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Piriguete Capítulo 3
Pandora Agabo

A única razão que me faz aguentar tão firmemente os meios de semana, cheios de trabalhos repetitivos, pessoas sendo explicitamente grosseiras ou falsamente educadas comigo, é porque os meus finais de semana geralmente prometem. "O que?", deve ser o que vocês estão se perguntando. "Sexo" é o que lhes respondo. Agora se é um bom sexo ou não, isso são outros quinhentos.

Eu havia me comprometido a distrair a cabeça da Mariana – desde que ela me prometesse que não ia arrumar um namorado novo naquele final de semana – junto à Gabi. Iríamos pra uma festinha conhecida na cidade e eu estava bastante animada, porque na sexta-feira eu havia passado no shopping e comprei um top muito, muito lindo e que combinaria com o short que eu tinha em mente pra usar. Faltando cerca de três horas pras meninas passarem aqui de táxi, eu tomei banho e comecei a me arrumar.

                   ***

Uma das poucas vezes que tive um diálogo real com um cara, já que na maior parte do tempo eles acham que eu sou apenas uma boneca inflável que dança e cavalga, incapaz de debater sobre qualquer assunto, eu tive o desprazer de fazê-lo com um babaquinha que não entendia muito bem os princípios do feminismo. Eu sei que eu disse que ia tentar deixar as bandeiras pra lá, mas é que esse episódio me é bastante memorável e não poderia deixar de fora, já que ele me será bastante útil pra explicar algumas coisinhas de como levo a minha vida.

— Então quer dizer que você é feminista? – ele perguntou rindo debochado.
— Sou sim. Por quê? – já perguntei na defensiva.

Ele continuou rindo, tentando esconder o sorriso.

— Por nada.
— "Nada" não, agora fala.

Estávamos nus, deitados na cama do seu quarto na república em que ele morava - e que, a propósito, ele não podia levar visitas femininas. E querendo ilustrar o que logo viria a dizer, ele escorregou a mão do meu joelho até a minha virilha e disse:

— É que você é lisinha, né.
— E?
— Feminista num tem aquela mania horrível de ser tudo cabeluda?
— Sério que isso foi tudo o que você abstraiu do feminismo? Pelos?
— "Abstraiu"? – e foi nessa hora que ele caiu na gargalhada sem o menor pudor.

Acho que ele não esperava que eu dissesse essa palavra e arrisco dizer que ele nem mesmo a entendia muito bem, mas continuou agindo como que se eu fosse ridícula por dizer palavras como "abstrair" enquanto ele era o universitário e eu não.

— Não to entendendo onde ta a graça.
— Não, de boa. É que… Sei lá…
— É, você não "sabe lá" mesmo. Se "soubesse lá", não ficaria pensando bobagens como "você é lisinha, logo você não é feminista". O feminismo, antes de mais nada, tem a ver com escolha.
— Ta, ta… - ele revirou os olhos, como que se estivesse cansado daquela conversa-mole-de-mulherzinha.
— Assim como eu escolho voltar pra casa agora. - e me levantei da cama, irritada por ter chupado tão bem um cara tão otário. Pelo menos foi a cabeça mais inteligente que esteve na minha boca, única coisa que me consolou enquanto eu voltava pra casa.

É por isso que eu evito conversa fiada na cama. Ou depois dela. Ou até antes. O cara tem que ser muito merecedor das minhas palavras pra que eu as gaste com ele. Sério! Não que eu esteja afirmando que todo homem é um machista babaca, cheios de associações toscas sobre o universo feminino, nada disso, mas pra evitar maiores decepções pós-coito, prefiro guardar as palavras pra mim.

