O SOLDADO DA MARIA MOLE
Era feliz naquela tarde a brincar com eles. Como me alegrava e enchia o meu coração de intensa felicidade ficar horas admirando os soldados da Maria mole. A maioria era verde, alguns azuis. Lembro-me de uns que eram cor -de -abóbora. Ou talvez amarelos. Provavelmente estarei a confundir alguns com os índios, que eram coloridos. Uns vermelhos, outros verdes.
Vinham nos doces, alguns podem ter vindo em caixinhas da sorte, mas quase todos chegavam até mim em doce, principalmente na Maria mole da copa de um copo tipo casquinha de sorvete de massa.
Maria mole com miçangas coloridas e o soldado afundado, parte do corpo no doce, como se estivesse numa areia movediça de gostosuras num planeta só meu. O coração de intensa felicidade assim se sentiu algumas vezes, como a olhar o céu repleto de balões. O papel de seda no ar a as formas dos balões, o charuto, o pião de bico torto, o mexerica, o balão almofada, o mais popular de todos. O céu era o grande troféu da minha infância. Mas, lá estavam os soldados da Maria mole.
Valentes, destemidos, invencíveis, arriscando a vida em incríveis aventuras vividas na terra do quintal, que era o reino do menino. Naqueles dias as palavras como apartamento não faziam parte do meu vocabulário. Hoje sei que era um vocabulário encantado. Todas as palavras eram importantes e se algumas caíram em desuso no futuro é porque ele não respeitou o que era essencial.
O soldado da Maria mole e um outro manco, coxo, defeituoso, perneta. O mais importante de todos, o maravilhoso soldado de Andersen, o pai do soldadinho de chumbo, da pequena sereia, e tantos encantos, que bem mais tarde conheci, mas já perdoei faz tempo as professoras.
Nenhum líder político ou religioso me fez ter tanta esperança na humanidade quanto Hans Christian Andersen, que não foi líder de nada, ou melhor, apenas do coração da criança, qualquer uma, de qualquer parte do planeta. Ele e o mais importante soldado de todas épocas. Mas lá estava eu no quintal das aventuras com os meus soldados. Encantados olhos miravam a vitrine do balcão de doces, como se Clarice Lispector eu fosse assim uma ainda criança. Ah, os doces. Contemplação inesquecível!
Que presente recebi na escola de madeira naquela friorenta manhã ao entrar na sala e sentar no longo banco e olhar para ela pela primeira vez. A professora. Jamais esqueci o timbre da sua voz. No bolso dois ou três soldados esperando a hora do recreio, e ela falando coisas com a voz suave, mostrando-me com doçura que ali eu poderia ser feliz.
Os soldados com os seus uniformes, com suas armas, eram sempre heróis. Às vezes viviam momentos sufocantes inimagináveis, quando, por exemplo, no dia em que quase não consegui salvar um que caiu numa valeta.
Eu estava no peitoril da janela enfileirando os valentes combatentes para uma nova aventura quando um deles caiu e foi imediatamente levado pelas águas da valeta principal do quintal, como se estivesse a ser tragado por uma enorme enxurrada. O meu coração palpitou mais que o grito, e invadi a sala e num foguete estava na cozinha implorando para que minha mãe deixasse-me ir ao quintal buscar o soldado que caiu e estava sendo levado pelas águas. “Tem um guarda-chuva velho, perto do martelo e do serrote. Deixa Mãe, por favor!”, mas a mulher foi implacável. Para a educadora caseira o que era impensável era a minha saída na chuva.
Tive que esperar o temporal passar e corri desembestado como qualquer menino normal e me pus num quintal de terra molhada com cheiro de grama de chuva a procurar o soldado, que encontrei, pobrezinho, machucado, ferido, entre cacos de vidro e pedregulhos afundando num capim lavado pelas águas da tempestade.
Pena não ter guardado os soldados da Maria mole. Pena que não guardamos as coisas que são fundamentais em nossa tão efêmera vida. Que importa que a indústria de brinquedos de plástico continue a fabricar soldadinhos, nenhum será como aqueles que perdi num quintal que se foi. Um brinquedo jamais será igual ao outro. Apenas os livros de Andersen, com suas histórias, continuam iguais. Não mudam. Podem até modificar a capa, o papel, o formato, mas um livro dele será sempre igual pelo que pode trazer para o coração de uma criança. Não importa qual a idade dela, que pode ter quarenta, cinqüenta, sessenta anos.
Naquelas manhãs com os da Maria mole, não sabia que soldados matavam, que eram obrigados a matar. Nada sabia das guerras sangrentas do mundo, nada sabia de violência policial, da força bruta e insensata que atua nos gabinetes e manda os homens para as fronteiras ou invadir outras nações, e matar gente inocente, e explodir bombas, e destruir, e arrasar vilas e cidades.
A minha inocência era a do soldado de Andersen, era a do soldado da Maria mole.
MARCIANO VASQUES
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