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São os Loucos Anos 20 - Parte III
Capítulo 3
Fernanda Rodrigues

“Uma noite extraordinária, sem dúvidas!” – concordou o pai da noiva enquanto apertava com seu vigor habitual a mão de um dos muitos convidados que enchiam a mansão, cada um deles escolhido a dedo entre a mais nobre elite do país, alguns vindo de longe para prestigiar o noivado dos filhos de duas das famílias mais ricas e poderosas, naquela que prometia ser uma noite inesquecível.

A mansão estava totalmente iluminada. Os talheres de prata, as taças de cristal e o jogo de louça com as iniciais das familias que se uniam gravadas em letras douradas e encomendado especialmente para a ocasião estavam postos à mesa. Tapeçarias finas cobriam o chão de mármore, champangne borbulhava nas taças das senhoras e uísque dançava entre as pedras de gelo nos copos dos senhores. Caviar, lagosta, camarões, bombons finos e tortas de frutas feitas pela melhor boulangerie da cidade eram servidos à vontade. Até os criados vestiam uniformes novos, impecavelmente brancos e desenhados especialmente para aquela ocasião.

Nina havia planejado cuidadosamente cada detalhe daquela noite, inclusive o noivo. Uma escolha pensada e devidamente calculada dentre tantos pretendentes que lhe faziam a corte, e que atendia perfeitamente aos planos que tinha traçado para si mesma. Inácio Giafrani era neto de fazendeiros e filho de um importante político, mas, apesar de ter crescido em meio à riqueza e à elite nacional, não era como os outros de sua espécie. Leitor voraz, era um intelectual apesar de contar apenas 25 anos. Tinha estudado direito na melhor unversidade do país, era fluente em tantas línguas quanto a noiva e, apesar disso tudo, tinha bom humor.

Nina sabia que ela também tinha sido para ele uma escolha pensada. Com seus planos de graduar-se mestre na Universidade de Coimbra, queria uma esposa capaz de acompanhá-lo com desenvoltura no meio acadêmico e, dentre a fina-flor da sociedade, ninguém poderia desempenhar o papel com mais maestria do que ela.

Seria um casamento sem a paixão arrebatadora dos amantes e por isso mesmo tinha tudo para dar certo. As famílias ficaram em êxtase quando os jovens anunciaram o noivado. Nada poderia agradar mais ao pai da noiva e nada poderia ser mais interessante para o pai do noivo.

O jantar foi servido no jardim. Os convidados puderam dançar a noite toda ao som da melhor banda de jazz do país. No enorme hall de entrada uma fortuna em presentes se acumulava. Dezenas de caixas elegantes contendo cristais, louças, tapetes, garrafas de vinhos caros e até iguarias raras, uma grande mostra de tudo que era belo e de bom gosto e que demonstrava que os ricos convidados não haviam medido esforços para agradar aos noivos e, mais ainda, aos pais dos noivos.

A festa de noivado teve a elegância suave que caracterizava Nina e Inácio. Ela em um lindo vestido Chanel de seda azul clara, trazido de Paris para a ocasião e ajustado diretamente em seu corpo, combinando perfeitamente com o conjunto de colar e brincos de pérolas que fôra um presente da mãe, um ícone da moda naquele momento. Seus cabelos haviam sido escovados até reluzir, seus olhos brilhavam de orgulho e seu sorriso de dentes perfeitamente brancos expressava toda a sua felicidade. Ele em um magnifico terno italiano de três peças e corte perfeito. Sobre a camisa azul a gravata em azul mais escuro, tom sobre tom. Os cabelos negros e cacheados penteados para trás, seus olhos vivos, negros e inteligentes.

Na hora de receber a aliança, até mesmo Nina ficou surpresa com o Cartier de ouro branco com um enorme diamante incrustado. Magnífico.

A noite havia sido perfeita e as colunas sociais comentariam o acontecimento por vários dias. Outras noivas copiariam sua festa, seu vestido, sua maquiagem, mas poucas poderiam ter um anel como o que ela agora trazia no dedo anular.

