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A História de Amor de Inácio Cunha
Martinho do Rio

Resumo:
Inácio nascera no Ribatejo em Portugal numa herdade. A mãe trabalhava na cozinha da casa grande onde os donos da herdade viviam.

Martinho do Rio

A História de Amor de Inácio Cunha


- Inácio o que é que estás a fazer ?
- Estou a pôr este pardal no ninho. Ele caiu e ainda é muito pequenino.
A mãe saiu da cozinha veio até cá fora e deu com o Inácio a trepar uma árvore.
- Cuidado Inácio ! Essa árvore é muito alta !
- Não se preocupe mãe eu consigo chegar lá acima.
A árvore era alta, mas o Inácio era bom trepador e com a ajuda apenas duma mão -, na outra segurava o pardalito -, trepou como um macaco o tronco da árvore. Depois estendeu a mão em que segurava o pardalito e colocou-o com todo o cuidado no ninho. Sorriu feliz para a mãe e desceu com rapidez o grosso tronco da árvore. A mãe ainda apreensiva seguiu a descida do filho, temendo a todo o instante que ele escorregasse e caísse desamparado no chão. Quando ele chegou ao chão não se conteve mais e pregou-lhe um raspanete :
- Não tornes a fazer uma coisa dessas...ainda me dás cabo do coração !
O Inácio ouviu o ralhete da mãe de cabeça baixa, quando ela acabou de lhe ralhar levantou-a e retorquiu:
- Eu não podia deixar o pardal morrer de fome no chão...ou podia...?
Os olhos dele imploravam que ela lhe perdoasse. A mãe, que nunca conseguira resistir àqueles olhares implorativos -, o Inácio tinha uns olhos grandes, expressivos -, suspirou resignada :
- Está bem, fizeste o que devias. Mas da próxima vez usa um escadote.
Sentiu que não era bem aquilo que lhe queria dizer. O que ela pretendia era que ele não subisse mais ás árvores. Há já alguns anos que vivia sozinha com ele, o marido morrera ainda era ele bebé. Elvira punha todo o seu empenho e todo o seu amor na criação daquele único filho que tanto amava. Só que Inácio tinha um espirito rebelde e aventureiro e gostava de explorar o mundo que o rodeava. Ele e o seu amigo Tozé davam grandes passeios pela herdade, ou então exploravam o grande canavial abrindo caminho por entre as canas com um pau, fingindo que era um machete, como viam os exploradores fazerem na televisão ou nos filmes de aventura no cinema. Também iam pescar para o rio onde ficavam horas estendidos ao sol à espera que o peixe picasse. Mas o que eles mais gostavam de assistir era a chegada dos toiros ao pôr do sol no meio duma grande nuvem de poeira, com os raios do sol poente alaranjado a fazerem brilhar como pepitas doiradas os pequenos grãos de poeira, dando a impressão esquisita que a manada vinha envolvida numa grande cortina de oiro puro. Inácio gostava muito de ver os campinos a cavalo, faziam-no sonhar que um dia ele também seria um deles, correndo através da lezíria com uma vara pontiaguda atrás dum toiro. Mas o seu sonho secreto era o toureio, sobretudo o toureio a cavalo. Nunca o contara a ninguém, nem mesmo ao seu grande amigo Tozé.
Inácio nascera no Ribatejo numa herdade. A mãe trabalhava na cozinha da casa grande onde os donos da herdade viviam. Inácio frequentava a escola que tinha sido construída no cabeço do monte que ficava mesmo por detrás da casa grande. Tinha sido construída de propósito para alfabetizar os filhos dos trabalhadores. Chegara lá um pouco tarde, mais velho do que todas as outras crianças que frequentavam a escola. Mas ele não se importara muito com isso, e como era aplicado, fizera os dois primeiros anos da instrução primária num só ano. Agora frequentava a terceira classe e preparava-se com afinco para a atacar a quarta e acabar a instrução primária. O professor gostava do seu empenho e apontava-o como exemplo aos colegas. A maioria tinha inveja dele, mas, como era mais velho e mais alto, temiam-no e deixavam-no em paz. Limitavam-se a dizer mal e até arranjaram-lhe uma alcunha : “O Paquiderme, “ por ser gordo e pesado. Embora a maioria daqueles que o alcunharam de “Paquiderme” não fizesse a mínima ideia do significado da palavra. Ele não se importou muito com isso, encolhia os ombros e continuava tão aplicado como antes.
