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Noite Escura
Martinho do Rio

Resumo:
A senhora olhou para a grande resma de pranchas de cortiça que se estendia escura e alta à sua frente, estendeu dois dedos e apalpou com delicadeza a superfície rugosa duma prancha. Depois elevou a mão e limpou com a mesma delicadeza a testa perlada de pequenas gotas de suor.

Martinho do Rio

N O I T E   E S C U R A

- Então estamos combinados, você fica aqui até ao fim de semana. Tem tudo o que precisa?
- Sim minha senhora.
A senhora olhou para a grande resma de pranchas de cortiça que se estendia escura e alta à sua frente, estendeu dois dedos e apalpou com delicadeza a superfície rugosa duma prancha. Depois elevou a mão e limpou com a mesma delicadeza a testa perlada de pequenas gotas de suor.
- Tenha cuidado Chico, os Brincas andam por aí, roubaram uma herdade muito perto daqui.
- Esteja descansada minha senhora, eu tenho aqui um bom remédio para eles se aparecerem.
Apontou para a caçadeira de dois canos que estava encostada à barraca de madeira e sorriu, mostrando uma boca em que lhe faltavam os dois incisivos da frente.
A senhora esboçou um sorriso meio desdenhoso, talvez pensasse na falta de eficiência da velha gertrudes, mas ele ia mostrar que não era bem assim, que não falharia quando precisasse dela. Dirigiu-se à barraca e agarrou na espingarda, introduziu-lhe um cartucho e apontou para o ar. Fez fogo, o estrondo do tiro assustou um bando de grandes pássaros brancos que esvoaçaram espalhando-se como acendalhas de fogo de artificio pelo céu azul.
- Zagalotes. É o que espera os Brincas se aparecerem.
Ela piscou os olhos e um leve tremor agitou-lhe o músculo da comissura esquerda da boca.
- Cuidado Chico…veja lá não fira ninguém.
- Esteja descansada minha senhora, eu só a tenho para assustar.
Ela suspirou, deitou um último olhar à grande resma de pranchas de cortiça e entrou no automóvel. O motor rugiu o carro balançou com o esforço para ganhar velocidade e desapareceu entre as árvores, deixando atrás de si uma nuvem de poeira que caiu lentamente sobre a tremocilha seca que crescia no meio dos sobreiros.
- Com este calor e com o raio da seca que está, qualquer dia isto tudo arde. Eu já avisei a senhora, mas ela não me liga…
Levou a mão suja de pó à testa coberta de suor e limpou-a, depois colocou-a em pala sobre os olhos e procurou o cão
- Onde raio é que ele está …Travassos! Anda cá!
Assobiou e um cão comprido, peludo, de pernas altas e andar bamboleante apareceu entre os sobreiros; soltou um latido e correu com o rabo a abanar até se ajoelhar aos pés do Chico dos porcos.
- Grande medroso ! Fugiste mal ouviste o tiro…quando é que aprendes que um barulho dum tiro não faz mal a ninguém…
O cão lambeu-lhe uma bota e o Chico dos porcos afagou-lhe carinhosamente a cabeça. Tinham-lhe dado o cão ainda cachorrinho e ele criara-o nos últimos três anos, afeiçoara-se-lhe embora fosse feio; era um cruzamento entre um galgo e um labrador e o Chico já não podia passar sem ele, embora cada vez que ouvisse um tiro desaparecesse a ganir no meio das árvores. Levantou a cabeça e sentiu qualquer coisa no ar, levou o indicador à boca, molhou-o com a saliva e apontou-o para o céu. Esteve assim uns segundos, quieto, a olhar o dedo, enquanto lá no alto grandes massas de nuvens cinzentas corriam em bando formando uma muralha que se internava cada vez mais pela terra adentro.
- O vento está a mudar, ainda não sabe é para que lado há-de ir…- olhou para a resma de cortiça - , a noite vai ser escura e os Brincas não brincam em serviço.
Dirigiu-se à barraca e encostou a espingarda, tirou um maço de tabaco amarrotado do bolso e puxou um cigarro que colocou nos lábios, acendeu-o e sentou-se num banco de madeira que estava encostado a um velho sobreiro de copa larga e frondosa. Aspirou o fumo com prazer enquanto brincava com um mata-moscas virando-o dum lado para o outro como se fosse um leque.
