1. Nova Iorque.
1949 foi incrível, especialmente por um período de três meses, perto do final do ano, quando aquela rapaziada se reuniu para esquentar as noites do Geraldine´s. O contrato inicial era de apenas duas semanas, mas alguns dias foram suficientes para que a fama do show começasse a se espalhar. Era um jazz novo, comovente, como nunca havia sido tocado. A espelunca do Geraldine´s recebeu um público com o qual o proprietário jamais sonhara; sim, porque até o final da temporada prorrogada, qualquer um na cidade, com uma mínima paixão pelo jazz, passara por lá.
Lester Young, Ismael B.B., R. Baxter, Sammy Farnel, Jeremy J. Strong; a rapaziada toda poderia ter deixado seus nomes na galeria da fama do jazz, ainda que só o sax do sr. Young tenha feito uma carreira de longa duração. Os outros se perderam na poeira da música. Por muito pouco. Estavam quase lá, eram a formação genial. Gente das gravadoras foi ao Geraldine´s! Mas aquele momento ocorreu com atraso; os músicos não agüentavam o cansaço acumulado ao longo dos últimos anos. Cada qual havia tocado com outros caras, em Nova Iorque ou em cada buraco de costa a costa. Estavam no limite da resistência depois de dezenas de hotéis baratos, no fio da navalha da miséria. Tudo só era superado com o alívio da música, na hora do esquecimento, na hora da música. Por ela, todo sacrifício valia. Melhor exemplo disso foi a famosa noite em que B.B., o "Brazilian boy", tocou com um enorme curativo na face. Bebera muito na véspera e caíra; um estilhaço da garrafa talhou o rosto banhado de uísque. Pensaram que não conseguiria tomar parte no show. Insistiu e tocou como nunca, visceral, como se o corte houvesse apurado seus instintos. Sustentou quase todos os improvisos da noite com seu trompete. Deixou Baxter e J. Strong para trás e mesmo o maior aficionado teria custado a acreditar na possibilidade do som que ele conseguiu produzir.
2. São Paulo, muitos anos depois.
R. Camargo chegou à fábrica lá pelas nove e quarenta; um atraso tolerável, segundo julgou. Avançou pela portaria e pelas escadas, rápido, para evitar o hálito quente da produção. Na ante-sala, cumprimentou rapidamente a secretária e mal reparou no funcionário que o aguardava. Sob o abrigo e o isolamento do vidro duplo de sua sala, pôde supervisionar o andamento da produção: a entrada de tomates, o setor de processamento e, mais à esquerda, o envasamento. Na verdade, sua mente ainda estava na Jam Session da noite anterior. A banda melhorava aos poucos, faltava bom terreno, mas cada vez mais tinha certeza de sua paixão pelo som mágico do trompete. Estavam perto de conseguir algo...
O interfone tocou: a secretária. Seu Santos o aguardava há meia hora, insistia em vê-lo. O velho gerente de produção entrou como se estivesse pela primeira vez na presidência.
– Pois não, seu Santos – disse R. Camargo, no intuito de pôr fim ao constrangimento que pairava no ar.
– Bem, sr. Camargo... a Marisa, minha filha, está se casando no domingo próximo e vim lhe trazer o convite. O senhor sabe que todos lá em casa sempre gostaram do seu pai. Ele foi o padrinho de nascimento da Marisa e, por isso, sua presença seria muito importante. Vamos ter uma pequena festa.
Por um instante pensou que a visão daquele rosto marcado nada tinha de agradável. Iria, iria "com certeza". Não lhe restava outra resposta, Santos era um dos funcionários mais antigos da fábrica e o pai realmente o tivera em ótima conta.
* * *
Estava atrasado e tencionava permanecer o menos possível no casamento. Seu desejo era voltar ao ensaio. Nada contra o Santos, a não ser o fato do coitado lhe lembrar a fábrica, os tomates e o maldito cheiro da polpa processada.
Bom deixar claro: R. Camargo era grato ao pai pela existência da fábrica. Devia tudo a ela, mas, inegável, não era o que queria para si. Queria música, jazz. O pai, se estivesse vivo, talvez o compreendesse, afinal, dele também herdara a paixão pela música.
Ao chegar à festa, deixou o enorme embrulho na mesa dos presentes e foi merecedor de toda a atenção de Santos. O velho gerente – o mais satisfeito dos homens –, fez questão de apresentar Ricardo Camargo à esposa, aos noivos e a todos que cruzaram seu caminho. Não fosse essa inesperada acolhida, não teria permanecido quase três horas na casa. Mesmo entre vários de seus funcionários, no calor da festa, conseguiu se esquecer do dilema da fábrica. No fundo, ficou a impressão de que Santos era uma pessoa melhor do que fazia crer uma primeira impressão, o que talvez justificasse a ligação de proximidade com seu pai.
– Fique um pouco mais, dr. Camargo.
– A festa está ótima, seu Santos. Mas tenho que ir. Deixe minhas recomendações à sua senhora e os melhores votos aos noivos.
O carro de R. Camargo já seguia por uma grande avenida quando a noiva chamou o pai para perto de si. Veio, então, o apelo para que tocasse, e, como ele fez menção de resistir, ela puxou um coro entusiasmado entre os convidados, a ponto de convencê-lo. A esposa buscou o trompete com as legendárias iniciais B e B.
O velho Ismael Santos não pensou em Baxter ou em Lester Young, ao abrir um largo sorriso. Nova Iorque era uma lembrança embrulhada no tempo. Ele apenas achou bom estar em sua casa, cercado de amigos, casando sua primeira filha. Diante de sua melhor platéia, queria tocar; não mais o esquecimento na música. Marisa jogou o buquê no exato instante em que o pai iniciava outro de seus memoráveis solos.
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