Esta manhã é diferente, mas naquelas manhãs corríamos cedinho para a aula. Nunca faltávamos. Meia verdade. Saíamos com destino à escola, mas quantas vezes nos desviamos e fomos parar naquela lixeira em Portugal Pequeno, em Meriti! Os caminhões despejando papelão, cobre, alumínio e metal, nosso Natal, menos mal, animal. Dava para comprar as roupas até do ano novo e mais: “mãe, a rabanada é com a gente!”.
Naquelas manhãs, acreditávamos nas queixas dos comerciantes na televisão e íamos lá às lojas deles, comprar as coisas para eles, como a gente, terem ao menos rabanada sobre a mesa, nas noites de festas.
O caminhão azul era meu. Ninguém tocava. Trazia cobre e metal, os mais caros da época. Meu pedaço era privilegiado. Vez por outra voavam sacos de vitaminas do governo por sobre um muro e me acertavam a cabeça. Almoçávamos todos. Bocas rosas de leite em pó. Engordavam mesmo, aliás, inchavam. Mas legal, as datas vencidas não faziam mal. As muitas vitaminas lutavam para não envelhecer e chegarem belas aos palcos dos nossos estômagos e representarem bem a tragédia da alimentação, onde todas morrem por um em vez de um por todos. As vitaminas são trágicas, sabem que vão morrer, mas descem aos nossos estômagos, cantando: Vamos te alimentar e não morremos, nos transformamos, somos a tua força. Morremos nos estômagos e ressuscitamos nos bíceps, tríceps... Alegrem-se, meninos!
Naquelas manhãs, os catadores não eram anônimos. Conhecíamos cada carência. Éramos medusas, transparentes à luz do sol e do olhar. Fragmentados de corpos, almas não. Nossos corpos davam passagem à aspereza e a desamizade. Retínhamos a doçura. Os semelhantes se atraem, dizem.
Naquelas manhãs, corríamos para o metal que vinha misturado ao lixo dos parques de diversões, das fábricas, cinemas, feiras e casas. E ele vinha sujo de iogurte, açúcar, mel, café, sangue de galinha, coisas leves, coisas de crônica, desanimalizadas.
Mas esta manhã é diferente: depois da intensa fuzilaria, os meninos acordam cedo para catar. Só para catar. Metal. Metal da violência. Cápsulas. E enchem bolsas. Pesadas bolsas. E no ferro velho eles faturam. E vem a noite. E na cama para dormir, não dormem. Perguntam-se:
- Pô, ainda não deram um tiro esta noite?! Amanhã vai ser fraco.
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