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Piriguete Capítulo 2
Pandora Agabo

Ao sentir a movimentação de Evandro ao meu lado, rapidamente escorreguei pra fora da cama e catei minhas roupas que estavam no chão, vestindo-as sem aquela cautela de quem não quer acordar o outro e, principalmente, de quem não quer ser visto. Tudo bem se ele me visse me vestindo e tudo bem se ele me visse indo embora, eu só não queria que ele acordasse ao lado do nada. Nos conhecemos ontem, mas, ainda assim, tivemos um momento de intimidade. Sei lá, pensei que talvez ele ficasse chateado se eu simplesmente sumisse; não que eu fique chateada quando fazem isso comigo, mas acho escroto quando os caras saem do meu apartamento na surdina, como que se tivessem feito alguma coisa errada ou como que se eu não tivesse sido boa o suficiente pra nem mesmo merecer ver a cara do sujeito na luz do dia. Na verdade, não importam muito os motivos, eu só queria que ele pelo menos me visse saindo.

— Bom dia. - ele disse preguiçoso.
— Bom dia.
— Quer comer alguma coisa?
— Não se preocupe. - sorri educadamente – A porta ta trancada?
— A chave ta na porta.
— Ta certo. Obrigada. - peguei a minha bolsa e fui andando sem pressa em direção à porta.
— Tem certeza que não quer comer nada?
— Ta tranquilo, de verdade. - dei um último sorriso e me despedi – Tchau.
— Tchau.

Não foi somente impressão, acho que ele realmente queria que eu ficasse para o café da manhã. Não acredito que tenha sido porque ele se afeiçoou a mim, acho que ele quis ser educado, talvez porque ele fosse mesmo educado. Admiro os que têm essa preocupação, mas às vezes deixo passar.

Têm vezes que eu fico, principalmente quando rola uma conexão bacana. Esse tipo de coisa se percebe na noite anterior, quando estamos a caminho de onde passaremos a noite. Se desenvolvemos um diálogo, sem silêncios constrangedores ou perguntas que criem clima de tensão, já é sinal de que você pode tomar um café da manhã com a pessoa sem medo de ficar acanhado.

Diferente do que muitos pensam, não existe um padrão de caras de balada, onde todos são estúpidos e só estão a procura de um buraco pra enfiar seu brinquedinho. Afirmo categoricamente que há as mais diversas situações. Quando o rapaz tem carro, alguns deles ficam conversando, fazendo perguntas e querendo te conhecer; já tive o prazer de ir pra casa de caras mais extrovertidos, que conversam normalmente, como se fossem um amigo de longa data; têm os que gostam de ficar passando a mão, com sorrisinhos safados, sem dizerem nada e os que simplesmente ficam em silêncio, como que se você nem mesmo estivesse ali. Quando vamos de táxi, há todos esses exemplos, somando aqueles que mal te deixam respirar, dando aqueles amassos um tanto intensos demais pra um lugar onde tem um taxista pouco a frente.

O Evandro se encaixou no que ficava passando a mão nas minhas pernas e pescoço no táxi a caminho da sua casa, o que significa que provavelmente não teríamos assunto pra conversarmos durante o café da manhã e já que seria assim, preferi ficar em silêncio sozinha em alguma padaria.

— O que deseja?
— Um pão de queijo e um cafezinho. - dei uma piscada para o rapazinho do balcão; nada de demais, não foi uma piscada galante, mas uma piscada de "pode pegar pra mim, por favor?", só que pelo simples fato de eu estar de saia de couro e uma blusa decotada nas costas, a senhorinha do lado ficou me olhando feio. Sabem o que eu fiz? Olhei pra ela de volta e disse com o meu melhor sorriso – Bom dia.

Aquilo a surpreendeu. Sei que ela se sentiu culpada por ter me olhado feio e respondeu sem graça:

— Bom dia.

O rapazinho deixou o meu pedido sobre o balcão e tomei um gole do meu café, olhando para a televisão que transmitia um programa de automóveis... Aqueles insuportáveis de domingo, sabe? Pois é. Não foi dos melhores cafés da manhã, mas pelo menos o pão de queijo estava novinho.

