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A Prima Goulda
Causos do Comendador Baltazar
Mario Bourges

Resumo:
Outras histórias acesse: www.comendadorbaltazar.blogger.com.br

Dia desses, num daqueles momentos em que o nada impera, resolvi vasculhar meu passado, que, esquecido em uma grande urna de madeira, clamava pela minha presença, ou pela presença de qualquer um que estivesse por perto. Então, sentado no capacete de Exército que tomei emprestado e nunca mais devolvi, revirei aquela tranqueirada toda que estava socada na tal urna. Logicamente que os moradores deste baú (aranhas, baratas, lesmas, pulgas, moscas e sei lá que outro bicho com chifres era aquele que vi) não gostaram do que fiz, mas eu não estava nem aí para eles.

E entre uma coçada e outra pelo corpo, proveniente das pulgas que se puseram a engordar às minhas custas. Mais as aranhas, que encontraram em mim um lugar mais que apropriado para criar suas moradas, e ainda, com direito a área de lazer. Das baratas não pude esperar muita coisa além das mordidas e mais mordidas. Já as lesmas, seres moribundos e previsíveis por excelência, não fizeram muito mais do que já esperava. Aliás, não fizeram nada mais daquilo que já esperava, se arrastaram pelo meu corpo com seus corpos visguentos e me deixaram todo nojento. Contudo, as moscas fizeram o que sempre fazem, encher o saco. Quanto ao outro bicho chifrudo, ficou me olhando e me olhando com seus olhos carentes por algum tempo, e depois foi roer um pé de meia que estava largado num dos cantos da caixa. Tudo bem, pensei, não gostava daquela meia mesmo, continuei com minhas conjecturas por mais algum tempo.

Mas veja, enquanto eu servia de alimento e área de lazer e alvo de encheção de saco para os insetos, outras coisas mais interessantes, ou não, brotavam do baú e me faziam brilhar os olhos de emoção... Ou não. Lá pelas tantas, quando eu já me encontrava perdido no meio de uma bagunça considerável, um maço de cartas saltou não sei de onde e caiu sobre meu colo. Confesso que até fiquei surpreso, mas foi só também, pois o whisky que eu estava bebendo no momento não permitia muitas outras surpresas. Sabe, os reflexos ficam mais lentos... Isto quando ainda sobram reflexos para ficarem lentos. Mas não podia me deixar abater, pois ainda tinha aquele fardo de cartas para descobrir do que se tratava.

Embora o sono começasse a atrapalhar em meus pensamentos, que também já não funcionavam adequadamente por causa do álcool, insisti nas minhas descobertas, ainda que estivesse quase parando dentro do tal do baú. Então, com os olhos ardendo de sono, a cabeça zonzeando por causa do whisky, o corpo todo melado e cheio de rastros pelas lesmas moribundas e previsíveis, das baratas que de tanto morder meus sapatos quase os furaram, das moscas que passaram a me xingar por sei lá qual motivo e do bicho chifrudo que, empanturrado de tanto comer meia fez seu micro cocô sobre o diário de um mago, ou de um magro, sei lá, bom, depois de tudo isso peguei a primeira carta para ver o que dizia.

No entanto, só depois de alguns minutos forçando a vista pude identificar aquele amontoado de letras sobre o papel. A carta era da minha prima que mora no interior, sim, a Goulda, a irmã do Ementhal (carinhosamente conhecidos desde crianças como irmãos queijo), e era do tempo que trocávamos correspondências, de quando ela escolheu viver no exílio lá no Paraguai. Digo que escolheu, mas é injusto usar este termo para definir o que aconteceu. Procure, você leitor, entender os fatos. Meus tios, os pais da Goulda e do Ementhal, criavam galinhas D’Angola, mas que as vigiavam pelos terreiros eram os filhos, ou seja, meus primos. Pois bem, até aí creio que todo mundo tenha entendido. O problema consistia, e ainda consiste, na lentidão de pensamento da Goulda... E do Ementhal também. Mas ela ainda é mais devagar.

Mas tudo bem, deixe-me continuar com os fatos. E para comprovar o que disse contarei uma passagem contada em uma de suas cartas endereçadas a mim. Passagem esta que foi o motivo para o exílio voluntário.

