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Tomaram o meu café! Olha o Kamikaze!
Lasana Lukata


Alguém gritou: Tomaram o meu café! Eu estava perto do cais da Praça XV, manhã de sábado, lembrando de que fiz o curso de mergulho na Femar. Primeiro nas piscinas do Leblon. Mergulhávamos em dupla com apenas uma garrafa de oxigênio (aqualung) para cada dupla. Eu fazia dupla com uma médica. Isso foi há muito, muitos anos. Ela respirava um pouco e passava para mim, eu respirava um pouco e ficávamos naquela troca de bactérias, rodeados de azul e céu estrelado. As bactérias da doutora, como podem ver, estão em mim até hoje. Boas lembranças. Úmidas lembranças... Bactérias...

Depois fomos mergulhar na Urca e em seguida, mar aberto. Tiraram a médica de mim. Trocaram-na por um fuzileiro naval. Quem ministrava o curso era um almirante descarado. Ora, marinheiro e fuzileiro rimam só no papel, mas na vida diária é um desconcerto. Mergulhamos juntos, mas cada um com sua garrafa de oxigênio. Nada de troca de bactérias. Sai pra lá! A certa altura o fuzileiro, graças a Deus, se distanciou. De repente senti uma pressão e um jato de tinta vermelha tingiu as profundidades daquele mês de março. Meu sangue. Uns peixes me rodeavam como que preocupados comigo, outros, com outros olhares... Pensava no aparecimento de um cação...

Como mendigo também tem seu dia de burguês, disse comigo, ah, lá se vai a minha máscara italiana e subiu, subiu... Escapou como um peixe escorregadio. Fiquei abobalhado por ter perdido a pinta de europeu. Creio que era o muito oxigênio a me enferrujar ali mesmo. O fuzileiro fez sinal de que estava a caminho, mas antes dele, senti como que algemas nos pulsos. Eu já estava encurvado, pronto para rastejar no fundo do mar ao sabor das ondas. Eram dois cavalos-marinhos que enrolaram suas caudas nos meus pulsos e puxavam para cima me fazendo ereto novamente e na descompressão exata.

Olha coisa terrível seria ter de aturar o fuzileiro gargalhando para sempre que me salvou; que se hoje estou na vertical era graças a ele, mas o fuzileiro não precisou fazer nada.

E se alguns estiverem duvidando da força desses cavalinhos, olhem os pequeninos rebocadores no mar que fazem o que querem com enormes navios cargueiros, petroleiros, empurrando para o cais, afastando do cais, arrastando para o mar... E se isso ainda não convence, olhem essa pequenina oligarquia que faz o que quer com esse enorme cargueiro chamado povo...

Tomaram o meu café! De novo. Interrompeu de vez as lembranças. Ora, para o leitor que lê a frase “Tomaram o meu café”, nada mais natural para um vendedor gritar: Tomaram o meu café! E era caso de dar graças a Deus de as pessoas estarem, numa crise dessas, tomando o seu café. Muitas vezes um marinheiro precisa de um fuzileiro naval, de um cavalo-marinho. Não podemos fazer tudo sozinho. Podemos perder a inteireza das coisas. Às vezes só o ouvido não basta. Às vezes o ouvido precisa chamar o olho. Quando virei, ouvidos e olhos juntos, a frase tomou outro sentido. Tomaram o meu café! Eram os guardas municipais tomando o café do ambulante. Não um tomar degustando o saboroso pretinho. Tomaram e o lixeiro jogou no lixo. Na Feira de Antiguidades da Praça XV o vendedor não dizia: isto é um assalto! Oferecia café. Vai um café?! O homem do café encurvado pelo Choque de Ordem, ordem até demais, inevitável o trocadilho: Choque de Ordem ou Show que de Ordem? Agora o vendedor de café vai rastejar sem as suas garrafinhas térmicas. Lixo! Meu Deus! Sobre a terra não há cavalos-marinhos que nos façam andar eretos...

O diabo tomou o Choque de Ordem e em nada os guardas municipais perdiam para os endemoninhados de gadareno. Tomaram-lhe o café, mas a energia do vendedor de café tomou a platéia. Quem um dia não pode vir a vender um cafezinho? Deixa o homem! Ele não está atrapalhando ninguém! Uh! Si. Tiene que golpear es la crise y no las personas que desean trabajar! Uh! Oui! Oui! Gendarmes de merdê! Sher’ dicer zum teufel, kommunalen Wache! 地獄には、市町村を維持する! Hy-het! Hy-het! Пошел к черту, муниципальной гвардии! Πάει στην κόλαση, να τηρούν τα δημοτικά! Não, não se espantem com todas essas letras alemãs, japonesas, russas e gregas unidas (Vai para o diabo, guarda municipal) é só isso que eles estão dizendo, gritavam os tradutores a mando do alemão, do russo...

Hoje se não andamos encurvados como as palmeiras da Avenida Brasil, rastejamos para não nos ferirmos... A crise está nos derrubando e temos que dizer que estamos aí; estamos em pé, mas em que pé, pé de guerra? Quinta-feira passada o rádio noticiava que uma família teve de rastejar no tiroteio entre bandidos e policias perto Shopping Nova América; que os policias também rastejaram. Mas a mesma notícia pela imprensa escrita, procurei a palavra rastejar e não a encontrei. Na capa do jornal O Globo de sábado mais um avião fez pouso forçado na água e o jornal dizia: Virando moda. E fiquei pensando... Esse é o caminho... A moda. Se criarmos a moda do rastejar... De repente diminui o número de vítimas de balas perdidas; de repente todos notem que o vendedor de café rasteja... Que os aposentados rastejam há tanto tempo... Ficaremos tão iguais... Então, vamos à moda? Olha o Kamikaze!Olha o Kamikaze! Todo mundo no chão!


Corrija-se: não é Feema é Femar(Fundação de Estudos do Mar)


Biografia:
Lasana Lukata é poeta, escritor por usucapião, São João do Meriti, RJ.
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