Eu não sabia direito onde estava e eu poderia muito bem voltar pra casa do Evandro só pra perguntar como fazer pra chegar onde eu moro. Meu celular tava sem bateria, ou seja, eu tava sem nenhuma forma de me localizar sem ter de pedir ajuda. Mas como fiquei com receio de voltar pra casa do Evandro e passar uma impressão errada, preferi pedir informação na parada de ônibus mesmo, que no fim das contas era a solução mais simples.

— Olá…

A moça, que segurava a mão de uma menininha, olhou pra mim de rabo de olho e, discretamente, passou a criancinha pra trás de sua perna, como que se a estivesse protegendo de mim. Ignorei a grosseria e fiz a pergunta que eu precisava fazer:

— Você sabe me informar se aqui passa ônibus pra comercial norte?
— Passa. - respondeu seca.
— Obrigada. - e me sentei no banco da parada, contente por não ter que andar mais e chegar a lugar algum.

A moça não gostou quando viu que eu ficaria na parada de ônibus, o que eu achei de um extremo preconceito, porque não me acho nada ameaçadora. Mas foi ao puxar o ar perto do meu cabelo que percebi certo cheirinho de bebida e cigarro. Faz parte. Não tem como sair de uma festa com o mesmo cheiro que se chega.

No mesmo tanto que aquela moça não gostava da minha presença, sua filha – ou quem eu imaginei que fosse sua filha – estava curiosa sobre mim, me olhando e me analisando. Percebi que a sua atenção maior voltava-se para a minha maquiagem matinal borrada, que até tentei disfarçar passando os dedos por debaixo dos meus olhos. Mas foi somente ao jogar meu cabelo inteiro por cima de um dos ombros, que notei que ela me reparava e tentava me imitar minimamente.

O meu ônibus apareceu no horizonte – eu tenho uma visão realmente muito boa, diga-se de passagem – e antes de me levantar, sorri pra garotinha e dei o sinal. Ela ficou me assistindo subir no ônibus, admirada. Agora eu entendia o incômodo de sua mãe: talvez, sem querer, eu seja uma "má" influência ambulante. Acho interessante a capacidade de dedução das pessoas, como dessa mulher mesmo, que deve ter concluído que eu sou tudo o que ela não gostaria que a menininha se transformasse só de olhar pra mim ou sentir algum cheiro desagradável.

Mas é o que eu sempre digo: ser piriguete é uma faca de dois gumes. Na mesma hora em que você é rechaçada e gera reações realmente negativas nas pessoas, basta dar alguns passos pra se deparar com um clima contrário, onde você atrai olhares e é badalada. Não falo somente da menininha que tava se segurando pra não me perguntar o que eu tinha passado nos olhos, mas também desses peões que não foram apresentados ao conceito de "sutileza". Desta vez tudo o que consegui foram alguns olhares de uns velhos babões, que não tinham a menor vergonha na cara e ficavam me olhando, mesmo estando acompanhados de suas esposas. O engraçado é que eles que estavam faltando com o respeito com suas esposas, mas eu que estava sendo repreendida através dos olhares delas.

Olha, não vou ser hipócrita e dizer que não gosto da atenção que recebo, porque é claro que gosto, sobretudo quando meu espaço não é invadido, mas isso não significa que eu estou clamando pela atenção desses senhores casados e querendo destruir todo lar que me aparece. "Ei! Eu não vou trocar de roupa só porque o seu homem não sabe te respeitar, então já chega com essa palhaçada pro meu lado, estamos entendidas?". Quem me dera se essas senhoras compreendessem isso…

Chegado ao meu destino, lá ia eu pra mais um capítulo da novela do cheguei-em-casa-de-manhã-com-roupa-de-festa-e-tenho-que-aguentar-rostos-julgadores-me-julgando. Cada um seguiu com seu script: dei "bom dia" quando entrei no elevador, as senhorinhas ficaram com aquela cara de cu e os seus parceiros tentavam não olhar.

Felizmente pra pessoas como eu, que a simples presença parece incomodar mais que a notícia de que o governador da cidade desvia dinheiro público, existe um lugar para chamar de lar. Melhor ainda: um lugar que somente eu chamo de lar. Faz algum tempinho que eu moro sozinha e diferente do que ouço muito por aí, não tenho muito além do que reclamar fora os meus vizinhos.