Contei tudo isso, porque eu estava me lembrando de uma vez que assistíamos televisão: minha mãe, a Gabi, a Mariana e eu. Em meio a uma entrevista, eis que a Gabriela soltou algo como "se diz feminista, mas nunca fica sem um batom". Ela se referia a uma ativista no movimento feminista famosa da época e isso, rapidamente, gerou uma leve discussão entre nós. Nessa época, ainda adolescentes, éramos todas caricaturas de nós mesmas. Eu era uma piriguetezinha juvenil, minha irmã a santinha sem sal e a Gabi um estereótipo de engajada política com aquela radicalidade típica da juventude recém-conquistada. É válido ressaltar que quase tudo o que aprendemos sobre independência feminina foi com a minha mãe (e um pouco com meu tio, mas isso é conversa pra outro momento), que já tratou de dar um puxão na orelha da Gabi.

— E o que o batom tem a ver com o feminismo?
— Ué tia, essa parada de que a mulher tem que ser mulherzinha pra agradar o homem… Sério! Como que uma feminista dessa quer ser levada a sério?
— Você concluiu que ela quer agradar os homens nessa entrevista só por causa do batom? – comprei a briga também – Eu uso batom e isso nem sempre significa que eu to querendo agradar os homens.
— Eu também. - a Mariana, a caçulinha de nós, disse um tanto sem jeito, até porque ela não pensava em "homens" ainda, apenas em garotos.

Vendo que havia sido encurralada, a Gabi tentou dar a volta por cima revendo o próprio discurso.

— Não gente, o problema não é o batom. O problema é que as mulheres só usam batom pra se encaixarem no padrão de beleza imposto pela mídia machista.

Era admirável ouvir aquelas palavras aparentemente tão adultas saídas da boca de uma menina de 15 anos, mas era evidente que aquelas eram frases decoradas. A intenção da minha prima era muito boa, só que algumas coisas naquela linha de pensamento precisavam ser revistas e, felizmente, a minha mãe estava lá para nos esclarecer algumas coisas, até porque tanto eu quanto a Mari discordávamos do que a Gabi disse, porém jamais conseguiríamos explicar muito bem o porquê.

— Realmente, Gabi, o problema não é o batom. O problema é o que leva uma mulher a usar batom. Pode até ser o padrão de beleza imposto pela mídia machista, como você disse, mas também aquela ideia de que uma mulher de verdade tem de ser feminina, logo ela TEM que passar maquiagem e TEM que se cuidar. - falando como um robô, minha mãe queria demonstrar como que algumas pessoas repetiam isso como se fosse uma regra de verdade – Coisa que é repassada no boca a boca mesmo, então nem sempre é a mídia que exerce esse papel impositor. A questão é: uso batom por que eu quero cumprir com esse requisito ou porque eu gosto de batom e passo se eu quiser?

Calada, a Gabriela refletia sobre aquilo.

— Uma mulher pode ser feminina se ela quiser. Pode estar na moda, tentar ser magra, passar química no cabelo pra alisar ou mudar de cor, passar maquiagem… Claro que pode, isso não a faz menos feminista que uma mulher que prefere ficar ao natural, se vestir de um jeito que contrarie a moda, não fazer questão de manter um corpo magro, deixar o cabelo natural, nunca usar maquiagem. O que faz uma mulher menos feminista é quando ela se submete às vontades dos outros, quando renega o próprio gosto e se veste de um jeito pra agradar terceiros, tenta ser magra pra ser aceita, muda a aparência simplesmente porque acha que assim vai ter a aprovação dos outros, entende?
— Dos garotos em especial. - me intrometi – Que nem a Suzaninha lá da minha escola. Tipo, ela é morena né? Ela tem o cabelo mais escuro que o meu, se brincar, só que aí entrou um menino novo e, tipo, ela descobriu que ele prefere meninas louras. Acredita que ela pintou de louro só por causa dele?
— Que idiota. - a Gabi debochou.
— Quer dizer… - pra demonstrar que eu estava dando ouvidos para o que a minha mãe acabara de ensinar, adequei o meu discurso ao dela – Tudo bem se ela pintasse o cabelo de louro porque ela gosta assim, né? Mas não foi o caso.

Minha mãe assentiu com a cabeça.

— Agora mudar só por causa de menino? Eu hein!
— Ah ta! – a Mariana, que só estava esperando a oportunidade pra me implicar, apontou pra mim, querendo caçar confusão – Então vai me dizer que você se arruma do tanto que se arruma pra ir pra escola, só por que você gosta? Nem passou pela sua cabeça chamar a atenção dos meninos?

