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As horas
Mario Bourges

Estava lá, sentado em frente à máquina de escrever, Alceu, na tentativa de se envolver melhor na história que estava criando. Mas por não ter prática com a máquina sentiu dificuldades até para dar início ao texto. Buscou auxílio nas cartas que recebera de sua amiga que mora em outro país, aos livros, e até em filmes, mas tudo isso foi em vão. Ele tinha uma história na cabeça, mas não sabia como expressá-la no papel. Muito bem, pensou; tenho que fazer, não importa como. Então, munido de um copo e uma garrafa de gim conseguiu dar seus primeiros toques no teclado. Começava a surtir o efeito desejado. Não o da embriaguez, mas o de liberar a trava da mente e das mãos.

Quando começou a transpor o que queria para o papel já era muito tarde da noite. Aliás, já era cedo, pois havia passado algum tempo da meia-noite. Mas à medida que Alceu adentrava na madrugada melhor ficava sua datilografia. A sincronia entre as batidas no teclado e o movimento do pêndulo do relógio da parede era tanta que até parecia, para quem estivesse fora dessa interação, o som dobrado de um objeto só. Aquilo soava como se fosse música para os ouvidos entorpecidos do jovem aprendiz de escritor.

A história ia correndo no papel enquanto o tempo ia passando sem medição. Em um dado momento Alceu resolve citar um horário em seu conto: “Bartolomeu, parado diante de um antigo relógio na praça, observa admirado, o teatro de bizarras criaturas, todas incumbidas em fazer tocar as doze batidas da noite”. Assim que terminou este trecho do texto escuta seu relógio de parede tocar, também, doze vezes. O que era muito estranho, pois para a percepção dele já havia passado dessa hora fazia bastante tempo. Mas não se deteve neste detalhe, continuou a escrever freneticamente.

Durante as batidas, cada vez mais encorpadas e insuportáveis que a máquina produzia, ouviu então, de maneira quase imperceptível, por causa do som que retumbava pelos cômodos da casa, um lânguido gemido, mas isso parecia fazer parte do sono que invadia sua mente, e que, por certo, queria lhe pregar peças. Ignorou-o, simplesmente, como se nada fosse. O jovem resolveu deixar seu lugar por alguns instantes, se esticar com um breve alongamento. Provavelmente isso lhe faria bem, pensou. Aproveitando a situação, resolveu pegar o copo para se servir de mais uma dose de gim. Aquela ação certamente o deixaria relaxado. Sendo assim, ligou o rádio da cozinha para ouvir música. Um pouco de distração não faria mal naquela hora tão avançada.

De repente olhou, sem estar com essa intenção, os ponteiros do relógio de parede correrem inexplicavelmente para se unirem no número doze. Em seguida ouviu as doze badaladas. Um absurdo acontecera naquele momento para ele, e certamente para qualquer pessoa que estivesse ali nesse instante. Largou o copo de gim em cima da mesa e esfregou vigorosamente os olhos com ambas as mãos. Nítido sinal de quem não conseguia acreditar naquilo que via. Pensou em jogar o copo no chão para quebrar. Talvez aquela ação pudesse acordá-lo do transe. Porém, abandonou a idéia, certamente tal atitude não iria resolver a alucinação que estava acontecendo com o seu tempo. Veio o pensamento de que isso poderia ser um Deja Vu, mas logo descartou este pensamento porque no relógio até poderia ser isso mesmo, mas com ele não, pois nas duas ou três vezes que as doze badaladas aconteceram sua posição no espaço era diferente.

Pensou que seria melhor dormir um pouco, provavelmente isso poderia ser muito bem efeito de seu dia cansativo. Decidiu em dormir mesmo, acreditou na hipótese de que tudo voltaria ao seu normal no dia seguinte. Com este pensamento preparou a cama para dormir, trocou de roupa e escovou os dentes, tudo para poder ter uma boa noite de sono. E quando estava quase adormecendo ouviu o relógio tocar, por mais uma vez, as doze badaladas. Levantou de súbito da cama, assustado, sem saber o que acontecia consigo. Imediatamente desistiu de ficar deitado. Aquilo parecia tudo irreal, mas preferiu tentar saber o que acontecia, pois seu corpo começava a sentir a falta do descanso.