O tempo foi passando e Inácio acabou a quarta classe. Entrou na adolescência, a voz engrossou e a barba também começou a despontar. Entrara na puberdade e começou a olhar para as raparigas duma maneira diferente. Com o diploma da instrução primária na mão resolveu começar a trabalhar. O sonho de ser toureiro a cavalo não o abandonara, mas, por agora, limitar-se-ia a trabalhar na herdade. A mãe fez as suas diligências e conseguiu que o filho começasse a trabalhar como ajudante de guarda-livros. O seu principal trabalho era o de copista. Com a sua letra bonita e bem desenhada, tantas vezes elogiada pelo professor na escola, copiava para um grande caderno de capa dura o trabalho concluído pelo contabilista. Era um trabalho que Inácio adorava, pois era constantemente elogiado pela perfeição da sua letra e pela aplicação que punha no seu trabalho. A mãe sentia-se orgulhosa perante os elogios que ouvia, de tal maneira estava satisfeita, que passou a cantarolar no trabalho. Era uma alegria ouvi-la cantar o dia inteiro na cozinha da casa grande.
Uma tarde, uma rapariga bonita que Inácio conhecia mal, entrou no escritório onde ele trabalhava. Era a filha do feitor da herdade, que estava prometida em casamento ao filho do juiz da comarca. Inácio reparou como ela era bonita e logo o seu coração começou a palpitar mais depressa.
- Venho entregar estes papeis que o meu pai pediu para serem entregues aqui.
Disse ela estendendo ao Inácio uma resma de papeis que trazia na mão.
Ele agarrou neles e arrumou-os sobre a secretária. Ela lançou-lhe um breve olhar e saiu batendo com a porta.
Ela não reparou porque mal se apercebeu da presença dele, mas ele continuava corado depois dela sair. Estava impressionado e o seu coração não havia maneira de acalmar. Inácio não estava acostumado a lidar com raparigas iguais aquela, eram demasiado finas e educadas para ele sequer pensar em aproximar-se. Mas ao senti-la tão próxima de si, e ao cheirar-lhe o sofisticado perfume francês que ela usava apenas por vaidade, sentiu que qualquer coisa se modificara dentro dele e que obrigara o seu coração a andar mais depressa. Ela voltou mais vezes com recados do pai e um dia, em que reparou nele pela primeira vez, perguntou-lhe :
- Eu já o conheço...como é que se chama ?
- Chamo-me Inácio Cunha -, respondeu ele todo corado.
- Ah !...você é que é o filho da Elvira ...como está ?
Estendeu-lhe a mão e ele apertou-a tremendo. Quando ela saiu ele estava mais apaixonado do que nunca.
Aquela paixão não correspondida modificou-o. Ele sabia que ela estava fora do seu alcance e que até ia casar com o filho do Juiz da comarca, era uma coisa que corria á boca cheia pela herdade e arredores. Até a mãe já lhe falara nisso. Mas em vez do seu coração arrefecer perante aquele obstáculo intransponível, foi exactamente o contrário que sucedeu. O seu amor por ela cresceu. Talvez devido ao seu feitio determinado e teimoso que o ajudara a fazer dois anos de instrução primária num só. Para Inácio não havia obstáculos intransponíveis quando se queria muito alguma coisa. Já não era só o toureio a cavalo que ele mais queria, queria também o coração dela. O Tozé, o seu grande amigo, notou a diferença; parecia mais abúlico, mais ensimesmado, falava menos, mesmo com o maior amigo. Já não tinha aquela apetência para os banhos no rio, nem para as grandes passeatas no canavial.
Uma noite ele não resistiu mais e resolveu rondar a casa da sua amada. Ele conhecia a janela do seu quarto, refugiou-se no escuro e pôs-se á espreita. Do lugar de onde estava via a luz a brilhar dentro do quarto tapada por uma cortina que devia ser opaca, mas que a luz tornara transparente. Ele ansiava que ela aparecesse defronte da janela para a poder ver. A sua espera resultou. Por duas vezes avistou o seu vulto a passar defronte da janela. Quando a luz se apagou, ele voltou para casa satisfeito. Voltou lá mais vezes, aliás ia lá quase todas as noites, suspirava quando a via passar defronte da janela e jurava a pé juntos que havia de casar com ela.
