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PASTOR OVERNIGHT X MENDIGO AZUL
Lasana Lukata

Esse ano a palavra inflação voltou a rondar os jornais. Em 2007 rondou em forma de memória, quando um jornal publicou matéria, falando dos tempos da inflação galopante. Quase todo sábado, tempo do Sarney, os preços das passagens de ônibus aumentavam. Eu era gerente em Caxias e não tirava a maquininha de remarcação do bolso. Tempo do Overnight, tempo de escuridade e aplicações.

Overnight...Quem tinha boa soma em dinheiro e aplicasse no popular Over, no outro dia estava bem. Lembro que o intendente do navio, em que fui marinheiro, investia no Over. Investia o dinheiro do pagamento da tripulação, mas ninguém reclamava da ética do tenente, um ateu convicto, porque o lucro era revertido para o navio com festas de porto em porto, convidando-se belas mulheres. Quem iria reclamar com aquelas Vênus a bordo?! É bem verdade que nessas pescarias vinham alguns baiacus, miquimbas, mas no geral, ninguém ficava sem pescar. A Marinha depositava o pagamento no dia 19, mas o navio, por conta das Vênus, só pagava no dia 23...Variava.

Porém, a aplicação mais interessante desse tempo overnightiano não era feita no mar, mas em terra. O aplicador era um pastor de Vila Tiradentes. Digamos que seu nome era pastor Overnight. Aplicava no over os dízimos e ofertas e até aí não pesava, mas os órfãos, as viúvas, como está prescrito no Livro Sagrado, não viam uma pratinha de um centavo sequer, um benefício desses rendimentos. O lucro não era revertido para a igreja, transformava-se em carros zero, dos mais caros, sítio, imóveis para aluguel e ações no nome do Ministro de Deus, do pastor Overnight, cuja filha não cansava de dizer que seu pai não era otário, só dormia em hotel 4 estrelas. E aí a gente lembra da frase de caminhão: "Se tua estrela não brilha, não tente apagar a minha". Mas muitas estrelas só acendem, apagando as de muitos! Certa vez um cabo da aeronáutica e cristão veio a mim para saber se havia como ajudar uma viúva com fome e eu lhe disse que na igreja havia um quarto com comida até o teto e era só falar com o pastor Overnight. Minutos depois voltava o cabo com lágrimas nos olhos. O pastor lhe dissera a seguinte frase: "Rapaz! Fica quieto que assim sobra mais pra gente!"

Por Deus, eu já tinha ouvido falar de Ira Santa, mas Avareza Santa foi a primeira vez! E é aqui, na avareza, que lentamente feito uma ostra que se fecha, encerrando pérola, que fecho a crônica, recordando um contemporâneo do pastor Overnight, um mendigo habitante da Praça da Matriz, a Praça do cartão postal, principal de Meriti, que numa tarde, anoitecendo, em que me deslumbrava com os vários tipos de azuis que Deus pintara no céu, formando um degradê, encontrava-se parado junto à mesa de jogo dos aposentados sem dizer palavras. O mais curioso era que na terra, o mendigo também vestia um terno azul clarinho, mas a sujeira o empurrava para um azul ferrete. Parecia uma estátua suja de azul.

Observava-o da passarela, quando uma mendiga atravessou a rua cheia de salgados da padaria. Na praça os outros mendigos estenderam as mãos, porém, ela armou-se de um porrete e batia como se fosse uma palmatória.

Naquela segunda-feira muitos estavam no vermelho, mas eu estava azul de dinheiro e comprei duas grandes bolsas de pão doce, fresquinhos e também fui para a praça, mas para suavizar as porretadas. A vida empurrou-me para o mendigo azul, mas ele não me encarou. Pensei na possibilidade da surdez das almas feridas e então lhe disse que quem estava lhe oferecendo pão era alguém que entendia da fome, da dor, na carne e na alma. Virou-se para mim, e lá no fundo das grossas sobrancelhas, estavam incrustados dois olhos azuis e brilhantes como duas bolhas de sabão, prestes a se desfazer em lágrimas. Ofereci mais uma vez e ele abaixou, pegou um pão doce. Ainda curvado, insisti para que pegasse mais porque iria sobrar, repisei a oferta, mas ele foi erguendo a coluna vertebral, ereta como a de um cavalo-marinho, até ficar do meu tamanho e a alma maior do que a minha e a do pastor. Olhou-me profundamente nos olhos e disse:
- Basta um! Há muitas praças pela frente!

E ergueu o pãozinho, agradecendo ao Deus dos céus azuis.


Biografia:
Lasana Lukata é poeta, escritor por usucapião, São João do Meriti, RJ.
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