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O Bem-te-vi
J. Miguel

O Bem-te-vi

Num meio-dia praieiro, em que aspiro, alegre e faceiro
Tons e sons geniais, aromas que inda acalento daqui
Quase mal desperto, trôpego dum sono que perdi
Me alimento de um cantar, cantar que nunca ouvi
Um espia! – eu me disse – a me espreitar dos oitis.

Não me falha a memória – com tanto tempo é glória
Era um quente janeiro, férias, praia, licor e caxixis
Um hotel na beira-mar, mar apinhado de guris
Como eu queria a tarde morna, a ouvir juritis
Rabiscando o nome dela, tão bela a belatriz.

Como extasiado e louco, entendendo pouco a pouco
Seu chamado renitente, como coisa de imbecis
Mas a mim mesmo enganando, é alguém me chamando
Me chamando lá da árvore, lá por entre os oitis
Estou convencido que ouvi!

“Senhor”, eu disse “ou senhora, decerto que me ouvis
Nada tenho de valor, exceto, verdade, meu nariz
Acordei com uma puta ressaca, ressaca de pequi
E estragas meus prazeres, com vosso bariri
Chispa! Zunam! Mandem-se! Caiam fora daqui”.

Nem uma só resposta, que fizesse sentido ali
E escancaro a janela, farejando o abaçaí
É um espia, tão-somente, um espia bem ali
Eis que invade meu espaço, aparentando cansaço
Um imenso bem-te-vi.

E pousa sobre a garrafa, cuja metade já bebi
Saltita pela mesa, como se fôra um saci
“Tens aspecto rombudo e darias um prato bojudo
guisado, assado, acompanhado de caquis
Degustado com prazer, e uma taça de anis”.

“Ó bela plumagem, ave gordinha de gorjeares mis
Me diga já teu nome, ou quem te manda aqui”
Disse a ave claramente, como quem contente diz
A quem por pouco passa dessa, muito pouco, por um triz
“Bem-te-vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!”

Assim, como se sempre espiado, me senti
E a ave benfazeja, que com tal certeza nunca vi
Como se sempre me houvera espreitado, diz
“Não és pobre coitado, pois eu bem-te-vi”
Assim tudo na lata, retrata desde que nasci
“De bico aberto, entendo tudo”, garanti
“Mas assim, bico fechado, parece que só ouvi
Teu dizer de tantas falas, foi apenas Bem-te-vi”.

“O que dizes de minha escola, onde nunca joguei bola
Atentando para as notas, da bela tia Ceci?
Acha que eu olhava as pernas, tão bonitas, nunca vi?
Seria mentira, pássaro danado, que até me instruí?”
Ao que me respondeu sorridente: “Bem-te-vi!”

“Na escola secundária, excelsa, notável e centenária
Onde a gente briga para entrar, me formei e prossegui
Com as melhores notas, e bem penso, consegui
A despeito dos percalços, é mentira, ave? Menti?”
Como a sorrir de meus devaneios, responde: “Bem-te-vi!”

“E a bela colega de sala, por quem tantas noites carpi?
Não maltratou meu coração, que em pedras esculpi?
Por que diabos agora me olhas e parece que sorri?
Estou mentindo ave agourenta, não achas que sofri?”
Sua única resposta foi: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!”

“E depois de formado, novamente apaixonado
Não casei, tive filhos, por quem chorei e caí?
Por que saltita, ave do inferno, assim feito um sagüi?
Por acaso sou gabola, acha que algo omiti?”
Ao que me enerva a cantilena: “Bem-te-vi!”

“E agora, depois de tanto passado, que tanto senti
Não estou dormindo acordado, caminhando feito zumbi?
Ando sempre alcoolizado, dum torpor que redimi
Bem lá do meu passado, um passado que esqueci?”
“Ô, coitado! Bem-te-vi!”

“Maldita ave agourenta! Por que não és um colibri?
Voejando lépido e quieto, sem importunar este daqui?
Ou até mesmo ter nascido, com a carapaça dum siri
Mas tinhas de ser canoro e perturbar com esse teu coro
De renitente bem-te-vi”? - Bem-te-vi!

“Chega!” Bradei. “Desisto! Sairei já daqui
Fique aí, ave agourenta, que minhas medidas enchi.”
E assim, batendo a porta, pisadas fortes, saí.
Para nunca mais voltar àquele calogi defronte aos oitis
Onde dizem, fez-se fumaça e, encimando a cachaça
Também sumiu, com seu último aviso: “Bem-te-vi”!

J. Miguel (23/jan/2008)


J. Miguel (23/jan/2008)


Biografia:
"Fazer chorar é fácil; desafio mesmo é fazer rir."
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