- Eles que apareçam e vão ver o que lhes acontece.
Puxou mais uma fumaça e apagou o cigarro com o pé encostando-se ao tronco da árvore onde procurou uma posição mais confortável. Colocou o boné de pala verde com o emblema do Sporting sobre os olhos e durante alguns segundos pareceu dormitar. De repente, num gesto rápido e brusco, fez cair o mata-moscas sobre a coxa.
- Apanhei-te !
Levantou-se com a mosca bem segura entre os dedos e caminhou até à barraca. Lá dentro, sobre uma mesa de madeira já velha e escura, estava uma caixa de plástico branco no meio dos mais variados e desencontrados objectos. Abriu a caixa e deixou cair o pequeno cadáver da mosca lá dentro. Depois com o indicador começou a contar as moscas mortas que se encontravam dentro da caixa.
- Uma, duas, três…com esta deve fazer cinquenta. Quatro, cinco, por este andar ainda mato todas as moscas do Alentejo.
Um sorriso bailava-lhe na boca enquanto contava as moscas com o indicador espetado. Depois satisfeito fechou a caixa. Cá fora o sol poente desaparecia atrás duma massa de nuvens negras.
- Vai ser uma noite muito escura Travassos.
Resolveu preparar o jantar. Acendeu o fogareiro onde aqueceu a sopa e abriu duas latas de atum em conserva. Depois, com a sopa já aquecida e com as latas de atum e um grande pão escuro na mão, sentou-se debaixo do sobreiro e começou lentamente a comer, enquanto contemplava com um ar apreensivo a massa negra de nuvens a esconder progressivamente os últimos raios do sol poente.
- É como te digo Travassos, vai ser uma noite muito escura.
Com a navalha cortou o grande pão escuro ás fatias que foi barrando lentamente com o atum misturado com maionese.
- Sabes Travassos, quando era novo e tomava conta dos porcos, sentia-me menos só do que me sinto agora. Isto aqui é um deserto, até parece que Deus se esqueceu de povoar o Alentejo.
O cão olhou para ele e agitou a cauda, dos seus olhos meigos surgiu um ligeiro brilho que por instantes lhe iluminou o olhar.
- Anda Travassos, vamos tratar do teu jantar.
Levantou-se e dirigiu-se à barraca seguido pelo cão. O tempo foi passando e a noite caiu escura como o breu, nem uma estrela iluminava o céu, a lua tinha desaparecido debaixo do enorme manto de nuvens e os sons que costumavam povoar a noite no campo ficaram silenciosos. Parecia que todos os animais estavam escondidos, temendo a tempestade que se aproximava. Chico dos porcos para afastar o medo do grande silêncio abriu a rádio e uma música alegre inundou a noite.
- Eu até gosto desta música, não percebo é as palavras, há demasiada música estrangeira na rádio.
Sentado debaixo do grande sobreiro olhava a noite tentando perscrutar para além da escuridão. Á sua frente a grande resma de cortiça mal se divisava nos seus contornos e ás vezes, quando a olhava sem a fixar, tinha a sensação que um grande monstro pré-histórico estava ali poisado a dormir no chão. De repente uma gota grossa de chuva cai-lhe sobre o chapéu de pala verde fazendo um ruído seco e espalhando-se pela testa. Chico dos porcos sobressalta-se, levanta-se e olha para o céu. Através do halo de luz que o candeeiro de petróleo que estava poisado no chão ao seu lado emitia, viu grossas gotas de chuva a cair como berlindes sobre a terra seca.
- Isto vai ficar tudo molhado, o melhor é ir para dentro.
A chuva começa a cair grossa e enormes poças de lama começam a formar-se na terra seca, Chico dos porcos apressa o passo, as suas botas guincham à medida que avança espalhando a lama e quando chega perto da barraca qualquer coisa deteve-o; olha para a resma e franze as sobrancelhas.
- Está ali alguém Travassos. Sinto que está ali alguém.
