JACY
Jacy era uma menina branca como a neve. Branca de lua, dizia o povo do morro Mumuru, onde ela corria com os meninos de pandorgas.
A pequena vendedora de vegetais e frutos em um quiosque na praia, com sua água de coco e sucos naturais, um largo sorriso e uma oferta de gentilezas, conquistava a todos e colecionava amizades como se fossem poemas.
Nos seus aniversários sempre tinha comemoração. Quando chegava o 20 de julho todos se dirigiam ao quiosque. Faziam uma roda de ciranda que Lia de Itamaracá adoraria, se pudesse ir.
Sempre era vista com uma lua de brinco. Com seu brinco de luar espalhava a brincadeira de ser poeta escrevendo poemas para o satélite. Sonhava em peregrinar, andar sem rumo, migrar, ser cigana nas estrelas.
Já tinha dezenas e dezenas de poesias. Todas nascidas de inspirações enluaradas. Guardava os poemas como se fossem relíquias, e afinal eram. Pelo menos para ela cada poesia valia como um tesouro.
Tesouro considerado por muitos como maluquice, principalmente quando falava que se todos lessem ou escrevessem poemas e os ofertassem para a Lua o mundo seria melhor e menos guerra haveria entre os homens. “Isso é doidice!”, diziam.
Além de sonhadora e poeta, argumentava que ao morrer queria ser transformada em flor, de preferência uma gigante.
Tinha uma irmã chamada Selene, cheia de luz e claridade nos longos e ondulados cabelos. Ela lia os poemas da jovem Jacy e os guardava, datando-os e os organizando em uma caixa de papelão. O primeiro foi escrito numa tarde de inverno de 1969. Desde aquele dia cadernos e cadernos que comprava com suas economias foram usados na construção do seu inventário poético.
Diariamente, naquele momento, quando o entardecer pede lua, a jovenzinha fechava o quiosque e se banhava no mar antes de retornar para casa. Adorava as espumas das águas de esmeralda. Após o banho no esmero da natureza, lá ia com poemas na cabeça.
A caixa de papelão forrada com papel azul estava com tantos poemas que quase não cabiam mais. “Brevemente não dará para fechar!”. Alertava a irmã.
Mas não tinha jeito, bastava anoitecer e ela se punha a rabiscar os poemas, até que pegasse no sono. E a pequena Selene sempre tão caprichosa acondicionava cada folha na caixa.
À noite, da sua janela Jacy contemplava o morro Mumuru. De vez em quando esquecia o sono e subia nele. Quando isso acontecia, seus cabelos ondulados tornavam-se prateados, assim dizia o povo de lá, rico de conversas e histórias sob a luz de lanternas de vaga-lume e de lua vagando ao lume das lisas folhas das plantas.
Numa noite de ventania saiu de casa levando os poemas em direção ao Mumuru. Passou pelos meninos que recolhiam suas pandorgas, saltou valetas e fiapos de riachos e lá, bem no alto do morro, abriu a caixa azul e espalhou seus escritos, lançando-os ao ar. Uma revoada de papel seguiu o bailado do vento. A coreografia dos versos lembrou algazarras de cigarras
Na manhã seguinte, quando a irmã descobriu a caixa vazia, ela comentou que fez isso para que pelo menos um poema chegasse até a Lua.
Durante o dia vendeu seus frutos e sorriu bastante, um sorriso tão precioso que espantou os amigos.
Ao entardecer não retornou para casa. Caminhou durante horas em direção a um lago. Realizou um sonho antigo. Ver o reflexo da Lua nas águas.
Nunca mais foi vista.
MARCIANO VASQUES
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Biografia: Marciano Vasques é escritor, natural de Santos, e autor de Literatura Infantil. Publicou diversos livros, entre os quais "Uma Dúzia e Meia de Bichinhos", "Griselma", "Arco-Íris no Brejo", "Espantalhos", "Rufina", "Uma Aventura na Casa Azul" e "As Duas Borboletas". É também autor teatral. |