Os últimos convidados deixaram a mansão ao raiar do dia. Nina se despediu do noivo com um beijo casto. Estava exausta pelas emoções do noite e por todo trabalho que tinha tido para que a festa fosse perfeita. Despiu-se com calma. O vestido deslizou por seu corpo languido e pousou aos seus pés então vestindo apenas sua própria pele ela deitou-se entre os lençois de seda procurando por um sono que veio rápido.

Foi despertada pelas primeiras luzes do dia entravam pelas frestas da janela e iluminavam a casa que ainda respirava à festa. Sem planos para aquele dia e sabendo que o sono já havia a deixado, decidiu levantar-se. Fez a toillet e vestiu-se com simplicidade. Desceu pela enorme escadaria de degraus brancos e chegou ao salão principal onde um exército de criados tratavam de limpar tudo. Mordiscou uma torta de morango que repousava sobre a mesa com a tranquilidade serena daqueles que tem o mundo nas mãos e seguiu para a biblioteca lambendo o creme doce e apreciando o aroma de baunilha nos dedos.

Ao chegar a biblioteca descobriu que naquela manhã seu refugio estava comprometido. As dezenas de caixas de presentes trazidas pelos convidados na noite anterior agora estavam armazenadas ali ocupando todo o espaço.

Com grande dificuldade resgatou seu Ulisses e o levou ao jardim onde sentou-se e tentou iniciar a leitura, mas a presença daquele exército que se movia sem parar a deixou incomodada. Levantou-se e caminhou pela trilha de cascalho branco até o portão de ferro e ornamentado com as iniciais do pai. Observou a rua de paralelepipedos deserta e emoldurada pelos casarões onde grande parte da fortuna do país residia.

Sem pensar e sem saber ao certo para onde ia saiu para a calçada de pedras seguindo o caminho que há muito não percorria até que, algumas dezenas de metros depois, chegou àquele lugar ladeado por um pequeno muro de pedras encimado por altas grandes de ferro fundido e adornadas com arabescos infinitos, o Jardim Angela. Um parque público destinado à recreação dos filhos das famílias ricas do bairro, onde as crianças podiam brincar e correr sob o olhar de um exército de jovens babás vestidas de branco.

Sob o arco que marcava a entrada do jardim um homem baixo, de bigode e terno puído vendia balões coloridos e pipoca doce para as crianças que formavam fila. Ao passar por ele Nina inspirou fundo o cheiro do caramelo que dominava o ar e se lembrou de quando era criança e também brincava naquele lugar que lhe parecia encantado.

Logo na entrada, no centro da praça circular, havia um magnifico chafariz formado por uma dezena de anjos que miravam o céu com seus olhos piedosos enquanto que da sua base tocada de leve pelos pés descalços daquelas criaturas aladas nasciam jatos de água que formavam círculos no ar e que ao cair faziam surgir centenas de pequenos arco-íris enquanto crianças vestidas com esmero corriam a sua volta.

Nina pensou em se sentar em um dos poucos bancos vazios que circulavam a praça formando uma barreira que represava o mar de árvores que dominava o espaço logo atrás, mas percebeu que naquela manhã de domingo desejava ficar em silêncio. Escolheu ao acaso um dos muitos passeios que nasciam na praça e avançavam para o interior da floresta de bétulas centenárias e se perdiam em direção ao emaranhado de árvores e continuou caminhando enquanto a algazarra das crianças foi ficando para trás até se tornar um pequeno zumbido distante.

Apirou os aromas que inundavam o ar: umidade, musgo, flores, folhas. A pouca luz do sol que penetrava ali após vencer a barreira de folhas verdes que formavam a abóbada sobre aqueles corredores refletia-se na umidade das lajotas decrépitas sob seus pés fazendo o caminho à sua frente parecer forrado por pequenas pedras de brilhante.

Os vários bancos distribuídos pelo caminho foram rareando na medida em que ela se distanciava da entrada do parque e, apesar do ar de abandono que ia tomando conta do lugar, continuou caminhando em direção às entranhas daquele bosque feito de solidão enquanto ouvia o som suave da brisa que dançava entre a folhagem das árvores e plantas a sua volta e saboreava a tranquilidade que somente a solidão daqueles que aprenderam a ser bons companheiros de si mesmos proporciona.