Tudo bem, a espertinha meio que tinha me pegado. Na época eu já sabia que meu exagero na hora de me maquiar era uma tática pra chamar a atenção dos garotos, assim como meus shorts curtos e a blusa colada. Sim, eu havia acabado de levar um soco no estômago, porque eu estava sendo hipócrita e fui desmascarada.

Minha mãe, vendo a saia justa que a Mariana havia me colocado, tratou de me defender.

— Tem um período da nossa vida que é assim mesmo, a gente fica lutando pra ganhar espaço no mundo e tenta ser aprovado por todos. A Isa não se livra disso, mas você também não, Mariana. E nem você, Gabi. Aliás, ninguém no mundo e eu to falando tanto de mulheres quanto de homens. Mas com o tempo a gente vai se dando conta que o que os outros querem que a gente seja ou o que a gente faça tem pouco a ver com o que a gente é e o que gente quer fazer, aí vamos nos desprendendo dessa nossa mania de querer agradar os outros. Ou o que, Mari? Você acha que é a despretensiosa do país só por que tem esse jeitinho de songamonga?
— Mãe! – ela gritou ofendida.

A Gabi e eu caímos na gargalhada.

— Brincadeira, amor. - minha mãe puxou a Mariana em um abraço um tanto selvagem, levemente arrependida pelo que disse, mas rindo ainda assim – Mas é isso mesmo. A Isa é essa cocota pra agradar os meninos, você é toda quietinha pra agradar a mim e ao seu pai (e pensa que a gente não sabe que alguns menininhos também adoram uma quietinha?), a Gabi é toda politicamente engajada pra agradar o pai dela…
— Eu hein, tia. Me deixa de fora dessa.
— Calma menina, deixa eu terminar. - e deu um tapinha na cabeça de Gabi, sempre do seu jeito gozado – Vocês não gostaram de ouvir nada disso né? Eu entendo, porque fica parecendo que a gente não tem personalidade, mas, na minha opinião, nem se trata disso. Acontece que com o tempo vocês vão se dar conta que optaram por esses caminhos porque, no fundo, no fundo, vocês são assim mesmo e uma hora ser a cocotinha, a quietinha e a politicamente engajada não vai ser mais pra agradar os outros, mas pra agradar a vocês mesmas. Ou então vocês vão mudar completamente, porque mais cedo ou mais tarde todo mundo se cansa de ser o que os outros querem ver.

Pelo menos com a gente a profeta Elizabeth acertou em cheio. Era isso mesmo: adolescentes estão o tempo inteiro querendo a aprovação dos amigos, dos colegas, das paqueras… Isso é normal, não devemos apedrejar os bichinhos por isso, é uma fase.

O problema é quando nos transformamos em adultos que continuam nessa busca incansável de sermos aceitos pelas pessoas que nos rodeiam, principalmente no que se trata em conseguir um parceiro romântico e… Vamos lá! É claro que você quer agradar a pessoa que te interessa. Posso até não ser a pessoa que mais entende do assunto, só que tenho o mínimo de empatia pra sacar que é claro que você quer parecer a pessoa perfeita aos olhos daquele com quem você sonha antes de dormir. Estamos nessa conversa franca pra que, hein? Pra dizermos a verdade, num é mesmo? Pois bem, essa é a verdade: nunca vamos perder essa essência de querer agradar os outros. O que não podemos deixar é que vivamos em função disso, abrirmos mão de todas as coisas que gostamos e queremos só pelos outros... E sim, tudo isso tem um contexto muito amplo e acho que todo mundo é capaz de se identificar com isso, daí surge a pergunta "e o que isso tem a ver com o feminismo?". Calma que eu vou lhes dizer o que tem a ver.