O cão estava parado um pouco atrás de olhar fixo e orelhas espetadas. De súbito começa a rosnar, Chico estende o braço e agarra a espingarda, introduz-lhe dois cartuchos e com um passo calmo dirige-se à resma. O cão segue-o sem parar de rosnar, contorna a resma com cuidado, com a espingarda bem segura na mão, e com o olhar tenta penetrar a escuridão. O silêncio é absoluto, apenas interrompido pelo barulho das gotas de chuva a cair sobre a cortiça. Um medo fino percorre-lhe a espinha e a garganta seca quando tenta engolir. E se são os Brincas…ele é só um e os Brincas têm um bando de vários homens; dizem que deram uma sova no homem que guardava a cortiça numa herdade não muito longe dali. Chico dos porcos engole em seco mas não esmorece, a sua função é guardar a cortiça e pensa cumpri-la nem que para isso tenha que morrer. A palavra morrer provoca-lhe um mau estar e ele sente bem lá no fundo que não vale a pena morrer por um pedaço de cortiça. Um relâmpago repentinamente estoira no céu e, por segundos, Chico dos porcos divisa uma sombra entre as árvores. Aponta a espingarda e grita:
- Quem está aí ?
O silêncio responde à pergunta e Chico só ouve como resposta o barulho da chuva a bater na cortiça.
- Estava ali alguém...
Embrenha-se na mata com o cão atrás de si e com cuidado tenta descortinar para além das árvores e da escuridão quase total que a chuva a cair ainda carrega mais. Através da luz dos relâmpagos perscruta entre as árvores, mas a única coisa que vê são massas escuras e formas estranhas que o confundem ainda mais.
- Vamos embora, se alguém esteve aqui já se pirou.
Regressa à barraca sempre com o cão atrás de si que continua a rosnar baixinho, Chico dos porcos permanece atento, aquela pode ser uma noite ideal para roubar a cortiça, a chuva e a escuridão são aliadas naturais dos ladrões, nada melhor que uma noite escura carregada de chuva para esconder todas as malfeitorias. Dentro da barraca espera que o aguaceiro passe. Os trovões continuam a ribombar e a chuva continua a cair grossa, molhando a terra sedenta e seca. Sentado numa cadeira conta novamente as moscas mortas e o prazer de ver os pequenos cadáveres dentro do frasco fazem-no sorrir, enquanto um leve brilho de satisfação lhe perpassa pelo olhar.
- Se oferecessem um prémio por cada mosca morta…já viste Travassos, ficávamos ricos em pouco tempo.
O cão sentado aos seus pés olha para ele com a língua de fora.
- Eu já tenho aqui cinquenta moscas, até ao fim de semana quantas é que eu não mataria…
Olhou mais uma vez para o frasco e um breve lampejo de cobiça fez com que humedecesse os lábios com a língua.
- Era a nossa reforma Travassos. Já viste, tínhamos dinheiro suficiente para a velhice.
O cão olha para ele a arfar e dos seus olhos salta um leve brilho de compreensão. Chico dos porcos não nota, arruma o frasco num canto, vai até à porta e espreita lá para fora.
- A chuva parece que está a passar, vou até lá fora sentar-me um bocadinho.
Vai até ao banco que estava encostado junto ao sobreiro e limpa-o com um pano, depois senta-se e encosta a espingarda à árvore. Procura a posição mais confortável e fecha os olhos. Permanece assim longos minutos enquanto lá em cima as nuvens depois de terem despejado toda aquela bendita água sobre a terra, abrem finalmente um breve espaço mostrando quatro ou cinco estrelas a tremeluzirem como diamantes.
Repentinamente abre os olhos sobressaltado e agarra a espingarda, levanta-se e com ela na mão e percorre o breve espaço que o separa da resma de cortiça. O buraco entre as nuvens foi entretanto alargado e um raio de luar cai sobre a resma iluminando-a com uma luz de prata. Chico dos porcos olha-a atentamente e um breve sobressalto percorre-lhe olhar. Num dos cantos da grande resma faltam algumas pranchas. Alarmado olha à volta sempre com a arma aperrada e olhar atento, lentamente dirige-se ao sitio onde faltavam as pranchas, uma angústia sem nome percorre-o, sente que falhou e isso é para ele imperdoável. Toda a sua vida sempre cumpriu, nunca nenhum porco, ou outra coisa qualquer que estivesse à sua guarda, foi alguma vez roubada; e não era agora, quando estava prestes a entrar na reforma, que isso iria acontecer. Olha para a mata e amaldiçoa os Brincas, se foram eles que roubaram aquelas pranchas tinham-se que haver com ele. Chega ao local e percorre a resma com o olhar, faltavam umas quatro ou cinco pranchas e Chico dos porcos acha aquilo esquisito. Só isso…? Só roubaram isso… ? Olha para o chão e percebe o que aconteceu, uma prancha estava caída mais à frente e outra mais perto da orla da mata. O vento e a chuva tinham-nas arrastado para longe. Um suspiro de alivio percorre-lhe o corpo, junta as pranchas caídas num pequeno monte e regressa ao seu banco. O cão não tinha saído do seu lugar e recebe-o lambendo-lhe a bota.
