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Arnaldo
J. Miguel

Arnaldo
Quando soube que o Arnaldo havia quebrado os braços, corri para sua casa. Arnaldo é um amigão, daqueles de todas as horas, para todos os fins. Nos conhecemos desde crianças. Ele era aquele garoto grandão do condomínio, que enfiava a porrada em todo mundo; eu era o menino magricela, aquele que apanha de todo mundo. A cada três surras que o Arnaldo dava, uma era em mim. Mas aquilo era coisa de crianças. Na adolescência, Arnaldo era o garoto bonitão do bairro, que tinha uma bicicleta incrementada e namorava todas as meninas. Até a Aninha, a garota mais feia das vizinhanças, minha namorada, ficava com o Arnaldo, vez ou outra, quando ele não podia sair de casa e ela ia para lá.
Casei com a Aninha, mas o Arnaldo me ajudou a entender que a Aninha não era muito fiel. Alguns amigos diziam que eu deveria romper a amizade com o Arnaldo, mas eu vejo por outro ângulo. Sem a ajuda dele, eu continuaria casado e infeliz com a Ana. Hoje ela vive sua vida e eu a minha. Às vezes nos encontramos na casa do Arnaldo, mas nos tratamos como bons amigos.
Então, meu amigo sofreu um acidente. Algum infeliz derrubou um vaso de plantas de uma das janelas do meu prédio, exatamente sobre o Arnaldo, que passeava tranqüilamente na calçada. Bem a tempo, Arnaldo olhou para cima e colocou os braços para proteger o rosto. Resultado: fraturou os dois braços, perdeu vários dentes da frente e não está podendo falar. Faz sinais com a cabeça e por mímica, acabamos entendendo o que ele quer. Quando tomei conhecimento da notícia, fui visitá-lo. Cheguei a dar um suspiro de alívio ao vê-lo tão bem. Vários amigos estavam em seu apartamento, mas foi a mim que ele fez o pedido, que ficasse para ajudá-lo. Então fiquei.
O coitado não conseguia comer, beber, sentar, nem ir ao banheiro sozinho. Principalmente ir ao banheiro. Você consegue se imaginar com os dois braços engessados até acima dos ombros, quase urinando nas calças e não conseguindo fazer nada? Para ser sincero, dar comida na boca, pegar um copo d’água e colocar um canudo dentro, é fácil. Chato é ir com o cara no banheiro e segurar e balançar o Arnaldinho, como ele chama. Na primeira vez que me pediu que o ajudasse a ir ao banheiro, procurei por todo o apartamento alguma coisa, até que achei aquela luva de forno, para pegar travessas quentes, sei lá o nome daquele diacho. Mas demorei até achar e, quando voltei ao banheiro, ele já havia se urinado todo. Para ajudá-lo a se vestir, também tinha minhas dificuldades. Na hora dele colocar as cuecas, eu a prendia aberta entre duas cadeiras e ele se enfiava lá. Vou ficar encostando o rosto em perna cabeluda, nada! Teve uma vez em que eu estava usando a luva para pegar a travessa de feijão que acabara de aquecer no microondas, quando vi que ele queria ir ao banheiro. Na hora em que peguei o “Arnaldinho” com a luva, meu amigo deu um salto. A luva estava muito quente... Depois a coisa foi piorando. O sujeito no banheiro, sentado no vaso, pedindo que o ajudasse com o papel higiênico, indicando o rolo com o queixo e fazendo: “Ã... ã...”
Quando entendi o que ele queria, fiquei enjoado. Mas, estava ali para ajudar. Desenrolei um bom pedaço de papel e estiquei no chão. Expliquei a ele que deveria esfregar a bunda no papel, que seria a mesma coisa. Ele fez que não com a cabeça, mas não pôde resistir aos meus argumentos e uma pernada. Caiu sentado, bem em cima do papel. Aí, foi só arrastá-lo pelo chão do banheiro, puxando-o pelas pernas. Bem, para ser sincero, como era a primeira vez e eu ainda não tinha prática, o chão ficou meio lambuzado também. Quando peguei mais traquejo, depois de esfregar a bunda dele no papel, sem que ele percebesse, eu o esfregava naqueles borrões que ficam no chão e este ficava limpinho. Só para continuar sendo sincero, devo confessar que o apartamento estava com um fedor miserável, mas acho que ele não se incomodava. Bem, eu me incomodo, por isso usava uma máscara de pintor. Ele não podia usar a máscara sobre a boca, por causa dos pontos e da inchação, por isso acho que ele não se incomodava com o fedor da casa.