Uma tarde o Tozé conseguiu convencê-lo a irem pescar para o rio, enquanto esperavam que o peixe picasse, ele perguntou-lhe o que se passava com ele.
- Não se passa nada...porque é que perguntas ?
- Andas esquisito... ensimesmado... nem pareces o mesmo.
Inácio suspirou, não sabia se devia contar ao amigo o que se passava com ele, se devia contar-lhe o segredo que escondia no seu coração. Decidiu que não contava.
- É o trabalho Tozé. É o trabalho que me deixa cansado e ensimesmado.
O amigo, claro, não acreditou, mas não insistiu mais.
No dia seguinte de manhã quando estava a trabalhar o guarda-livros levantou-se e foi até á janela.
- Olha quem chegou...o noivo da menina Florência.
Inácio estremeceu e correu também até à janela. Avistou um homem novo todo bem posto a cheirar a água de colónia cara a sair dum automóvel. Sentiu um tal ciúme que a sua cara avermelhou-se como um tomate. O guarda-livros ao seu lado comentava sem notar nada as excelentes qualidades do noivo da menina Florência.
- Tem um grande futuro pela frente. Diz-se que quer tornar-se juiz como o pai. Há-de chegar a desembargador se deus quiser e além disso é uma jóia de rapaz.
Foi a partir daquela fatídica manhã que Inácio compreendeu que podia perdê-la para sempre. Até ali essa realidade era ainda distante. Tinha sido necessário aquele choque para que ele acordasse definitivamente. Passou a beber. Saía do trabalho e enfiava-se na taberna. Não andava permanentemente bêbedo, mas a quantidade de álcool que ingeria passou a influenciar decisivamente o seu rendimento no trabalho. O guarda-livros notou e passou a criticá-lo. Ele tinha uma certa inveja do Inácio e da sua bonita letra, e também da preferência que o feitor demonstrava por ele. Por qualquer razão estúpida pensava que o seu posto de trabalho estava em perigo, não percebia que o Inácio nunca chegaria a guarda-livros; não era essa a sua intenção, nem sequer era esse o seu sonho. Mas, como era mesquinho e algo invejoso, aproveitou o desleixo do Inácio para o criticar e também para denegrir a sua imagem.
Deixou de visitar a casa da amada durante a noite, sabia que estava lá o seu rival, ele visitava-a quase todas as noites, agora que o seu noivado era oficial. A mãe não compreendia o que se passava com o filho, e temia que a todo o momento o feitor o despedisse.
Uma tarde, estava o Inácio sozinho no escritório, o guarda-livros estava em reunião na casa grande, quando a porta abre-se de repente e Florência entra esfuziante. Vinha especialmente bonita, os olhos brilhavam-lhe de felicidade e o seu belo cabelo loiro que estava preso atrás por um lenço colorido, caía-lhe sobre o pescoço em rabo de cavalo. Tinha acabado de montar, as botas que calçava estavam ainda lustrosas, como se tivessem sido acabadas naquele instante de engraxar.
- O meu pai não está ?
Perguntou ela imediatamente.
- O seu pai deve estar na casa grande com o guarda-livros.
Respondeu o Inácio todo corado.
Ela não retorquiu e começou a passear pelo escritório.
- Então é aqui que você trabalha mais o guarda-livros.
- É verdade menina é aqui que eu trabalho.
Ela virou-se para ele e um sorriso aflorou-lhe a face.
- Você chama-se Inácio não é ?
- Chamo-me sim senhor.
- Sabe que tem uma letra muito bonita ? Eu não era capaz de fazer uma letra tão bonita como a sua.
O Inácio que continuava corado ainda corou mais com o elogio.
- Onde é que aprendeu a fazer uma caligrafia tão bonita ?
- Na escola menina, foi o professor que me ensinou.
O sorriso dela alargou-se e começou a passear devagar em redor dele. Ele que estava uma pilha de nervos, ponderou se aquele não seria o momento ideal para lhe confessar o seu amor, estavam sozinhos e o guarda-livros não voltaria tão cedo.
- Que idade é que tem ?
Perguntou-lhe ela de repente.
- Dezassete anos e meio, estou quase a fazer dezoito.