- Não vieste comigo preguiçoso…
Senta-se e torna a fechar os olhos, desta vez adormece e sonha. E durante largos minutos o seu ressonar é o único som a quebrar o silêncio que envolve a mata.
- Acorda Chico ! Acorda Chico !
- Quem…O quê…
Chico dos porcos estremece no lugar, muda de posição e retoma o sono, e de novo o seu ressonar envolve o silêncio da mata.
- Acorda Chico ! Acorda Chico !
- Quê… Que se passa…
Desta vez abre um olho e de repente tem consciência que algo não está bem. Agarra na espingarda e põe-se de pé. O silêncio à sua volta é total. Ele observa com a espingarda aperrada, mas nada do que vê lhe parece anormal. A resma está no seu lugar e parece completa. Dá dois passos em frente e torna a observar. Á sua volta a quietude é total. Procura o cão mas não o vê.
- Travassos ! Travassos !- Grita ele.
Assobia, mas o cão não aparece, aí inquieta-se. Onde estará ele…torna a assobiar à medida que vai avançando na direcção da resma, contorna-a e dá a volta, a resma está completa, não lhe falta uma única prancha. Solta um suspiro, tivera muito medo que os Brincas se tivessem aproveitado do seu sono. Mas onde estará o raio do cão… dirige-se à barraca e procura no seu interior, o frasco das moscas está lá, o resto está todo lá, mas o cão não. Estranho. Onde estará metido o Travassos… nervoso volta a sentar-se no banco junto ao sobreiro. Olha para as horas, já é tarde, daqui a pouco começa a nascer o sol. Terão os Brincas levado o cão… se o fizeram terão de haver-se com ele. Agarra na espingarda e aperta-a contra o peito. Uma sensação de frio percorre-lhe o corpo e um sentimento de estranheza e de irrealidade mantém-no bem acordado. Sente a boca seca e resolve voltar à barraca, há lá uma pomada por estrear e Chico dos porcos sente que chegou a altura de abrir a garrafa. Encontra-a perdida no fundo da mesa, levanta-a à altura dos olhos e observa o liquido amarelado que enche a garrafa quase até ao gargalo. Sorri, se ao menos o Travassos estivesse aqui… para onde terá ido o maldito cão…saca a rolha e leva a garrafa aos lábios o liquido amarelado escorre-lhe pela garganta e ele solta um há ! de satisfação. Sente o calor reconfortante subir pelo corpo e com uma nova alma e com a garrafa na mão volta a sair da barraca. Senta-se de novo no banco e observa as estrelas, desta vez sem a camada cinzenta de nuvens a cobri-las, vai dando goles generosos na garrafa . " Travassos, que é feito de ti…para onde é que fugiste…" Uma lágrima escorre-lhe rebelde até á comissura do lábio e um soluço embarga-lhe a garganta. Chico dos porcos sente profundamente a falta do cão, o seu melhor e único amigo. "Onde estará ele…porque é que não aparece…" torna a fechar os olhos e encosta-se ao sobreiro, ao fim de alguns minutos o seu ressonar volta a ecoar pela mata.
- Chico acorda ! Acorda Chico !
Desta vez ele acorda sobressaltado e abre os olhos instantaneamente. À sua frente, a poucos metros de distância, está o vulto do cão.
- Travassos ! Voltaste…!
O cão começa a trotar na sua direcção, para a um metro de distância, senta-se sobre as patas traseiras e com uma voz clara responde-lhe :
- Claro que voltei, fui apenas dar uma volta.
Chico abre a boca de assombro.
- Tu…falas ? !
- Claro que falo. Tu é que nunca quiseste ouvir-me.