Digo da casa, porque às vezes ele estava tão sujo que, ao arrastá-lo sobre o papel higiênico no chão, dava uma esticadinha até a varanda, passando pelo tapete da sala, pelo piso de cimento da área. Tem uma parte da varanda, onde o sol bate pela manhã, que ao meio-dia o piso está bem quente. Ele gostava tanto que eu o arrastasse até lá, que seus olhos ficavam cheios d’água de gratidão. Eu bem que tentei levá-lo até o elevador, para dar uma voltinha lá no playground, mas ele sempre se enroscava na porta da sala e não havia modo de fazê-lo passar para fora do apartamento.
Claro que depois da sessão de higiene no papel (e fora dele) ambos ficávamos muito cansados. O Arnaldo pesa quase noventa quilos! Puxar pelas pernas um sujeito tão pesado, arrastando a sua bunda cabeluda no chão, não é nada fácil. Cabeluda? Bem, para falar a verdade, ele está com a bunda lisinha agora. Acho que foi o atrito com o piso quente. Dia desses, tentei arrastá-lo puxando pelas orelhas, mas é bem mais difícil e eu me cansei logo.
Estava fazendo muito calor e achei melhor depilar o meu amigo, para diminuir sua sensação de calor. Mesmo com os braços engessados, resistiu tanto que tive que amarrá-lo a uma cadeira para poder depilar seu peito. Aliás, bem lembrado! Assim que puder, pretendo patentear a minha invenção: as Folhas de Depilação Arnaldinho. É o seguinte, eu besunto aquelas folhas de papel laminado com superbonder, colo nos cabelos do peito do cliente e depois é só puxar. É quase indolor.
Para que ele não ficasse sem banho, eu também tive que bolar um aparelho. Comprei uma vara de bambu e fiz diversos furos. Enchia a banheira, colocava o bambu lá dentro até encher os furos. Depois era só bater com o bambu no Arnaldo. Colocava sabão na água da banheira, mergulhava o bambu de novo, batia novamente no meu amigo e ele estava ensaboado. Depois, era só enxaguar outra vez. Ele compreendia a minha questão de não tocar suas partes com as mãos, porque ele é homem também. Então, durante o banho, Arnaldo chorava de felicidade por ter um amigo tão prestativo.
A alimentação do meu amigo também ficou por minha conta, claro. Eu faço um tutu de feijão maravilhoso. Então, o Arnaldo comia feijão com farinha todos os dias. Ás vezes, quando eu percebia que ele estava com prisão de ventre, dissolvia uma lata de azeite no feijão e ele se soltava todo. Mas eu desconfiei que o cara andava conseguindo comida em algum lugar. O feijão é um alimento que passa compactado pelos intestinos, limpando tudo, empurrando os gases para fora. Mas os flatos de Arnaldo tinham um fedor horroroso de ovo de urubu estragado. Nossa! Que catinga terrível! Só para me certificar de que não andava comendo nada diferente, fazia um quilo de feijão por refeição e dava tudinho para o meu amigo.
Arnaldo é um camarada muito brincalhão. Então, para que pudéssemos nos divertir, na hora da refeição, eu enchia uma saladeira de feijão com farinha, descarregava meia lata de azeite ou óleo de soja, ou óleo de fígado de bacalhau (aí eu misturava uma garrafa), que é bom para os ossos e perguntava:
- Adivinha o que tem para o almoço?
Ele arregalava seus olhos como se estivesse sendo examinado por um proctologista, balançava vigorosamente a cabeça de um lado para outro e meio que grunhia:
- Nã-nã-nã-nã...
