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PEDRO PANTINHA.
PEDRO PANTINHA.
João Justiniano da Fonseca



Pedro Pantinha acaba de visitar a cidade natal e ver seu povo. Rodelas, sua terra, não essa atual, ocupada por pessoas estranhas, as que eram do velho chão e as que vieram de fora, todas estranhas em uma nova cidade, construída, segundo diz a CHESF em sua fofa fantasia política, planejadamente, sem defeitos, sem falhas técnicas. Uma nova cidade onde a luz elétrica substituiu o velho fifó de seu tempo de criança, onde a água encanada tomou o lugar da lata na cabeça enchendo os velhos e saudosos potes de barro, dos quais o líquido subia em canecas de flandre, agora trocadas na torneira que a repuxa em jorro das entranhas da parede. Uma nova cidade, onde já não há lavadeiras no rio, um bandão de roupa de todas as cores espalhado ao sol, mas cada mulher na sua casa curva-se sobre uma lavanderia ora de placas de cimento ora de louça, quando não ocorre que apenas aperte um botão de máquina. Uma cidade nova, sem a fossa antiga, mudada no esgoto, vindo a simpática casinha do fundo do quintal para o corpo da residência feita em quarto de banho, no mínimo em banheiro.
Não esta nova cidade, assim sofisticada, mas, a velha, a sua, aquela em que viveu a infância e a adolescência, a que está debaixo das águas da Barragem de Itaparica e no fundo de seu coração. Ela própria, a amiga, a querida, a boníssima terra da gente, admiravelmente amada, sua de sangue e coração. Visitou-a agorinha, acaba de chegar de lá. E viu seu povo, todo o seu querido povo, o de antigamente, que, tomando conhecimento da presença do velho conterrâneo, começou a se aproximar um a um, até estarem todas as pessoas, todos os amigos ao seu lado, no centro da rua, bem no centro, onde se colocara. A velha rua, a de sua infância, única do antigo povoado, nem vila ainda, povoado somente. Ponto de referência, a Igreja de São João Batista, ereta de olho para a correnteza do rio, aliás, para o alto do rio, para as nascentes.
Para baixo, a povoação dos brancos, começando no convento de taipa dos capuchos que mais adiante se passou aos jesuítas, muito comprido e baixinho, calçadão alto para proteger das enchentes, terminando pela casa da tia Alexandra, colada parede-meia à da vovó Fumina. Isso, do lado esquerdo da rua, o seu lado, o mais próximo do coração, onde estava também o sobradinho da escola Felipe dos Santos. Do outro lado, não se lembra com segurança onde começava e terminava a rua. Parece que tinha início na casa de Florentino e fim na casa do velho Pantinha, seu bisavô e xará.
Para cima, no sentido da correnteza (não se dizia Norte ou Sul, Leste ou Oeste - era para cima e para baixo, para o lado do mato, para o lado do rio, sempre a orientação indicada pelo Velho Chico e pelo catingão do bode). Para cima a aldeia dos Índios Tuxá da Rodela, que nos tempos remotos, digo nos tempos da colonização eram botocudos e, porque o chefe, guerreiro e herói na guerra contra os holandeses, usava, pendente do pescoço, como troféu de guerra, a rodela do joelho do inimigo morto em combate, de Rodela lhe chamou o branco, a ele, o cacique, e, por extensão a comunidade, depois a terra onde habitavam. Com o que esta perdeu o nome de nascença – Nação Corumbabá, na era nova afinal recuperado, a seguir mudado pelos descendentes em Nação Tuxá. Esse cognome - Índio da Rodela oferecido ao guerreiro, veio feito em nome próprio, primeiro à Missão - Missão dos Rodela iluminada, no início da colonização, pela cruz dos capuchinhos franceses, em seguida pelos capuchos italianos e afinal pela grandeza espiritual dos jesuítas. Acabou se fixando como nome designativo da povoação fundada pelos vaqueiros de Garcia D'Ávila e seus rendeiros, que no correr de três séculos e quase meio cresceu em pequena cidade.
Para o lado do mato, os restos da antiga senzala. Já não o escravo, mas o descendente no aglomerado ao qual em seu tempo de menino se dizia Rua dos Pretos, com a particularidade de que preto mesmo, preto de sangue puramente africano parece que não havia, ou se houvesse, seria coisa rara, razão pela qual o aglomerado, tempos adiante seria denominado de - Rua dos Raposos e mais adiante, dizem que por astúcia do vereador Antônio de Seu Né, para angariar simpatia, - Rua dos Morenos.
Vaqueiro é vaqueiro, gente de natureza bravia, violenta, osso duro de roer. Os vaqueiros de Garcia D'Ávila, sem mulheres brancas, muitos que não eram casados e muitos que sendo casados não levaram as esposas - e não haveriam mesmo de levar a família para a aventura das brenhas rodelo-botocudo-catingueiras -, se arrumaram com as pretas suas escravas, mais dóceis que as índias, sobretudo mais submissas. E vem o cruzado filho, mulato e mulata que mais tarde, ainda casando entre si, não deixava de reservar-se o broto da fêmea para a reprodução do branco, com o qual, alguma casaria, gerando a família nobre e a pobre, esta, de fato a maioria na localidade.
