Seu nome é Anna da Cruz, entretanto todos a conhecem por Dona Anna, ultrapassa a casa dos noventa anos e de alguns feitos. A receita da sua longevidade é respeitar discussões. A nonagenária viúva é respeitada pelo povo do Junco devido aos seus cabelos brancos, sua memória fotográfica e suas confiáveis histórias. Além do mais, ela é filha de coronel da antiga Guarda Nacional.
Dona Anna viveu toda a sua vida naquela cidade, vida que ela comportou de prestígio. Em sua alegre mocidade gostava de freqüentar os bailes do Junco, em companhia da amiga.
Apesar da sua aparência singela e dos seus ingênuos gestos, é uma mulher atenta ao tempo em que vive a sua cidade e se recorda do período da sua mocidade de pobre menina rica, quando ia vislumbrar o pôr-do-sol por detrás do Cruzeiro dos Montes. As segundas-feiras são os dias mais saudosos, a faz lembrar das idas à feira para comprar mantimentos: a primeira parada era no mercado de carne e enquanto aguardava o corte fartava-se em rosários de ouricuri vendidos em bancas defronte ao frigorífico. Apesar da saudade melancólica, ela sabe aguardar o dia da sua partida com a certeza de viver e adaptar-se ao mundo que se avoluma a cada dia.
Católica fervorosa, sempre bem humorada, gosta de morar próximo da Igreja, na velha praça que via empoeirada, ali acredita estar mais perto de Deus. Esta mulher, que desde criança frequenta o templo dedicado a Nossa Senhora do Amparo, é devota de Senhora Sant’Ana e dedicou a sua vida a fotografar memorialmente a história do Junco: o seu lugar, a terra que lhe deu à luz.
Um dia convidou a companheira para uma volta pela cidade que elas ajudaram a desenvolver, cada uma com as suas contribuições. Seguiram para uma antiga praça que as amigas frequentavam na puberdade. Não conheciam mais a rua de acesso, visto que por onde antes transitavam em chão de barro, agora há pavimentação a paralelepípedos. Detiveram-se onde funcionava a barbearia que seu saudoso esposo freqüentava aos domingos pela manhã e foi então que percebeu como tudo estava mudado: as calçadas, as pessoas, as casas... tudo enfim.
Virou-se de costas para a amiga e levou um esbarrão de um estudante trafegando apressado. As pessoas já não têm mais tempo para pedidos de desculpas. A admirável senhora estava emocionada com tamanha alteração na história da sua cidade, na sua história.
A dupla estava agasalhada, se protegia das lufadas de vento daquele final de tarde de início de outono com suas folhas secas caindo das árvores, folhas largadas pelo chão à espera de quem as catasse.
E caminharam mais alguns passos até o prédio onde antes dançavam em bailes animados. Pararam na porta. Dona Ana apontou com a sua bengala de madeira de lei – herança do marido – para a porta do salão e a amiga percebeu que o seu olhar estava vago, distante, como que a contemplar um tempo vivido, a tentar manter acesa uma recordação. Com o sorriso pacífico e charmoso dos idosos, perguntou à amiga:
- Não é uma festa?
Sim, era uma festa. Ela tinha razão, como sempre. Permaneceu com o silêncio dos inocentes a alguns passos da porta de entrada, com um sorriso perdido no horizonte se avermelhando à sua frente, quando a porta se abriu lentamente e ela pode ver o que acontecia: festa de jovens, todos dançavam e nem sabiam com quem.
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