TEM UM POEMA DE FERREIRA GULLAR
Tem um poema que eu memorizei. Carrego comigo, vai dentro de mim. Quando vou para um lugar qualquer ele me acompanha. É um poema que é mais do que um poema, é parte integrante de mim, não exatamente uma parte biológica, física, se posso assim dizer. Mas eu sou feito dele também. Um poema curto, de Ferreira Gullar. Quando eu o li? Na verdade eu o ouvi. Quem leu foi o meu filho. Na sala. Assim sem mais nem menos. Chegou, abriu o livro e leu. O nome do poema? Cantiga para não morrer. O Ferreira Gullar deu-me este presente duplo. O poema em si, e a oportunidade de ouvir o meu filho lendo-o para mim, a voz do meu filho lendo um poema assim. E a partir de então sempre que eu penso nesse poema, eu cerro os punhos, trinco os dentes, elevo e pensamento e peço: me leve.
Eu sou feito dele. Ele é uma parte minha. Sou uma mistura insondável de pensamento, sonhos, ideais, ilusões, anseios, uma vontade de viver intensamente, e sou também esse poema. Às vezes cedo ao tédio e ligo a televisão, e ela estava mesmo ligada quando o meu filho apareceu na sala e pediu licença para ler o poema. E leu. Leu o poema de Ferreira Gullar. Mas leu tão bonito, tão forte e ao mesmo tempo frágil, tão soberano e tão meigo. E às vezes quando penso que um dia morrerei, paro e peço ao poema: me leve no coração.
Um poema de Ferreira Gullar é mais do que um poema, diriam. Eu sei disso e sou testemunha maior. Quando li o “poema sujo” talvez nem estivesse preparado para ler, tão impressionado fiquei, tão emocionado. Ou talvez já estivesse preparado a tal ponto que o poema pareceu me apontar um caminho. Alguém que dá um conselho, um aviso assim: se você quiser seguir o caminho da poesia, passe pelo “poema sujo”. Mas a emoção que eu senti ao ouvir o meu filho lendo o “Cantiga para não morrer” não pode ser demonstrada aqui, talvez num poema um dia, quem sabe. Mas até lá quero sempre pedir ao poema do Ferreira Gullar que foi lido pelo meu filho: me leve no seu lembrar.
Que bom ter um poema memorizado. Deve ser uma forma de não morrer. É uma tarefa e tanto permitir que o poema passe a fazer parte daquilo que somos. Ninguém mais jamais poderá dizer que eu sou apenas uma pessoa, pois não sou, sou bem mais, sou uma pessoa com um poema, um que eu possa levar aonde for, que possa estar comigo em todos os lugares, que possa estar vivo. E um dia quem sabe possa até confundir as pessoas que apontarão para mim como se eu fosse um poema. Ou talvez eu possa nesse dia sonhar que sou o poema ou o poema possa proclamar em praça pública um homem. E como sei que um dia partirei, quero então pedir mais uma vez ao poema, pedir mais uma coisa: me leve no esquecimento.
MARCIANO VASQUES
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Biografia: Marciano Vasques é escritor, natural de Santos, e autor de Literatura Infantil. Publicou diversos livros, entre os quais "Uma Dúzia e Meia de Bichinhos", "Griselma", "Arco-Íris no Brejo", "Espantalhos", "Rufina", "Uma Aventura na Casa Azul" e "As Duas Borboletas". É também autor teatral. |