- Nunca te quis ouvir…
- Nunca. Quantas vezes eu falei e tu não me ouviste…
Chico dos porcos leva a garrafa à boca e dá um gole mais generoso, precisava de molhar bem a garganta, havia ali qualquer coisa que não estava certa.
- Os cães não falam, como é que eu te podia ouvir…
- Estás a ver…lá estás tu a negar que eu falo.
Chico dá mais dois goles e a garrafa fica apenas com meio palmo de liquido amarelado no fundo.
- Tu estás a falar Travassos. É… é um milagre…
Uma risada seca sai da boca do cão.
- Não há milagre nenhum, eu sempre falei, o problema é que vocês não nos ouvem.
Chico dos porcos sentia a cabeça a andar à roda, olhava para o Travassos e não acreditava no que via e ouvia. Era impossível que o cão falasse. Sempre lhe tinham dito que os animais não falavam. Desde pequenino que lhe tinham ensinado que o homem era o único ser vivo na Terra que tinha o dom da fala. Agora tinha o seu cão a desmentir tudo aquilo que lhe tinham ensinado, era demais para ele. Olhou para a garrafa e deu os últimos goles no liquido amarelado que restava no fundo da garrafa. Depois atirou-a para longe. O cão continuava sentado a olhar para ele com um brilho estranho a cruzar-lhe o olhar.
- Isto é impossível ! Tu não podes falar ! É contra tudo o que Deus nos ensinou ! Só os homens é que têm autorização para falar. Se Deus quisesse que os animais falassem, tinha-lhes dado uma voz.
- Mas eu tenho uma voz Chico - responde o cão -, ouve a minha voz e não sejas surdo a ela.
Chico dos porcos levanta-se e engatilha a espingarda. Sentia a cabeça à roda e o seu equilíbrio era instável mas, mesmo assim, aponta a arma à cabeça do cão.
- Está calado Travassos ! Tu não podes falar ! Deus não quer que tu fales ! É pecado !
O cão levanta-se e mostra os dentes.
- Não faças isso Chico. Vais-me matar só porque continuas surdo ?
Chico dos porcos sentia-se agoniado e via a imagem do cão já deformada.
- Não, eu não estou surdo. Tu é que és um pecado vivo e eu vou matar-te para não ofenderes mais a Deus.
Carrega no gatilho e uma chama amarela viva sai disparada do cano da espingarda. Quando o fumo se dissipou Chico dos porcos procura o cadáver do cão, mas não o encontra.
- Impossível ! A esta distância…
Mas, por mais que procurasse, não havia sinal do cadáver do cão. "Terei falhado…eu tinha-o bem na mira…" volta a sentar-se no banco, tira um lenço do bolso e limpa testa. " Eu queria matá-lo porque ele era um pecado contra Deus." Encosta a espingarda à árvore e fecha os olhos, o sono é tanto que em breve a cabeça descai-lhe para o peito e o seu ressonar volta a encher o silêncio da mata.
Acorda com o sol a bater-lhe em cheio na cara. Estremunhado abre os olhos e uma forte dor de cabeça obriga-o a fechá-los por alguns segundos. Quando se levanta, um sabor amargo percorre-lhe a boca e a memória da noite anterior aparece-lhe como se fosse um tiro. A angústia aperta-lhe o coração e imediatamente começa a chamar pelo cão:
- Travassos ! Travassos ! Onde estás?
O cão que estava deitado ao seu lado levanta-se, abana o rabo e vem pressuroso lamber-lhe as mãos.
- Estás vivo Travassos. Tive muito medo que te tivesse morto ontem à noite.
Afaga-lhe a cabeça, aperta-o contra o peito e acrescenta meio a rir:
- Que sonho mais louco, imagina que sonhei que tinhas voz e que estavas a falar comigo. Como se alguma vez um cão pudesse falar como se fosse uma pessoa.
Olha para a resma que continuava inteira e solitária e diz com alivio:
- Graças a Deus que até agora está tudo a correr bem.
Levanta-se e num passo lento começa a dirigir-se à barraca.
- Anda Travassos, vamos tratar do pequeno almoço.
Já perto da porta olha para o cão e, numa voz mais séria, acrescenta:
- Se Deus quisesse que os cães falassem tinha-lhes dado uma voz.
"Grande Burro" pensa o cão.










Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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