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O Carreiro
Vanderlei Antônio de Araújo


   Ultimamente, ele vinha sentindo uns zumbidos que o deixava surdo por alguns minutos. Pensou que fosse passar com o tempo. No entanto, aqueles episódios de surdez e zumbidos foram se tornando cada vez mais freqüentes e demorados. E, pelo fato de não sentir dor durante os ataques de surdez; continuar ativo e ouvindo bem na maior parte do tempo, não se preocupou nem mesmo com o fato de que, por alguns ângulos, não conseguia mais distinguir os sons tão claramente como antes.
   Um dia, quando saiu de casa levando uma carga de lenha para entregar na cidade, notou que o carro de boi rodava em silêncio. Arriou a cabeça para a direita, aprumou o ouvido e nem um ruído sequer chegava a ele. Sobressaltou-se. Firmou a cabeça à espera de algum som. Nada. O carro de boi não cantava. Nem um chiado. Nem um barulho. Para sufocar a aflição que crescia dentro de si procurou comandar os pensamentos na tentativa de entender a razão do carro não está cantando.
   Conhecia todas sua variação sonora, por isso, buscou naquele momento, uma primeira explicação para o que estava acontecendo, mas não encontrou nenhuma. Tudo que o carro de boi precisa para cantar ele fez. O segundo pensamento foi de que estivesse surdo. Gelou só em pensar nisso. Limpou os ouvidos com o dedo mínimo e afastou rapidamente, aquela idéia maluca da cabeça. Tentou ouvir o carro, novamente. Nada. Não havia nenhum som.
   Sobressaltou-se ao reconhecer que tudo era muito estranho e então, toda a segurança em si, falhou. Instintivamente, olhou para o guia buscando tranqüilizar-se, mas notou que ele estava calmo. E para ter certeza lhe perguntou se o carro estava cantando. O guia não entendeu o porquê da pergunta, mas fez sinal que sim com a cabeça, trazendo-lhe a inquietante certeza de que estava surdo.
   Uma onda de desgosto o inundou. Desesperado pôs-se a imaginar sua vida de carreiro sem ouvir o canto do carro. Nunca mais ia se deliciar daquele som que tanto apreciava, e quando entrasse na cidade não ouviria mais os aplausos das pessoas. Surdo como uma porta, a sua vida de carreiro não teria mais sentido. Procurando disfarces alegres para encobri sua tristeza pôs-se a lembrar da última vez que entrou na cidade. Naquele dia quando o carro de boi passou pela rua, as pessoas correram para as portas das casas, sorriram e acenaram para ele, um sinal de que estavam gostando do canto. O carro cantava que era uma beleza. E ao ver as pessoas saírem de suas casas, atraídas pelo canto do carro, tão emocionado ficou que não se conteve e gritou:
- Chora carro!
   Enquanto recordava entrou na cidade. Ventava e uma poeira fina ergueu-se das rodas e espalhou-se sobre as ruas. Depois de passar em frente a um terreno baldio entrou na rua à direita; subiu pela rua principal e ao longo de todo o trajeto, homens e mulheres paravam para ouvir o seu carro cantar. Na frente do açougue várias pessoas se calaram. Ficaram mudas só escutando o canto do carro.
Ao passo lento dos bois o carro avançava, as pessoas acenando, manifestando sem reservas seu prazer diante daquele bonito espetáculo. Até as crianças fizeram sinais de que gostavam. Olhou em volta e viu que mais pessoas saiam das suas casas só para ver e ouvir o carro cantar.
   Enquanto isso,ele não ouvia nada. Nenhum aplauso ou elogio chegava a seus ouvidos. Dos seus olhos brotaram lágrimas silenciosas, enquanto um vago sorriso ao mesmo tempo de tristeza e alegria iluminava, lentamente, seu rosto. Só ele sabia da sua surdez. Virou-se para todos os lados, levantou a mão e saudou as pessoas. Tão orgulhoso ficou que não se conteve, encheu o peito de ar e soltou sua voz que ecoou pelas ruas da cidade:
- Chora carro!



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