Quando criança tinha perambulado centenas de vezes com os irmãos pelos recantos daquele lugar que às vezes parecia saído de um conto de fadas e que tinha sido o cenário perfeito para suas aventuras. Caminhou até chegar a um nicho que parecia não ter sido visitado por viva alma há muito tempo e que imitava a entrada circular do parque em versão reduzida.

De repente uma lembrança há muito perdida voltou à sua mente. Lembrou-se com perfeição do dia em que ela contava cerca de cinco anos, suas perninhas estavam cansadas de correr atrás dos irmãos envolta do grande chafariz uma infinidade de vezes sem nunca alcançá-los. Aborrecida, sentou-se sozinha no chão observando o desenho que os jatos de água nascidos aos pés daquelas belas criaturas formavam no ar, estava perdida em seus pensamentos quando ouviu um sussurro, como se o vento a estivesse chamando. Olhou para trás. Não havia ninguém ali mas novamente ouviu aquele som que parecia saído do bosque a chamando.

Levantou-se e caminhou até o limite entre a praça e o emaranhado de árvores que surgia ali e se multiplicava até o infinito. Um minuto de descuido da babá e ela adentrou por um daqueles caminhos, seguindo o sussurro que chamava seu nome. Andou por vários minutos sozinha mas sem sentir medo até que chegou a um daqueles nichos arredondados que se espalhavam pelo interior do bosque e onde sempre havia um pequeno chafariz e a estatua de um anjo solitário.

Sentou-se em frente àquela imagem tão perfeita que a observava profundamente e que a hipnotizou. Não sabe por quanto tempo permaneceu ali até ser despertada daquele transe pela babá desesperada seguida por dois guardas do parque que ao encontrá-la levantou-a no colo com lágrimas nos olhos. “Nina querida, porque você saiu de perto de mim sem me avisar? Nunca mais faça isso!”. A menina sorriu e apontou em direção às costas da babá. “Ele me chamou” - disse. A mulher assustada olhou para trás apertando a menina contra o peito, procurou em volta por alguém que estivesse ali, mas não havia ninguém além daquela figura alada. “Não há ninguém aqui Nina, vamos embora. Vamos para casa”.

A lembrança daquela pequena travessura e de sua imaginação fértil a fez sorrir e a fez decidir se sentar ali. Havia um único banco naquele local tranquilo que parecia esquecido até pelo pessoal responsável pela manutenção do parque. E apesar do abandono, a solidão que ali reinava absoluta tornava aquele recanto o local perfeito para a leitura. Assim, sem ser incomodada e imersa naquele silêncio onipresente Nina se entregou novamente às aventuras de Leopold Bloom.

Se perdeu na leitura sem ver o tempo pasar. Era assim sempre que se dedicava àquilo que mais amava na vida, ler. Era como se deixasse seu próprio corpo e viajasse para aquele mundo feito de letras, tinta e papel, onde permanecia até que os olhos se negassem a continuar lendo. Após ler dezenas de páginas ela pousou o livro no colo e fechou os olhos que ardiam para descansá-los enquanto se concentrava no som dos pequenos insetos que vagavam pelo bosque ao seu redor.

Naquele lugar onde o tempo não existia, ela inspirou e expirou com calma, sentndo o ar entrar e sair dos pulmões e ouvindo as batidas compassadas do seu coração. Sentia-se completamente relaxada e permaneceu assim por vários minutos, até que ouviu aquele sussurro outra vez. “Nina”. Abriu os olhos assustada, olhou em volta, mas não havia ninguém ali, ou ao menos ninguém que seus olhos pudessem ver. Estava completamente sozinha mas podia sentir em sua pele o olhar de alguém que a observasse sem ser visto.

Aquela sensação fez seu coração disparar. Sentiu a necessidade de sair dali o mais rápido possível. Levantou-se, contornou o pequeno chafariz que ocupava o centro do nicho e seguiu em direção ao caminho que tinha percorrido para chegar até ali e que a levaria de volta para a entrada do parque, onde encontraria a segurança da multidão.

Antes de seguir em frente e sem se livrar da certeza de que alguém a observava, olhou uma última vez para trás, como se para atender a um chamado silencioso e a única coisa que viu foi o anjo de pedra que, com seus olhos cinza, olhava diretamente para ela.


            (CONTINUA)


Biografia:
Apaixonada por livros e agora me aventurando nos caminhos da escrita!
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