Ouvi dizer que há projeto para acabar com o Terminal Rodoviário Coronel Américo Fontenelle e no lugar nascerá um Shopping. Não sei. Outrora sei é que nesse terminal rodoviário, enquanto aguardava o ônibus a mendiga pediu-me 25 centavos. Saquei a nota de 10 reais para dar, mas um motorista, eta sociedade intervencionista, desviou minha mão, dizendo: “Manchinha é mendiga abusada! Só pede 25 centavos! Mendigam e ainda se acham no direito de determinar a quantia! Ora, mendigo é qualquer coisa e qualquer trocado serve. Onde já se viu exigir 25 centavos? Vai embora, Manchinha! Vai!”. Porém, Manchinha que cantarolava, afiando uma moeda de 25 centavos numa pedra de amolar, defendeu-se que só pedindo esmola sistemática de 25 centavos os mendigos fariam o Índice de Gini (que mede a desigualdade de renda) recuar mais e mais. O Índice de Gini, - afirmava a menina – é um Golias a ser derrubado. Precisamos cortar a cabeça do Índice de Gini. Por isso afio minha moeda.
Quanto aos motoristas e cobradores pedi que ouvissem porque lhes tinha a contar essa história: fiz a faculdade com fome e falta de dinheiro de passagem e certa noite caminhava para o fim do curso de Direito, chovia muito e não tinha o dinheiro para voltar à Baixada Fluminense. É longe do centro do Rio à minha cidade. Conhecia o fiscal e confiei na carona que ele sempre me dava, mas ao chegar aqui na rodoviária, dei com uma enxurrada de placas escritas em vermelho: Proibido dar Carona. Além do fiscal, agora havia o fiscal do fiscal para evitar caronas. Pedi assim mesmo, contudo, nenhum de vocês teve a coragem de me ajudar e então fui para a estação Pedro II porque lá, num certo horário, com seu latão de lixo, o homem da limpeza passava por um portão que dava acesso aos trens e quem estivesse ali era beneficiado. Quanta gente aquele homem ajudou! Entretanto, naquela noite o homem estava lá, o portão se abriu, dava para passar, porém, os trens estavam impedidos de circular de tanta chuva que era. Netuno, Rei dos Mares, com seu tridente, furioso, furava nuvens e nuvens sem parar, lutando para deter o Dragão da Inflação que cuspia fogo a uma altura de 3.700% sobre o país. E o Rio cujo hábito é de pernas para o mar, naquele verão estava de pernas para o ar.
Quis voltar à rodoviária, mas a rua já estava alagada e um versátil camelô simultaneamente vendia guarda-chuvas e sombrinhas e com uma espécie de carro de madeira sobre rolimãs cobrava 1 real para quem quisesse passar com os pés em seco, amedrontando com doenças como leptospirose e outros tipos. Uma senhora chorou uma promoção e subimos naquele altar improvisado e atravessamos os dois pelo preço de um, todavia, só até ali a senhora pôde me ajudar. Com os pés em terra firme, agora era esperar o dia e ver se chegava algum conhecido que me emprestasse dinheiro. Se era terrível o combate entre Netuno e o Vulcano Dragão Inflacionário, cujo fogo já ultrapassava os 3700%, dentro de mim travava-se outra batalha não menos pior entre duas vozes, pondo os neurônios em tormenta já que a voz da direita afirmava existir um caminho na tempestade e a da esquerda me fazia olhar as placas “Proibido Dar Carona”, lembrar dos trens fora de circulação e arrematava: Teus caminhos estão fechados. De repente avistei uma mendiga e pensei comigo se ela poderia conhecer algum motorista amigo e pudesse me dar uma carona. Com muito jeito me aproximei e perguntei se...
Usava um vestido branco de alcinhas sobre o corpo negro e acanaveado. Pedia esmolas, mas corpo e voz tinham a paz financeira para escrever um romance com arte. No colo, a menina. Mãe e filha agarradinhas, dígrafo inseparável. Ela ergueu a cabeça e devagar afundou os olhos em mim; olhar que nunca mais recebi na vida. Um dos braços desamparou a filha, estendendo-se e sua mão se foi inclinando até ficar arrampada, abrindo-se lenta como flor e várias moedas lhe desceram às pontas dos dedos como água escorrendo, formando um mar de prata. E como reluzia! Ela nada perguntou nem desconfiou, somente disse: “Toma! Vai pra casa!” E fiquei inchado feito um sapo, com uma força que poderia me levar para casa andando, mas um motorista que havia encostado o ônibus, sem percebermos, tinha ouvido a conversa e ao lhe perguntar se poderia me dar uma carona, sem pestanejar, disse: sobe! Nas mãos daquela mendiga havia muito mais do que o valor da passagem e me ofereceu tudo, mas não precisei e ela voltou a fechar a mão de flor com todas as moedas, todas de 25 centavos, azuladas por relâmpagos. E esta, a quem chamam de Manchinha, naquela noite, enquanto a mãe me oferecia esmola, sorria para mim com esse mesmo sinal no olho esquerdo, parecendo o mapa da África e não tive dúvidas: Podem acabar com o Terminal Rodoviário, posso não lembrar da existência de uma rodoviária, mas da mendiga que me ofereceu toda a sua esmola como poderei esquecer se as ruas andam cheias delas?! A desigualdade é como vírus da Aids: não tem cura.
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