Contudo, apesar de esse mero detalhe não ser lá muito incômodo pra mim, a bagunça do meu apartamento não é brincadeira. Muita roupa em cima do sofá, muita roupa em cima da minha cama, muita roupa em cima da mesa. Muito sapato espalhado pelo chão. Muita louça em cima da pia. Muita poeira… Em todos os lugares. Antes que me acusem de achar desleixo uma coisa bonita, já digo logo que eu não me orgulho de ser uma preguiçosa que odeia qualquer tipo de trabalho doméstico. Também não acho que a mulher moderna, pra ser moderna, tem que ser tão desorganizada como eu ou desleixada de qualquer maneira. Eu sou assim e ponto final. Poderia mudar? Poderia mudar. Quero mudar? Até que sim. Mudei até hoje? Não, mas ainda não perdi a esperança.

Como eu durmo muito mal na casa dos outros, antes de trocar de roupa e tirar (porcamente) a minha maquiagem, coloquei meu celular pra carregar. Antes de cair na cama, fui dar uma olhadinha, pra ver se havia alguma chamada perdida ou mensagem não lida. Tinha duas, uma da Mariana e a outra da Gabriela (só para situá-los: Mariana, minha irmã e Gabriela, minha prima). As duas estavam avisando que passariam aqui em casa hoje à tarde. O sono de horas que eu havia programado, em questão de segundos, se converteu em um cochilo, porque eu teria que dar um jeitinho no apartamento para recebê-las, até porque elas são meninas organizadas e limpinhas... Sobretudo a Gabriela, com a sua mania de limpeza quase que doentia. Pensando melhor, vou até deixar uma baguncinha, quem sabe ela não se aguente e arrume a casa ela mesma? Esse tipo de oportunidade a gente não pode deixar passar.

                   ***


— Não me diga que…

A Mariana afirmou com a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas, horas mais tarde, depois que eu já tinha me recomposto, pelo menos um pouco, do meu sono.

— Ah não, Mari! – lamentei sinceramente, por mais que essa fosse… O que? A terceira vez no ano? – Mas o que aconteceu?

— O de sempre. - choramingou.
— Não acredito.
__ Como eu disse pra ela, é assim mesmo. Existem pessoas que, mesmo quando cometem erros, assumem com o mínimo de ombridade e outros que nem esse imbecil, que acham que confessar é suficiente e fogem. É isso aí, bola pra frente.
— Nada de "é isso aí", Gabriela! – chamei a atenção da minha prima e depois passei a falar com a Mariana, apontando-lhe o dedo – Você vai atrás desse cara e vai tirar satisfação.
— Pra que, Isa? – ela secava o rastro do choro.
— Porque você merece. E porque ele tem a obrigação!
— Não, eu não quero…
— Mari, vai por mim: você não vai seguir em frente enquanto não tiver uma explicação. Esse é o tipo de coisa que a Gabriela ou eu conseguiríamos, mas eu sei que você não vai conseguir. Você tem que exigir uma explicação. Ninguém trai a outra pessoa, confessa e termina sem maiores rodeios. Negativo! Você vai atrás desse cara e exigir que ele te conte exatamente o que houve. Não precisa fazer cena pra isso, mas acho que você tem de ser firme na hora. Depois que ele deixar tudo muito bem explicadinho, você vai deixar esse babaca pra trás e aí sim: bola pra frente.
— Será? – Mariana passou o dorso pelo nariz.
— É! – reforcei meu conselho.
— Não sei… – Gabriela claramente discordava de mim – Acho que não vale a pena. Ele não tem consideração pela Mariana e isso ficou evidente. Pra que ficar se humilhando?

Mariana olhou pra mim, ansiando por um comentário meu com relação a isso. Acho que ela queria que eu concordasse com a Gabriela.