Pois bem, Pedro Pantinha colocou-se no centro da rua, virado para cima, no sentido do rio e foi andando pela aldeia. À proporção que andava, chegava gente para o encontro, para o abraço. Não vinham somente vivos, vinham os mortos também, estes, por sinal, reconhecidos, enquanto muitos daqueles não identificados. Os mortos índios, morenos e brancos. Todos se aproximavam. Abraçou o índio Rufino primeiro, o índio João Leonardo em seguida, a índia Libânia, Zé Brune, Antônio Brune, Zé Marcelino, Antônio Marcelino, mestre Jerônimo, mestre Silvério, Balbina, José Ribeiro, Biana, Basílio, a índia Maria Brune, depois o Cicinho, miudinho, sorrindo, sempre sorrindo, o sineiro Livínio, D. Idalina que se apresentava, não entendia porque, em uma cama, transportada por Fausta e alguém que não reconhecia. E Cesário, mestre Elias, mestre João Freire. Lucas Almeida, Quilau, Eustáquio e João Rezende, Chico Rezende, Manoel Rosas, o velho Néu. Não dá para relacionar todos, seria muito longo e enfadonho para alguém que acaso deseje ler esse relato, sobretudo para os que não conheceram a terra. Uma pessoa não poderia ficar sem menção - a índia Maria Barroso, cheia de cana à frente de todos, abraçando e beijando, chamando "Seu Pedrinho", “seu Pedrinho”, “seu Pedrinho”. Seus pais não apareciam. Nem mãe Rosa, figura extraordinária, fixada na vida dos amigos como um coração iluminado e sem tamanho. Nem a doce professora Dulcina, uma eternidade de amor e dedicação. Buscava-os vãmente. Talvez não se mostrassem porque estavam integrados a si espiritualmente. Andava de braços abertos, de coração aos pulos, como se quisesse sair da caixa torácica para entregar-se a todos, a gritar repetidamente: minha terra, minha terra! Minha gente!
As casas estavam todas no lugar - a povoação inteira como a conheceu e memorizou ao tempo de menino. De um lado o rio, muito cheio, dando a sensação que em nível muito superior ao das casas. Do outro lado, também em nível mais alto e grandão, indo até onde a vista não alcançava, o lago formado pela Barragem de Itaparica. A povoação - era a antiga, a de sua infância já disse –, uma pequenina ilha lá embaixo, rodeada da imensidão oceânica diluvional, formada pelo rio e as águas da barragem, que pareciam sustentar-se no alto por alguma parede invisível, pela palavra de Deus.
As pessoas vivas, estas vinham do lado do mato pisando sobre as águas represadas, andando sobre estas como o Cristo no Lago de Genezaré. Era muita gente, sem que, entretanto, reconhecesse todos. Vinham todos de manso, pisavam de leve sobre as águas, como se nestas quisessem esconder-se do passado, flutuavam, uns vindo, outros indo para a nova cidade, lá fora, além do alto do Sabará, nas areias dos Grossos e Marcelinos. As mortas desciam dos céus.
Pedro Pantinha pasmado com o descer celestial e o ir e vir flutuante, todos muito alegres e felizes nesse reencontro sagrado, nessa reencarnação que unia os mortos e os vivos sem ressalva, sem divergência entre índios, caboclos e brancos, sem a desavença entre políticos ontem irmãos, hoje inimigos.
Para comemorar o encontro, tomou de um copo, no qual pôs um pouco de água que se fez em vinho. Fechou-o com a palma da mão esquerda e sacolejou de cima para baixo, de baixo para cima. Estava cheio. Convidou a todos e passou a servi-los. Todas as pessoas com o seu copo enchia-os daquela mesma quantidade que estava no seu, sem que esse se esvaziasse. Era a multiplicação que só o Cristo poderia realizar e, sem dúvida Ele mesmo o fazia naquele momento solene tomando a sua pessoa como instrumento. Seria isso? O certo é que o vinho se multiplicou e Pedro Pantinha de copo na mão, e todos de copo na mão, brindaram, ele falando de coisas do passado. Dos pais de todos, dos avós, da terra, da história. No final do brinde todos choravam, certamente de alegria, de felicidade. E se despediram voando sobre o lago e sobre a nova cidade, como numa bênção que lhe oferecesse a comum complacência e o autorizo, para a felicidade das novas gentes. No vôo, afinal cada um tomou o seu rumo, e adeus, para a eternidade...


Biografia:
João Justiniano da Fonseca, Rodelas, Bahia,30-061920. Escritor, poeta. E só,
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