SOBRE O POEMA DE AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
O caos se intensifica nos cacos. Estilhaços da alma espalhados no cotidiano, na vertigem das agruras da rotina, no contemporâneo do lançamento de fragmentos da vida.
Onde estará o caos? E por que evoca o poeta o precioso gesto de catar? Catar é juntar, é ultrapassar barreiras, incômodos, fortalezas, cactos. Verter cacto em flor. Basta o querer, é nele que reside a força. Assim fala o poema,
Os cacos como se fossem flores. A suavidade se impõe, as intempéries são vencidas. O poema não se esgota, mas se expressa no abismo das palavras que almejam juntar cacos.
Por que necessitamos da poesia? Por que o poeta evoca o seu manto? Sim, talvez por que justamente ela poderá propor algo tão intenso, como juntar os cacos do caos, numa aliteração de barco sereno em águas entardecidas, em sílabas grávidas de sentires.
Utopias invadem as almas em momentos aflitos, e catar os restos da utopia, -qual delas?, é dar voz ao coração regado pela liberdade, e a liberdade está nas palavras, filhas da época e do pensamento. Mas, não se cata os restos e os ossos como o lixeiro, salvo se ele, o catador de lixo, venha a se tornar um zelador das coisas que precisam ser veladas no mundo. Nem sequer utópicos garimpeiros a buscar palavras em versos esquecidos. E a fogueira, que nos trará Prometeu? Pleno de promessas renascidas nas cinzas.
O dia-cão não é exclusividade do mendigo, e catar as pulgas restaura o universo, no qual tudo se entrelaça feito um deus espinosista. A verdade na conçha da mão remete ao menino mais puro, aquele que corre em pandorgas, em azuis e em vaga-lumes, e vaga em vagões talvez, em trilhos e trilhas, sendo menino até não mais poder resistir. A concha é um símbolo, uma imagem de recolhimento, de aconchego. Entre conchas, entre riscos na areia, e rastros de mariscos, resiste a coreografia dos astros, com a mesma resistência das cantigas.
Costurar o avesso ou cerzir, eis o mistério das almas que buscam a harmonia em meio ao caos. Talvez o poeta nem saiba no que toca.
Arqueologia poética sempre terá a força de movimentar caos.
Dionísio e Baco, espalhados, talvez dilacerados em cacos, talvez clamando pelo vinho, o vinho da concórdia, da audácia poética, necessária para que o mundo se reencontre nos tórax acusados de poesia.
Orfeu, o cantor, descendo pela primeira vez ao inferno para buscar a sua amada, Orfeu em sua fidelidade absoluta, sendo apedrejado pelas bacantes, Orfeu não estará partido, sempre teremos as cigarras que não desistem, os cantores atrevidos, que sonham mesmo quando a época pede silêncios. Orfeu não partiu da humanidade.
E o fígado de Prometeu refeito a cada esperança- esperança: mistério de Pandora-. Refazer o figado, eis a eterna teimosia, a usina intransponível, impossível, a usina dos que sonham como sonhou e sonharão cantores expulsos, amantes como Orfeu.
Palavras cortantes são desafios, são devoluções do caos aos cais assombrosos, que assombram como encanto diante de alma de criança. Palavras cortantes, cacos silábicos refazendo-se como o fígado do ladrão do fogo. Palavras desafiadoras, pontiagudas, até maltratadas, serão palavras para a profundeza do rio, mas o rio límpido, de águas renascidas, e elas, palavras que são pedras, pedras com vigor e brilho.
O poeta se dilacera, se entrega, ressurge como Samba Lelê, com sua cabeça quebrada, e está pronto, não apenas para gravar em si os riscos da emoção, mas também e principalmente para reunir os cacos, da vida, os cacos do próprio poeta, que são os cacos do Ser, do próprio homem, do mundo, da palavra que ara, que lavra, que diz não, que diz sim, que diz antes, e no emaranhado do rio, feito um fiapo, dissolve-se para o nada...
O poema busca a aurora, pois em seu vitral está gravado o olhar do poeta, que é o olhar do menino, ele é aquele que não recusa o menino que jamais nos abandona.
Outrora, não é daí que vem a aurora, não é daí que salta o vislumbre de um dia claro, mas de um sonho mansamente desesperado, uma força de Rimbaud que clama pelo recolhimento dos cacos. Cacos que o tempo invade, cacos que ultrapassam o tempo, cacos que os olhos do poeta assumem, pois ele é capaz de ver onde nem sequer a multidão se nubla. Cacos são fortalezas espalhadas necessitando a força poética do vento, o vento em versos.
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