— "Se humilhando" por quê? Você se sentiria humilhada por pedir uma explicação? Porque eu não.
— Um pouco. - minha irmã confessou.
— Ora, quem traiu aqui não foi você. Se tem uma pessoa que deve se sentir humilhada nessa história, essa pessoa é ele.
— Acho que ele não ta avisado disso, Isa. Não ouviu o que o sem vergonha fez? – Gabriela tentava me convencer que o melhor era deixar baixo essa história.
— Sim, eu sei. Mas já pensou se só fôssemos agir do jeito certo se os outros soubessem que é certo? É que nem ter a possibilidade de impedir um assalto, mas não fazer isso porque o assaltante simplesmente não ta muito bem avisado de que o que ta fazendo é errado.
__ O que tem a ver? – Mariana perguntou chorosa.
__ Tudo a ver. O que eu to querendo dizer é que mesmo que o cara lá não esteja nem aí por ser um sacana, não fique na dúvida e faça o que for melhor pra sua consciência, porque como eu disse, eu sei que você quer essa explicação.

Ela estava pensativa, considerando seriamente o que eu estava dizendo. Essa é a hora que eu fico meio mal, porque fiz parecer que estava tentando convencê-la do meu argumento a qualquer custo, então afrouxei meu conselho.

— Agora se você não fizer mesmo questão de saber os motivos que fez o canalha te trair, acho que não tem nada de errado você deixar isso quieto mesmo.
— Todo mundo sabe os motivos… - Mariana resmungou bem baixinho, desabafando, mas sem muita coragem de se responsabilizar pelo que disse e levar adiante essa conversa.
— Ah sabe? – mas eu não deixei isso passar em branco – E quais são?
— Ele não estava mais gostando de mim.
— Isso justifica pra você?
— Não… - ela não foi muito convincente – Mas deve justificar pra ele.
— Então, nesse caso, eu concordo com a Gabriela. Você não precisa ir atrás desse cara, principalmente se for pra se contentar com essa resposta. E de quebra, desiste da vida, minha filha, porque você ta se deixando levar pelo pensamento de que a culpa é sua por ter sido traída. Onde já se viu? Se ele não tava mais gostando de você, que fosse franco e terminasse o… O…

Eu estava tentando evitar a palavra maldita, mas a Mariana completou.

— Namoro.

Calafrios.

— Que seja.
— Nem começa, Isa. – Mariana odiava quando eu implicava com essa palavra.
— Eu não comecei.
— Mas ta aí, querendo começar. Eu sei que você não gosta que eu chame de namoro essas minhas relações…
__ Relâmpago? Realmente.
__ Viu só? Aff. - e ela se levantou, indo até a cozinha.
__ To errada por acaso? – perguntei à Gabriela.
__ Eu prefiro não opinar. - ela olhou pra cima, com um sorrisinho de concordância discreto no rosto.

Nesse aspecto, a Gabriela e eu somos bem mais parecidas. Temos bastante claro em nossa mente que não é porque ficamos com um rapaz por mais de uma vez que já devemos sair aceitando esses pedidos repentinos de namoro. Alguns caras não têm muita noção da responsabilidade que esse compromisso implica e saem por aí, pedindo toda mulher que aparece pra namorar. A Mariana sempre cai, tadinha. Como ela não é muito de sair, sua lista de namorados não é tão enorme quanto poderia ser, mas sempre que ela sai e encanta um novo rapaz, esse rapaz sempre acaba a pedindo em namoro. Acho tão injusto com ela, porque eu sei que ela acaba se iludindo com esses… Sei nem se posso chamá-los de "aproveitadores", por que vai saber se eles também não se iludem e acham que esses pedidos precoces vão dar em alguma coisa? O problema é que eles sempre terminam o suposto relacionamento de um jeito mais escroto que o outro, talvez pela curta duração eles acham que estão permitidos a serem babacas.

— Há quanto tempo você não passa um pano nesse chão? – Gabriela soltou seu primeiro balbucio de incômodo.
— Não sei. Uns dias…
— Ta mais pra "umas semanas". – ela se levantou – Comprou novos panos de chão? Eu fico boba, porque até seus panos são imundos.
— Credo, Gabi. - me levantei, rindo do sermão – Comprei sim.
— Ótimo. Cadê?


Este texto é administrado por: Sabrina Queiroz
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