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10 de maio de 1941
Fernanda Rodrigues

Na noite de 10 de maio de 1941, enquanto a morte se aproximava, Londres descansava sob um céu estrelado e iluminada pela lua cheia. Uma noite perfeita para casais enamorados passearem de mãos dadas pelo Tâmisa, mas nem mesmo a beleza daquela noite era capaz de libertar nossos corações da melancolia que nos dominava, afinal, apesar da Inglaterra ter se mantido em pé naqueles quase dois anos em que a guerra se arrastava a verdade é que, desde a queda da França, sua principal aliada, e seu atual colaboracionismo, nós estávamos sozinhos naquela luta e agora o exercito inglês era forçado a recuar na África enquanto outras partes da Europa Ocidental se dobravam sob o jugo nazista.

A Alemanha parecia realmente invencível.
Nós nos esforçávamos para manter o moral elevado, repetíamos o discurso de Churchill prometendo lutar nas praias, nos campos e nas cidades e oferecer nosso sangue, suor e lágrimas para garantir a sobrevivência de nossa pátria e de todo o mundo livre, contudo sabíamos que sem a Rússia e os Estados Unidos ao nosso lado não tínhamos muitas chances de conter o avanço nazista. Apesar disso, estávamos todos decididos a morrer lutando.
Entardecia quando as sirenes tocaram anunciando a aproximação do temido ataque aéreo alemão e, apesar de terem tocado daquele jeito todas as noites nos últimos meses, posso dizer que era impossível se acostumar àquilo.

Senti os primeiros sinais do pânico me dominando, peguei minha pequena sacola de pano e corri para o abrigo antibombas mais próximo.
O lugar já estava cheio quando cheguei, passei por cima de algumas pernas e consegui me acomodar em um canto. Enrolei-me no meu cobertor e me acomodei Será que eu veria o sol novamente? Estávamos todos em silêncio. Os olhos perdidos no vazio, o medo era palpável.

Não demorou para que o maldito uivo surdo dos Stukas nazistas chegasse até ali seguido pelas explosões que faziam o teto sobre nossas cabeças tremer derrubando uma chuva de pós sobre nós. Um som que parecia vindo do inferno e que anunciava morte e destruição.

Havia algumas crianças ali e, a cada explosão, aqueles olhos pequeninos e inocentes se arregalavam e se enchiam de lágrimas. O medo sincero naqueles olhos deixava claro o quão absurda era aquela guerra. Mas eles não queriam parecer fracos, seguravam o choro e apertavam as mãos para que nós não percebêssemos que tremiam. Eram tão pequenos e já enfrentavam toda aquela destruição. Aqueles que sobrevivessem à guerra, se é que algum de nós sobreviveria, jamais poderiam ser considerados fracos.

As horas no abrigo se arrastavam lentamente e era impossível dormir, ler ou fazer qualquer outra coisa normal naquela situação desconfortável e tensa. A maioria das pessoas apenas conseguia ficar ali sentada, o olhar perdido e a certeza de que a morte estava próxima.

A chuva de bombas estava mais intensa naquela noite ou seria impressão?
Notei aquele homem velho de cabelos totalmente brancos em pé somente quando ouvi os primeiros sons das cordas do violino. Percebi certa agitação nas pessoas, os olhares atentos. Seria tão bom ter algo que nos distraísse, assim, se a morte chegasse naquela noite, poderíamos partir sem desespero.

O som perfeito das cordas foi tomando conta daquele lugar abafado e empoeirado que cheirava a suor e terror e imediatamente a tensão que dominava a todos foi cedendo espaço a uma sensação de calma. As crianças menores pegaram no sono e as maiores se mantiveram hipnotizadas.

Uma explosão muito próxima nos fez tremer e acordou algumas das crianças menores que começaram a chorar, o velho homem, então, tocou com mais entusiasmo. Ama mulher em algum canto começou a cantar, a voz trêmula, mas intensa. Logo outras vozes se uniram ao violino em um coro que cantava sobre uma graça maravilhosa.
Durante toda aquela noite cantamos canções e hinos de nossa infância, aquelas músicas que tinham o poder de nos acalmar e de nos fazer acreditar que ainda havia esperança e aquilo quase nos fez esquecer o horror que acontecia sobre nossas cabeças.

O amanhecer nos surpreendeu ainda vivos. O violinista exausto sentou-se abandonando os braços cansados. Tínhamos sobrevivido a mais uma noite. A música tinha nos ajudado a resistir àquele que foi o maior bombardeio que Londres sofrera durante toda a blitz.
Naquela noite, cerca de 400 aviões nazistas haviam sobrevoado a cidade e quando saímos para a rua encontramos um cenário de devastação e chamas. Nas docas, o fogo destruíra tudo em seu caminho. Pelas rus, as belas construções vitorianas estavam no chão sepultando centenas de corpos que nunca mais veriam a luz do dia. Uma cidade transformada em ruínas revelando cruamente toda a estupidez da humanidade.

Caminhei por aquelas ruas devastadas e cheguei ao meu prédio que, para meu completo espanto, continuava em pé. Não tive vontade de entrar. Não me pareceu justo ter uma casa quando tantos londrinos não tinham mais um teto.
Continuei caminhando até avistar a alguns metros a frente, uma senhora de certa idade curvada tentando com grande dificuldade tirar o entulho que a impedia de entrar naquilo que restara de sua casa. Comecei a ajudá-la em silêncio. Ela me olhou e seus olhos me agradeceram sem a necessidade de dizer qualquer palavra.

Outras pessoas apareceram e se juntaram a nós e quando terminamos ali, continuamos limpando e retirando escombros e entulho de todo o caminho. Éramos cúmplices na arte de enganar a morte e isso nos unia.

O dia passou. Alguém trouxe chá. Bebemos juntos. Mais tarde, um pedaço de pão foi repartido. À noite, uma sopa rala foi servida.

O sol já estava alto no céu e não parávamos de trabalhar. Por todo o lado, pessoas de todas as idades e classes sociais trabalhavam unidas por um silêncio respeitoso que só era quebrado pelo som das ambulâncias e dos caminhões do corpo de bombeiros que passavam rapidamente por nós, resgatando sobreviventes e combatendo os focos de incêndio e, ainda que soubéssemos que a noite a destruição voltaria, não abandonaríamos nossa tarefa. Aquela era nossa cidade, nossa casa.

O anoitecer nos surpreendeu acompanhado das sirenes nos lembrando que a chuva de morte viria novamente sobre Londres, mas, por algum motivo, nos sentíamos mais fortes agora.
Londres tinha sofrido o maior ataque aéreo da história, tinha enfrentado a poderosa Luftwaffe e tinha sobrevivido.

Nenhum de nós desistiria e enquanto existisse um inglês em pé haveria esperança, pois como dizia a velha canção “Haverá sempre uma Inglaterra”.


Biografia:
Apaixonada por livros e agora me aventurando nos caminhos da escrita!
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