Sabe aquela conversa de "isso é coisa de homem" e "aquilo é coisa de mulher"? Essa bagaceira de divisão de tarefas femininas e masculinas, que me enoja só de mencionar, é o que o feminismo tenta combater. Agora para situá-los no contexto que eu to querendo inserir, é isso: mulheres não são obrigadas a serem lindas, sensíveis, solícitas e disponíveis aos homens, esse não é o nosso papel em uma sociedade dita individualista e livre! Mas se nos colocamos como mulheres lindas, sensíveis, solícitas e disponíveis, é porque assim quisemos e não porque os homens disseram que temos que ser assim. Só não sei se atingi o ponto que eu quero chegar, mas vou tentar de novo.

O perfume está passado, já estou com a maquiagem quase pronta, meu cabelo está secando naturalmente, minha roupa está na cama e ainda tenho de escolher meu sapato. Cara, eu vou ficar gata pra caralho! E sim, eu quero chamar a atenção de algum carinha e, se possível, trazê-lo até aqui e transar a noite inteira. Fim. Isso feriu, de alguma maneira, a sua visão do que uma mulher deve ser?

Repassando:

Cheirosa? Tudo bem.

Maquiada? Tudo bem.

Cabelo natural? Desde que ele seja "bom", aí tudo bem.

Bem vestida? Tá... Bem vestida pra quem? Mulheres gostam de outras mulheres elegantes; homens gostam de mulheres com roupas que as deixem bem gostosas... Desde que não seja a sua irmã, é claro. Ou sua filha.

Sapatos? Ai meu Deus! Como pode mulheres gastarem dinheiro com tantos sapatos? "Mulheres..." e, logo em seguida, algum meneio de cabeça e olhos revirados.

Mulheres têm que ser difíceis… Só que nem tanto. Tem que ser "dama na rua e puta na cama". Puta? Sim, mas nem tanto. Mulher tem que gostar de sexo entre quatro paredes, mas falar disso é feio. Fica parecendo homem, né?

Então de novo: sabe o que o feminismo fez por mim com relação a tudo isso? Me fez cagar. Isso mesmo. CA-GAR. Essa palavra soou muito deselegante para seus olhos machistas por que foi uma mulher que disse? Que pena. (Agora sem ironia, se soou deselegante por que você tem educação mesmo, peço desculpas de verdade).

Eu tive que esperar a adolescência chegar ao fim, adquirir minha independência e passar a encarar alguns desafios da fase adulta para entender que sim, eu gosto de usar roupas curtas. Sim, eu gosto de chamar a atenção dos homens, mas também sinto calor e não vou ficar me tampando de pano só pra provar que "mulher de verdade se dá o respeito" ou "não provocar os homens". Sim, eu me arrumo nas noites que quero ficar com um cara, mas também me arrumo nas noites que só vou ficar com as minhas amigas, pelo simples fato de eu gostar de me sentir bonita. Sim, eu adoro fazer sexo, mas quando eu não to afim, eu não to afim. Sim, eu me depilo porque eu prefiro assim, mas nos dias que eu não quero me depilar, não o faço e foda-se você caso se incomode com os meus pelos. Sim, quero que você admire minhas pernas e o meu decote hoje, o que não significa que amanhã, quando eu tiver usando short ou uma blusa mais decotada pra ir à farmácia, você ta no direito de me tratar como me trataria se estivéssemos na balada. Sabe o que eu penso sobre objetificação do corpo humano? Que é inevitável. Eu objetifico o corpo dos homens o tempo inteiro, se é que isso os farão se sentirem menos mal... E sabe, nem eles e nem eu estamos certos. Só não objetifique a minha pessoa, é tudo o que eu peço.

Como eu to tentando explicar, ser piriguete é muito mais um estilo de vida, não a síntese de meu-mundo-gira-em-torno-do-tesão-masculino-e-seu-falo. Mulheres são capazes de terem uma vida além do macho. Uma vida delas. Mulheres pensam por si mesmas e pra elas mesmas. Não o tempo inteiro, claro… Mas nesse caso, esse é um mal de ambos os sexos e mais que ambos os sexos, é um mal de qualquer gênero.


Este texto é administrado por: Sabrina Queiroz
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