Diante do relógio Alceu começou a fazer cálculos para saber quantas vezes o mesmo horário vem se repetindo. Desde a primeira vez que tocou a meia-noite até àquela hora somariam quatro vezes, dando um total de sete horas corridas. Sentou-se diante da janela da cozinha esperando o dia clarear, e aí então, levar o dito relógio para o concerto. Qual nada, o tempo parecia atrelado às horas daquele relógio defeituoso. Nunca amanhecia. E pela quinta vez ressoou nos cômodos da casa o som das doze batidas. Em sã consciência esse tipo de coisa seria impossível, mas louco também não estava para imaginar tal coisa, pensou. Como poderia estar isso acontecendo? Continuou pensando. Resolveu então fazer um café bem forte para combater a ansiedade que começara a surgir. Segundo seus intermináveis pensamentos, possivelmente isso faria a situação melhorar.

Acreditando na hipótese de que a culpada de todo esse tormento era a máquina de escrever quis quebrá-la de imediato, mas preferiu desistir de seu impulso irracional para ver se encontrava uma explicação lógica para tudo isso. De posse de um grande caneco de café pôs para tocar um disco de seu músico e compositor preferido, o lendário violinista Nicolò Paganini. Talvez não tenha sido a melhor das escolhas para a ocasião, pois na sua época Paganini era considerado endiabrado, e que tinha feito um pacto com o demônio para poder tocar como tocava. Mas com essas informações borbulhando em sua cabeça, começou a despertar dentro de sua mente uma estranha linha de raciocínio.

Sentou-se novamente diante da máquina e recomeçou a escrever, e da mesma maneira alucinada de antes. Porém, não se deteve aos personagens ou aos lugares. Literalmente deu ênfase às horas. Pôs-se a descrever sobre o tempo que ia passando em seu texto. E de maneira inacreditável, à medida que as horas passavam no papel a luz do dia começava a dar sinal de vida. Quanto ao relógio; assim que amanheceu e o comércio abriu suas portas, Alceu o levou para o relojoeiro a fim de consertá-lo, na esperança de que tudo voltasse ao seu normal. Depois de algumas horas o rapaz voltou para casa de posse de seu tormento. O relógio não possuía nada de errado em seu maquinário. Nenhuma de suas peças apresentava defeito.

Desolado, Alceu voltou para casa pensativo. Sem saber direito o que tinha acontecido na noite que se passou. Sendo assim, colocou o objeto de sua tormenta na parede, pois, se não tem defeito não há motivo para não deixá-lo em seu local de origem. Nisso, percebeu que o relógio não funcionava mais na parede, e depois constatou que nem fora dela também. O que acontecera então? Pensou. Resolveu pôr uma estranha teoria em prática. De posse da máquina de escrever começou a datilografar enquanto olhava para o mostrador do mecanismo de tempo pregado à parede. Ficou estarrecido diante dos acontecimentos. Os ponteiros se movimentavam conforme ele escrevia. E então pôde constatar que isso acontecia com seu relógio de pulso também. Isso queria dizer que ele detinha o poder do tempo. Foi aí que lembrou do gemido que ouvira logo no começo da madrugada. Talvez aquilo tenha mudado tudo naquela hora, pensou. Mas a essa altura dos fatos nada poderia alterar seu destino.

Daí por diante tudo em sua vida se transformou. Inconscientemente buscou a clausura a fim de sempre atualizar as horas para que todos vivessem normalmente. Ele se considerou como sendo o senhor do tempo. Se quisesse poderia parar o tempo, ou mesmo adiantá-lo, se assim o desejasse. Porém, a solidão, gerada por tudo isso, era algo que o maltratava impiedosamente. E com o passar dos meses enlouqueceu. Mesmo assim não parava de escrever seus textos com as devidas atualizações das horas. Mesmo louco sabia da importância de sua atividade. Mas seus familiares não, e também nem faziam questão de saber dessa importância na vida das pessoas. Aliás, ninguém no mundo sabia disso. Sendo assim, foi internado num manicômio qualquer. Porém, a máquina de escrever foi junto, ou melhor, as máquinas, pois durante os meses o jovem escritor e senhor das horas foi adquirindo mais máquinas para poder ter, uma em cada cômodo da casa. Afinal de contas, as pessoas dependiam de seus dedos alucinados sobre as teclas para poderem ter o tempo funcionando como sempre tiveram.


Biografia:
Sou jornalista de formatura, fotógrafo na prática e escrevo sempre que me é possível, pois vejo nesta atividade uma válvula de escape do cotidiano.
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