Hoje não falarei de Aquiles lá fora, furioso com Tróia, mas da fúria de Ulisses dentro de suas próprias águas. Falarei sobre tanques de guerra, mas de guerra doméstica. Tanques de lavar roupa. Roupa bem suja.
Nos fundos de minha casa Seu Gumercindo fazia tanques de cimento para o dono de uma loja de material de construção que também era o nosso locador. Como vendiam os velhos tanques. Seu Gumercindo era pouco para tantos tanques. Espalhava as formas pelo chão e ia enchendo de cimento para depois com os grampos de vergalhão unir as partes. Eis o poeta. Nunca me esqueci da cena: tanques no chão esquartejados e de repente as mãos de Seu Gumercindo unindo osso a osso e os nervos de vergalhão ligando tudo. Que cirurgião-ortopedista! Aprendi.
Hoje os anúncios chamam para comprar tanquinhos de diversas marcas, entanto, naquele tempo, nenhum tanque saía com a marca “Seu Gumercindo”. Nem por isso ele deixava de rir para a vida. Ria e como ria, ocasião em que eu o chamava de Seu Gumercindo Testa de Tanque. Sua testa fazia as mesmas ondulações de um tanque de roupa. Sob o sol, às vezes coincidia de mamãe estar esfregando a roupa nas ondulações do tanque e Seu Gumercindo esfregando o lenço nas ondulações da testa. Mamãe estendia a roupa limpa no varal e Seu Gumercindo guardava o lenço sujo e suado no bolso com dinheiro honesto. Mas a Testa de Tanque tem lá a sua polissemia e serve para outras ocasiões: sem botox, o senador Pedro Simon fez Testa de Tanque em plenário para o caso Sarney. O povo tem feito Testa de Tanque para o Senado desse país...
Lembro que para os meninos, os tanques pareciam vindos do nada. Só o meu caderno sabia que Seu Gumercindo fazia tanques. Os meninos pensavam que os tanques caíam prontinhos do céu, já instalados em suas casas. Lembro como eu acordava cedo para acompanhar Seu Gumercindo, fazendo meus tanques em miniatura. Ele fazia o buraco por onde passaria a torneira com uma lata de leite e eu com tampinha de refrigerante. Os meus tanquinhos ficavam encalhados. Os meninos queriam brincar de bola, carrinho e de repente viram um maluco chegar com tanques em miniatura. Eram meninos sem roupas... Ainda sem idade para lavar roupas... Eu comecei a lavar roupa suja muito cedo. Da minha mãe, da minha madrasta, do meu pai, desse país...
Mas por esses dias foi que indo à casa de um amigo dominado pela artrose, lá estava um velho tanque, cheio de lodo. E notei, uma listra de lodo verde-clara tinha subido zebrando a parede, alcançando o prédio da vizinha e foi embora até o lugar mais alto onde encostava o peito amarelo de um bem-te-vi para cantar todas as manhãs. No chão, caída uma folha de jornal com a foto do presidente Lula abraçando o ex-presidente Collor. Tinha chegado para visitar o amigo pela manhã. Depois de uma conversinha caseira, à tarde, passei a mão na escova e fui remover o lodo das paredes do tanque para o amigo. Enquanto esfregava, não tinha como não olhar a foto. Os sorrisos, o abraço do presidente no ex... Se bem que os falsos se beijam e se abraçam, mas não era o caso. Eis a frase: “Quero fazer justiça ao comportamento do senador Collor e do senador Renan, que têm dado uma sustentação muito grande aos trabalhos do governo no senado”. Não. Não era abraço de tamanduá. Era um abraço sincero.
- E o presidente Lula se arrastou por 20 anos para chegar ao poder... Ainda bem que Mário Pedrosa, nem Drummond estão aqui...
À tardinha, com as garças indo embora, olhamos para cima e a listra verde-clara na parede já estava verde-escura como as azeitonas verdes que maduras, escurecem. Muitos pensam que as azeitonas verdes e pretas são de pés diferentes. Não. Não. São do mesmo pé. As verdes são verdes porque são colhidas antes; as escuras são as maduras. Mas veja que a minha analogia é fraca. Nunca compare uma azeitona com o lodo totalmente. Ambos escurecem... só isso.
Diante da foto e da listra verde-escura fiz Testa de Tanque e virei para o amigo com uma arzinho de filósofo e disse: o lodo se arrasta sempre e quando sobe é apoiado na parede.
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