- Hmm...eu sou um bocadinho mais velha, já tenho dezoito.
Deu uma rápida volta sobre si mesmo e o perfume francês encheu completamente as narinas do Inácio.
- Tem alguma namorada ?
Apanhado de surpresa pela pergunta Inácio gaguejou :
- Nãaao...não tenho.
Ela aproximou-se mais e um sorriso divertido atravessou-lhe a boca.
- É verdade...não tem mesmo ?
- É verdade menina - disse ele sentindo o suor a pingar-lhe nas axilas e a escorrer-lhe pela testa -, não tenho nenhuma namorada.
- Não gosta de ninguém ?
Inácio não soube o que responder. Ela parecia que queria atazaná-lo, mortificá-lo com aquelas perguntas todas. Mesmo assim respondeu :
- Gosto de uma pessoa.
- De quem ? Posso saber ?
Perguntou-lhe ela sem quase o deixar respirar.
Ele ficou a olhar para ela com o coração aos pulos. Tinha chegado o momento tão desejado, ia-lhe confessar finalmente todo o amor que sentia. Os olhos dela sorridentes estavam agora muito mais próximos dos dele e a sua boca bonita fazia um “o” redondinho á espera que ele pronunciasse a palavra tão desejada. Inácio decidiu-se.
- Gosto de si- murmurou ele.
- Como ?
Perguntou ela.
- Gosto de si.
Disse ele mais alto.
Como ela não reagisse e ficasse a olhar para ele de olhos muito abertos, ele achou que podia fazer aquilo que ia fazer a seguir. Rodeou-lhe o pescoço com a mão e puxou-a para si. O beijo que lhe deu na boca foi dado com todo o amor que ele sentia por ela.
Nesse instante a porta abriu-se e a figura do guarda-livros apareceu na ombreira. Ficou especado com a mão na maçaneta e a boca aberta num Ah ! de estupefacção por aquilo que estava a ver. Florência aproveitou aquele momento para empurrar o Inácio para trás. Este, apanhado por assim dizer de calças na mão, ficou aterrorizado. Florência aproveitou o momento para o acusar :
- Foi ele que me beijou sem eu querer !
- Mas menina...
Gaguejou o Inácio.
- Ele costuma rondar a minha casa durante a noite e agora aproveitou estarmos sozinhos para me beijar !
O guarda-livros não sabia o que dizer. Aquilo que acabara de ver ultrapassava toda a sua competência. O Inácio compreendeu naquele preciso momento o logro em que caíra. A sua amada não o amava e, ainda pior, desprezava o seu amor. Toda aquela encenação não tinha sido outra coisa que uma demonstração de desprezo pelo seu amor. Começou a sentir uma raiva icontrolável a subir por ele acima, ninguém ia gozar com ele daquela maneira, muito menos uma serigaita armada ao fino e sem classe nenhuma. A mão dele levantou-se de repente e uma sonora bofetada ecoou pelas paredes do escritório. Sem sequer olhar para ela, empurrou com violência o guarda-livros e saiu a correr do escritório.
Ninguém mais o viu, nem sequer o Tozé que o procurou por todo o lado. Nem a mãe que, aflita, andou de casa em casa a perguntar por ele. Devido ao começo de escândalo que se começava a propagar como um incêndio pela herdade e aldeias mais próximas, o feitor apressou o casamento. No dia da boda cujo copo de água era em sua casa, algumas pessoas foram á adega à procura de vinho. Encontraram o Inácio enforcado, já morto, pendurado numa trave do teto. Nem por causa disso adiaram a boda. Quando o médico legista chegou horas depois ficou a saber-se que ele tinha morrido naquela mesma manhã; justamente à hora em que a filha do feitor se casava. Quando avisaram a mãe ela reagiu gritando bem alto :
- Raios partam o miúdo !
Foi assim que esta história acabou e outra começou. Conta-se, que nas noites mais escuras, em que a lua é nova, ouvem-se uns estranhos choros dentro da adega. Como alguém lamentasse em voz alta a sua desdita. Diz-se também, e há já quem o afirme a pés juntos, que o fantasma do Inácio percorre a adega dum lado para o outro; lamentando um amor que nunca chegou a conhecer.




     


Biografia:
Escritor com o primeiro livro já publicado
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