O MENINO NO TREM
Trem que levava os sonhos sardentos de um menino.
Numa manhã tão fria e chuvosa estávamos no Brás, nos paralelepípedos, na porteira, na plataforma da Santos-Jundiaí. Corríamos no Largo da Concórdia, passávamos pelo gasômetro. Ao chegarmos não tinha como não parar diante da escadaria para apreciar a estação.
E o trem, o trem, o trem. Meu Deus! Eu era tão menino e lá vinha ele. Acenávamos num alvoroço que meu pai incentivava. Ele está vindo! Vem Maraci. Vem Cianinho! O trem está vindo...
E ele chegava, os vagões de madeira e a preta, linda demais, tanta fumaça. Que exagerada. Viva! Eu estremecia num grito abafado. Aquela mistura de fuligem no ar chuvoso produzia nódoas que só num coraçãozinho daquele podiam caber sem escapar nada. Nódoas lilases e amarelas e cinzas, nem lembro mais.
Ela chegou, os enormes pentes de ferro no trilho, as rodas imensas, aquele carvão todo. Segure a minha mão. Dizia o meu pai. Um de cada vez. E entrávamos. Minha mãe: o rosto claro, as poucas sardas, os olhos parecendo bolinhas de gude de tanto brilho. Um azul carioca que vinha de tão longe... Ela ficava vermelha como um camarão quando tomava vinho.
Nunca mais tive aquela manhã de chuva. Que contribuiu demasiado para que eu viesse a ser o homem que hoje sou. O jeito daquelas coisas tão diferentes de tantas que viriam depois. Eu, magrinho, minha irmã segurando em minha mão, e na outra a boneca que não largava.
Depois lá ia o trem, e eu vagava num sonho acordado que voava e uma borboleta entrou no vagão e trovejava. Eu não cabia mais em meus pensamentos e abusava de ser menino sem ter a consciência de que a poesia brotava nas coisas que passavam.
Lá ia o trem. A serra despontou azulada em meus olhos famintos que não desgrudavam da janelinha. Não mais chovia. As nuvens de fumaça carvoeira moviam-se no azul. Eu queria que demorasse a viagem, e quando tinha uma curva lá na frente eu via a locomotiva e ouvia meu pai do alto de seu bigode elogiando assombrado a Maria-Fumaça, que até parecia encantamento, mas ele era assim mesmo: falava demais de uma coisa que gostava.
O frio fora embora e o que prometia ser sol despontando nas frestas do dia já era mormaço nos trilhos. Os dormentes secavam. Eu teria febre assim de tanto que tremia meu corpo franzino.
Então a serra chegou, e o cabo de aço, e a troca das máquinas. Veio uma mais linda ainda, em forma de retângulo, amarela e vermelha. Só ela conseguia subir a serra. Então lá fomos nós. Viva! Viva! A serra, a serra, a serra... Os vagões puxados por uma máquina a óleo. Isso mesmo. Nada de carvão. Adeus Maria-fumaça! Você não conseguiu subir a serra. Não consegue. Não consegue. Não consegue. Tchau, tchau, tchau! Tchau, tchau, tchau! Tchau, tchau, tchau. Linda. Fica com Deus.
Figurinhas, pião, roda ocupando a rua larga enquanto girávamos nas cantigas. Mas naquela viagem tudo se dissolvia. Íamos pra Santos. Os senhores aqui presentes sabem o que é isso? Um menino e sua família descendo para Santos num trem daquele? O foguista, o maquinista...
Lá íamos. Os bancos de madeira, igual ao daquele bonde aberto nas ruas de Santos. Homens de chapéu e eu lá. Que presente a minha alma em formação ganhava! Se eu pudesse rever a claridade daquelas ruas!
Minha vida nem sei quando saiu dos trilhos.
Foi bem depois de um quintal onde eu brincava com tijolos transformados em vagões. Foi bem depois daquela viagem.
A banca de jornal repleta de gibis. E numa flecha ligeira meu coração partiu rumo ao futuro. Um guaraná caçula, um pacote de amendoim, quanta coisa tinha no Brás. Minha irmã de pele índia, minha mãe: meu pai vivia a repetir entre as doses de rabo-de-galo que ela era a patroa.
Naquela manhã o trem corria e a máquina cuspia laços de fumaça num céu esverdeado. E desceu a serra.
Então a cidade despontou lá embaixo. Lá está ela, venha mais pra janelinha, é Santos.
Uma nova troca de máquinas. Da máquina a óleo para a Maria-Fumaça novamente. É outra! É a mesma! É outra! É a mesma! É outra! É a mesma! Pare de ser bobo. Como acha que ela atravessou a serra e apareceu aqui? É claro que é outra! Parem de discutir crianças!
Passamos por Cubatão e chegamos em Santos. As ondas do mormaço soltando-se dos trilhos e a estação tão imensa que nem podia passar pela minha cabeça que um dia seria demolida.
Saiamos do trem. Estávamos na cidade santista. Lá vinha o tio Germano a gritar: Aqui! Aqui!
É aquele que está acenando com o chapéu.
Viva! Viva!
Segura na mão da Marinha. Eu obedecia imediatamente. Segurar na mão dela era algo que eu disputava com a minha irmã. Quando saíamos para buscar a macela ou dávamos a volta pelo quarteirão ela aproveitava para mostrar e ensinar. Isso é alecrim. Isso é erva-cidreira.
Saiamos da estação ferroviária e então ouvi um apito. Olhei para trás. Vamos, Ciano, vamos! Pare de olhar pra trás.
Vamos parar para ver o trem. Foi o tio Germano quem falou isso. Meu pai concordou. Devo tanto àqueles homens...
Aí paramos, a família inteira. Olhávamos de uma tal forma que eu podia sentir em cada um o meu coração no ritmo do trem.
E lá ia ela puxando os seus vagões rumo a São Paulo. A família só arredou pé depois que o trem desapareceu no horizonte.
MARCIANO VASQUES
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