Isso queria dizer:
- Não meu fiel amigo! Eu não faço a menor idéia do que seja a maravilhosa refeição que estou prestes a devorar com toda a minha gratidão...
Sei que ele estava pensando na gratidão, pois associei suas lágrimas à essa palavra. Depois de comer um quilo de feijão em cada refeição, o estômago de Arnaldo ficava dilatado. Acho que o feijão fermentava, formava tantos gases que a barriga dele ficava dura e inchada. Eu esperava cerca de uma hora ou duas, para ver se ele soltava seus gases sozinho. Quando não conseguia, eu amarrava suas pernas e sentava sobre a sua barriga, violentamente. Ele dava uma gemida e soltava todos os gases de uma só vez. Às vezes, quase sempre, saía mais alguma coisa também, mas eu não esperava para conferir, porque a catinga era tão forte que chegava a arder os olhos dele. Normalmente, eu saía do quarto, fechava bem a porta e esperava meia hora até que o fedor dissipasse.
É verdade que outros amigos vinham visitar o Arnaldo, mas sempre o escondia dentro da banheira e dizia aos visitantes que ele fôra fazer algum exame no hospital, ou estava na fisioterapia. Mês passado a mãe dele veio. Elogiou muito a minha atitude solícita de estar ajudando de maneira tão desinteressada um amigo.
Quando precisava sair, para as compras, por exemplo, ficava com medo que meu amigo se machucasse e amarrava suas pernas no lustre da sala. Colocava um facão preso com chiclete no lustre e avisava a ele que, se balançasse muito, o facão pode cair e ZÁP! Decapitar o Arnaldinho. Meu amigo ficava lá, imóvel, não importava quantas horas eu demorasse. Um dia desses, no mercado, encontrei a noiva dele. Eu lhe disse que estava aproveitando a ida do Arnaldo ao fisioterapeuta para fazer umas compras com o cartão dele. Aliás, nem precisei perguntar a senha, porque é a sua data de aniversário.
Conversa vai, conversa vem, ela disse que precisava me agradecer de uma forma especial, toda a atenção dedicada ao Arnaldo e acabamos em um motel. Passamos a noite juntos. Foi maravilhoso... Ela é demais! Quando lembrei do Arnaldo, já haviam se passado dezoito horas, mas ele estava lá, impávido e faminto!
Para compensá-lo, dei-lhe o dobro de feijão, enquanto contava a maneira delicada que a Priscila encontrou de me agradecer. E ele só:
- Nã-nã-nã...
Que tanto queria dizer:
- Não, meu amigo! Não tenho palavras para agradecer o que está fazendo por mim e pela minha noiva, que está tão solitária...
Mas também queria dizer:
- Não, meu amigo! Não demore a colocar uma colher desse maravilhoso feijão na minha boca!
Os médicos prescreveram apenas dois meses de gesso para Arnaldo. Por minha conta, prorroguei o prazo para seis meses, de início, mas achei que ele precisava de um pouco mais de repouso e continuei tratando dele. Entretanto, no oitavo mês, algo aconteceu. Arnaldo agora estava gordo, bem barrigudo. Feijão engorda, sabiam? Eu estava voltando das compras, quando vi um carro da polícia defronte ao prédio. Desconfiado, fui até um telefone e liguei para o apartamento do Arnaldo. Uma voz estranha atendeu e desliguei.
      Entristecido, pensei:
- É! Ele não precisa mais da minha ajuda.
Fui para a rodoviária e comprei uma passagem para fora da cidade. Algum tempo depois, empregado em uma fazenda, o Arnaldo me encontrou. Não sei como conseguiu. Me amarrou em uma cama, deixando apenas uma das mãos livres, colocou um laptop ao meu lado e mandou que escrevesse porque o tratei daquele jeito. É o que estou fazendo nesse momento, enquanto sinto um cheiro de feijão vindo da cozinha...
J. Miguel (16 Jan 2005)


Biografia:
"Fazer chorar é fácil; desafio mesmo é fazer rir."
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