"Certa vez, numa dessas tardes lânguidas de verão, umas galinhas d'angola rebocavam-se no chiqueiro dos porcos com seus 'tô fraco, tô fracos' até não poderem mais. E o que parecia ser algo inocente transformou toda a minha tarde, digo, as minhas tardes, bem como as manhãs e as noites também, em um verdadeiro inferno. Como eu estava longe demais das capitais, tudo era tranqüilo e calmo, salvo quando um ganso, pato, peru ou galo resolviam atacar uma de suas fêmeas, daí o barulho dos pegas, dos gritos e mais dos efeitos visuais de penas voando, quebravam tal tranqüilidade e calmaria, e aí nos brindavam com a uma certa animação temporária... Mas... Ah! Sim; quase tinha esquecido o real motivo desta carta. Então, com toda esta monotonia usual das tardes, e ainda observando as galinhas comendo porcarias e ciscando, ciscando e comendo porcarias, e ainda ouvindo seus fabulosos 'tô fraco, tô fracos' para incrementar, acabei cochilando.

Algum tempo depois acordei, e nisso percebi que uma das galinhas havia sumido, e justamente a preferida do meu pai. Tive que procurar o bicho por que senão meu couro secaria na porteira do sítio para depois virar tapete e ser vendido a alguém. Contudo, veja o que me aconteceu. Saí à procura da penosa, claro. E por todos os lugares que passava via as pegadas da ave. Isto fez com que eu caminhasse muito. Consecutivamente passei por muitos lugarejos, e quando perguntava aos moradores se haviam visto a dita da galinha eles imediatamente apontavam para uma direção. Sendo assim, lá ia eu com minhas galochas amarelas e tudo mais. Sei dizer que caminhei muito mesmo, tanto que nem sei por onde. Até que anoiteceu, quero dizer, fazia tempo que tinha anoitecido, e eu não sabia voltar para casa. Logicamente que tive de encontrar um canto para me aninhar e passar a noite, para depois então descobrir onde a galinha e eu fomos parar.

Quando o dia amanheceu percebi coisas muito diferentes daquelas que sou acostumada a ver. Pessoas com cara de índio... Se é que podemos chamar índio de índio. Mas enfim, falavam num idioma tão estranho que não conseguia identificar o que falavam. Engraçado, pensei naquele instante, isto nunca tinha sido problema para mim, pois sempre entendi o que aquela caipirada da região de casa fala, ou melhor, resmunga. Foi aí que pensei, um pouco mais, que eles, ou melhor, que eu não estava nem próximo da região onde moro. Mas também não me apavorei tanto quanto pensei que fosse acontecer. Já estava tudo perdido mesmo. Então, sem muito que fazer ou que pensar, tratei de me arranjar por onde estava mesmo.

E sabe que as coisas até que melhoram para mim... O que aconteceu com a galinha? Oras, uma hora teria de comer algo, e como já havia encontrado a maldita ciscando umas minhocas perto de onde eu estava não tive dúvidas. Comi-a, sem dó. E para ser sincera, não fiquei com remorsos por ela ter sido a favorita de meu pai. E também, o tempo passou e tudo ficou bem... Para mim, claro, pois com meu pai nem tive notícias ainda. Garanto que minha mãe, tonta do jeito que é, nem notou minha falta ainda, e olha que já se passou uns três meses da época que me perdi. Hoje em dia estou casada, ou arranjada, sei lá, com um desses sujeitos que vive por estas regiões. E se me perguntar se já entendo o que falam eu respondo, ainda não. Mas também quem se importa com isso? Mas é isto, já cansei de escrever. Mesmo por que meu amásio é louco de tarado, fornicamos praticamente o dia inteiro. E se continuar escrevendo daqui a pouco vai sair tudo borrado, pois ele já está se recuperando de mais um seção animalesca de sexo.

Ah! Baltazar, antes que esqueça, peço-vos para que entre em contato com meus pais e meu irmão, talvez estejam preocupados comigo. Por que não escrevo para eles em vez de escrever para você? Porque simplesmente não sei o endereço de casa, aliás, não existe endereço lá. Então, se me fizer este favor ficarei bastante agradecida com este gesto. Por ora é isto, preciso parar com a escrita agora, as grandes mãos do meu homem acabam de me agarrar por trás, e começo a sentir uma grande pressão em minhas costas. Então, até mais ver meu primo. Preciso encerrar agora antes que escreva bobagens demais.

De sua prima Goulda".

E com isso eu, todo enrolado em teias de aranha, babado pelas lesmas, mordido pelas baratas, atazanado pelas moscas e ignorado pelo bicho com chifres também encerro mais este capítulo. Até qualquer hora.


Biografia:
Sou jornalista de formatura, fotógrafo na prática e escrevo sempre que me é possível, pois vejo nesta atividade uma válvula de escape do cotidiano.
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