis crer que ele morreu? Então negais que era morto. Há a imortalidade da alma, e por que também não saber que ele vos espera na outra face da vida? Porém na hora certa. A alma não é como a nuvem, livre e incerta, mas tem que obedecer leis divinas. Vós que tendes um corpo sensual, quereis transformá-lo numa massa de miasmas antes do tempo? Ver apagar a seiva da flor e a face da criança pura e bela?
          Bradou.
          -Deus! Deus meu!... O grito íntimo de minha alma se revela nas horas frias deste meu espanto! Na angustia ou na dor, é mais fácil assim crer em Deus!
          -Crer nele como utopia ou hipótese? — falei, mesmo vendo desfalecendo — Mas, se entendeis por ele dogmas que os homens ergueram banhados de fanatismo, vereis vossa própria inanimação. Sois uma criança, nem abristes os olhos e já gravitastes sem ânimo?
          Levei-a rapidamente ao Hospital Vitae. Foi quando Gratia delirava no leito gelado que o Doutor Solidum abriu a porta:                     
          -Pobre mulher, acredito que sofre de transtorno de Personalidade Borderline, além de intoxicação...
          Eu murmurava secretamente: “Pobre doutor, não sabe que Gratia na verdade sofre é por amor”.
          Gratia delirava, mergulhou nos túneis oníricos do passado e do amor que sentia. Desprendida da realidade do corpo carnal, fez-se os sonhos que o poeta amou.
          Em coma, viu Coelis vindo dentro um veículo cilíndrico, transparente como cristal, que transparecia por entre as paredes as estrelas do céu.
          -És tu meu amado Coelis?
          Nas cenas, o poeta saiu levitando, envolto numa chuva luminosa.
          -Gratia, eu te amo!... Vou te amar por toda eternidade! Sagrei-a de minha alma a mais bela princesa, em ti o anjo misterioso adornou do seu mágico olhar os fluidos de amores divinos. Se eu fui poeta e te amei, se Deus votou minha alma com os dons da inspiração, foi para amar e sentir, foi para amenizar as chagas do mundo com minhas douradas letras; foi para exprimir em páginas de luz os meus pensamentos em forma de poemas! Volta à terra porque eu vou para o alto, vou te esperar.
          Os olhos dela tremiam naquele leito, as mãos gelaram, aos poucos aquela visão foi se tornando ofuscada pelas vozearias no quarto, qual murmúrios ao longe, era meu diálogo com o Doutor Solidum:
          -Examinei-a novamente e está fora de perigo, apenas dorme. O veneno foi neutralizado, porém não procriará. O coração foi danificado, mas haverá tratamento.
          -E Coelis? — perguntei, pois fora ele quem atestou o óbito.
          -Coelis tinha miocardiopatia dilatada. Para você entender, morreu do coração.
          Mas eu pensava: “Morreu na verdade de tristeza, depressão, angústia, em ver tanta miséria humana”.
          Gratia acordou, foi para casa, viveu, mas sempre guardando em secreto o que para muitos não passaria de um sonho, mas para ela fora uma visão.
          Anos e anos se passaram, aguardando a hora do reencontro com Coelis. De alma pendida, tornou-se namorada de um espectro. Pelo resto dos seus dias tornou-se virgem, tanto no corpo como na alma. Quereria partir sem que nunca ninguém a tivesse tocado a menor emoção. Pura para Coelis, como Deus a criou. Tornou-se uma bela adormecida para o mundo, como no conto de Charles Perrault.
          Pedia toda noite que um anjo divino viesse do céu e a envolvesse com a sua luz, para guardá-la pura, como puras são as últimas melodias dos cisnes! Quereria que a hora da partida chegasse, que partisse como uma pura criança, para só transformar-se em mulher nos braços de Coelis numa outra vida.




Biografia:
joseluizdaluz@yahoo.com.br    José Luiz da Luz.       
Nascido em 04/09/1964 na cidade de Ipiranga Paraná.
Poeta e contista.
Autor do livro de poesias Lira Romântica.
Considerado um dos melhores poetas do Brasil pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores do Rio de Janeiro.
Tem participação em mais de vinte prêmios literários pelo Brasil.
O poema Páginas da Terra, é a obra mais polêmica, abordando de forma profunda a miséria humana.

Este texto é administrado por: Comendador José Luiz da Luz
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