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A RIQUEZA DO MEU PAI
A RIQUEZA DO MEU PAI
MARCIANO VASQUES

Resumo:
Texto escrito em 15 de Novembro de 2007, fala das lembranças da infância do autor e da presença do pai, portador de uma riqueza preciosa. A convivência do menino com a República da sua infância é o tema que conduz o leitor ao olhar poético derramado sobre as coisas que o texto resgata.



A RIQUEZA DO MEU PAI

     Meu pai proclamou a República da minha infância. Fundou a minha República no eucaliptal onde eu brincava o dia inteiro, na maioria das vezes sozinho, com as ensolaradas folhas de clorofila.
     Meu pai não foi uma pessoa importante para a sociedade na qual vivia, não lançou um livro, nunca se candidatou a cargo político, não foi um esportista de destaque. Foi sempre a mesma coisa: um trabalhador explorado que tardava em casa por causa da extenuante carga horária , com a qual adquiria o direito de comprar bens para a casa no grande magazine, pagando sempre em suaves e intermináveis prestações.
     Pode não ter sido importante para a sociedade nem para a história da humanidade, por ter sido a sua contribuição sempre invisível, seja como motorneiro de bonde, depois cobrador e depois motorista da CMTC, dirigindo veículos que conduziam as pessoas para as suas vidas no dia-a-dia. Nunca fez nada de extraordinário, algo que merecesse uma vultosa matéria jornalistica ou algo assim. Mas fez algo inesquecível, um bem tão precioso que tesouro algum irá superar.
     Teve uma época em que trabalhava em três empregos. Além de funcionário da empresa municipal de ônibus, era também entregador de jornais para assinantes, sendo um bico na Folha de São Paulo e outro no Diário de São Paulo. Então trazia diariamente para casa um ou dois jornais que sobravam e me entregava. Começou a fazer isso sem dizer uma palavra sequer. Apenas estendeu-me o jornal pela primeira vez, como se tal coisa fosse mesmo pra mim, que vivia solto por entre os eucaliptos e não sabia ler, nem sabia ainda que existia uma coisa chamada letra.
     Claro que certas coisas vão por instinto e assim foi a minha ida direto para a página de quadrinhos e estava eu com meus seis anos acompanhando as aventuras, sem ler uma palavra, mas aos poucos comecei a decifrar aquelas coisas estranhas. Minha mãe contava algumas histórias, aliás, quase sempre a mesma, da bruxa cega que pegava no rabinho do ratinho pensando que fosse o dedo do menino prisioneiro, e às vezes me apontava as letras num livrinho de pano e como eu era esganado de curiosidade, uma gulosice de saber as coisas, num instante sabia que tal coisa era o A e tal coisa era o N. Graças a ela com a sua dedicação e também ao homem da bicicleta que diariamente levava jornais para casa, em pouco tempo eu estava magicamente alfabetizado.
     Não me lembro de meu pai enchendo a minha infância de cobranças, apenas foi colocando em minhas mãos as coisas e também não me orientava muito, deixava que eu meu mesmo investigasse o significado e o uso que deveria fazer de cada presente e de cada novidade, assim foi com a primeira bola de capotão, com o primeiro lápis vermelho, o primeiro violão, um presente que eu não esperava, pois jamais sonhara em ser músico. E outros presentes sempre foram tão marcantes, como um jogo de boliche que introduziu com mais intensidade em minha vida as cores.
     Falando em cores, ele adorava fazer balão e também pipa e lá estávamos na varanda com varetas de bambus, com a cola arábica e a cola feita em casa com farinha, e o papel de seda roxo, o azul, o preto, o branco, o amarelo e o vermelho.
     Ele erguia sempre os olhos para o alto, sem saber estava me ensinando o hábito, e como a minha infância foi privilegiada de balões enfeitando o céu, só tive a ganhar. Depois soltar balão virou crime.
     A riqueza do meu pai estava na árvore de Natal montada com tanto esmero, repleta de algodão, na caixa com os vinte e cinco soldadinhos de chumbo, e principalmente no cenário que permitiu para a minha vida a vastidão de um eucaliptal, que o progresso destruiu.
     Meu pai nunca acumulou riqueza, nunca conseguiu uma poupança, e nunca pagou pedreiro. Sempre favoreceu-me o olhar com a sua presença no quintal regando as plantas e a contemplar as suas parreiras e os seus milhos. Um agricultor de quintal e um homem que se emocionava ao ouvir a crônica esportiva ou a novela do rádio. Assim foi ele, e isso para mim não tem preço.
     O bem maior foi ter colocado em minhas mãos os gibis. Durante anos levou mensalmente para casa um exemplar de Fantasma, que eu aguardava contando os dias dos meses. Isso foi desde o primeiro gibi com a história “O Passageiro da Cabine 14”.
     Ele sempre se pôs ao meu alcance fazendo coisas que me indicariam um caminho e um modo de ser. Foi com ele com o ouvido colado no rádio para ouvir Juvêncio, o Justiceiro do Sertão, que lá fui eu, e o rádio tomou conta de mim.
     Certas riquezas chegam em nós como se fôssemos um seguro cais, e nos apresentam coisas que serão inesquecíveis, tesouros insondáveis, vontades que não morrem.
     A sua memória é o bem maior que carrego comigo.
               
                                                                  MARCIANO VASQUES


Biografia:
Marciano Vasques é escritor, natural de Santos, e autor de Literatura Infantil. Publicou diversos livros, entre os quais "Uma Dúzia e Meia de Bichinhos", "Griselma", "Arco-Íris no Brejo", "Espantalhos", "Rufina", "Uma Aventura na Casa Azul" e "As Duas Borboletas". É também autor teatral.
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