Li que o inglês sorri, o francês ri, o espanhol gargalha, o italiano berra e o alemão grunhe, mas com a globalização, essa intensa confluência, já não é bem assim: já existem espanhóis sorrindo, brasileiros berrando, ingleses gargalhando...
E há pouco o teatro, São Paulo, o Rio, o Brasil, o Mundo perdeu o riso de Paulo Autran. Um riso de proa. Às vezes a morte vem e roça um riso, às vezes empurramos um riso para o colo da Morte... O Brasil é um roçado de risos, mas a cada dia rodopia um riso a menos pelas cidades.
Mas não é só o riso de Paulo Autran que vai fazer falta. Um navio não é feito só de proa. Há os risos de proa e popa. E a crônica transita de proa a popa sem obedecer a hierarquia de navio em festa no porto: festa de cabos e marujos só na popa; de suboficiais e sargentos só na proa... O dom da crônica é misturar as espécies. A crônica é a sargenta, o elo de ligação entre a proa e popa dessa vida. Ora, tendo o nosso grande artista recebido as honrarias de proa em toda a mídia, convido o leitor a vir comigo até à popa onde há outros risos:
Éramos jovens. Vínhamos de um baile de Copacabana, embarcamos num ônibus com destino à rodoviária Novo Rio para dali chegarmos à Baixada Fluminense. O seis passamos na roleta, menos um, o PC (Paulo César), fortão, formiga saúva e não tinha arrumado ninguém para namorar.
Dizem que quem ri por último ri melhor, mas quem ri por último numa piada ri pior porque foi o último a entender. PC no último banco recebeu no ponto seguinte a companhia de uma louraça. O provérbio se aplicou a ele. Tanto lugar vazio na frente e ela foi sentar-se ao lado dele? Babamos de inveja, mas sabíamos que se dependesse dele não iria sair nada, um bitoca sequer. No baile PC não fazia nem linguagem de sinais. Voltava sempre sozinho.
Mas quando demos uma olhadinha a louraça aproximava as vermelhas unhas do rosto de PC cujo sorriso progredia lento como obra de igreja pobre ao ver tanto esmola. Na segunda olhadinha PC já estava de olhos arriadinhos de ternura, a boca pendurada nos lábios da gata que miava feito uma chinesinha. Não vale a pena descrevermos a loura, palavras a estragaria. Basta dizer que com as mãos nas coxas, PC já havia arrancado todo o batom da louraça e pronto!
- Demorou, mas quando arrumou foi coisa boa! Diria minha prima.
No ponto seguinte o ônibus parou de novo e pudemos ouvi-la dizer seu nome: Stella Lancaster. Demorou, mas arrumou logo uma internacional. Perdida, ali, em Copa. No ponto seguinte, nova parada e vinha música do fundo do ônibus. Era Stella Lancaster cantando para PC. “Allouete”. Divina como Denise Emmer! Que voz! Desejamos estar perto dela, mas havia a roleta e o trocador que ria e como ria, depois da música, freando os dentes com as rédeas dos lábios, a cada vez que PC recebia na boca a papinha de maçã mastigada pela louraça. PC tinha a mania de andar com maçã no bolso.
Quando o nosso amigo abriu o olho e viu o riso do trocador afastou a loura que lhe oferecia mais papinha de maçã e os olhos de PC se abriram e ele viu. Stella Lancaster teve de descer. Desceu cantando, “Ne Me Quitte Pas”, isto é, “Não me deixes”, porque todos pulamos a roleta para conter o PC. Não foi fácil.
Perdemos o PC como amigo, mas a cada viagem que encontrávamos o trocador, lembrávamos e ríamos a valer. Isso foi na década de 80.
Hoje a ciência se aperfeiçoou tanto que é possível novos PCs beijarem um travesti por engano no ônibus, no carro, em qualquer lugar. Notícias na mídia não cansam de dar provas disso. Cenas assim são prováveis de se repetir no dia-a-dia com direito a papinha de maçã. Com o advento dos 30% de Microônibus e “Micrões”, o que não vai se repetir mais é a inteireza do riso do trocador. Serão 30% de risos a menos a rodar nos coletivos da cidade. Porém, é como diz o representante da Fetranspor: “Temos que avançar!”.
Mas ai se o mundo caminhasse para frente sem deixar ninguém para trás; se pelas janelas abertas, trazido pelo vento, entrasse o verbo trabalhar sempre no gerúndio.
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