Passar uma tarde em Paquetá, ao sol que arde em Paquetá, falar de amor em Paquetá - Herr Barbuse
Pegar a barcaça de ferro da Cantareira na Praça XV e depois enfrentar duas horas de travessia entre o continente e a ilha de Paquetá nos anos 70 era uma aventura.
Não sei por que sempre acreditei que tinha domínio sobre o mar. Respeitando sua força e seus mistérios, é claro. E antes de entrar nas águas geladas do oceano Atlântico, molhava as mãos, a testa e pedia licença à Iemanjá e Netuno. Até hoje faço isso.
Na estação das barcas, pequenas ondas empurravam a embarcação lateralmente para depois jogá-la com ímpeto contra os pneus pregados no cais.
Gotas de água podre respingavam na nossa cara. Meu pai, que não sabia nadar, protegia a família quando pulávamos do píer de madeira caiada para dentro da barca que balançava, balançava.
O mar verde escuro me atraia mais do que a ilha.
Em uma dessas viagens de passeio em família, uma menina caiu ao tentar pular. O medo impediu que ela cruzasse o ar e aterrissasse dentro da nau de ferro. E a barca uniu-se ao mar com objetivo de esmagar a menina entre os muros de pneus cobertos de mariscos velhos e a lombada do ferriboat. A bocarra da barca ria cheia de dentes feitos por pessoas que se aglomeravam perigosamente da proa à popa, nas janelas laterais de madeira descascada e vidro transparente que se abriam como guilhotinas, e presas por borboletas de metal existentes no primeiro e segundo andar.
Era tanta gente feliz em ver a rotina ser quebrada pela desgraça anunciada que mal dava para crer que a barca aguentasse aquele peso de tantas almas, cariocas ou não, e não afundasse.
Eu quis pular para salvar a criança, mesmo ainda sendo também criança de oito anos, magro, de umbigo estufado por falta de carnes no couro da barriga.
Meu pai, sempre tão pacífico, policial músico e, por isso, pacífico, apertou violentamente minha mão ao perceber minha heroica intenção.
Antes que membros da tripulação executassem o ensaiado salvamento, o instinto materno jogou a mãe nos braços de Iemanjá que, feliz, agarrou as duas oferendas sem nenhuma vontade de soltá-las vivas. Diante do burburinho da multidão de passageiros eu rezei calado, como sempre fazia em momentos de crise. Não pedi nada, não implorei ajuda, não me redimi de meus erros, nem fiz qualquer promessa. Minha reza era uma ordem, um desafio à divindade. Mandei Iemanjá soltar as duas assim que o primeiro marinheiro pulou nas águas sujas da Baia de Guanabara.
Então Iemanjá jogou mãe e filha para cima e para dentro da barca com o ímpeto de uma onda que lambeu as tábuas imundas da nave de ferro.
As grossas cordas que mantinham a barca presa ao cais choraram de alegria. As pessoas aplaudiram o feito sem desconfiarem da sua autoria. Eu sabia.
A mãe bateu o queixo na borda saliente da barca e deixou rastro de sangue na baia, como compensação para a rainha das águas. As amarras foram soltas e seguimos em paz.
A ilha de Paquetá é um lugar mágico. Um mundo à parte do Rio de Janeiro. Nossa pele sente que o sol é diferente. A lua, não sei, nunca vi daquele lado, pois a última barca partia antes dela encontrar-se com o sol. Mas o crepúsculo das 17 horas era incrível.
Os passeios de bicicleta e os mergulhos longe da vigilância do meu pai nos enchia o coração de alegria. O chão de pedras, as pedras das encostas, a areia em todas a ruas e nos nossos sanduíches, o ar fresco e a proibição do trânsito de carros faz da ilha um local único para mim e para o mundo.
Lá não conheci nenhuma “moreninha” para me apaixonar, mas ainda guardo a paixão pela ilha. Navegar nos pedalinhos e ser acompanhado pelos botos. As charretes, os sanduíches de pão de forma e os sucos que minha mãe preparava para proteger a família da carestia local são inesquecíveis. É uma memória que envolve todo o corpo, todos os sentidos. Lembro-me dos aromas, das cores das árvores e das casas ancestrais, da textura do vento e das árvores, da frieza das águas do mar, do calor do sol, do som das ondas quebrando nas praias de areia quase amarelas e do matraquear das famílias e pássaros.
Mal o sol começava a se por, já estávamos suados nas filas para o banho de água doce para tirar o sal grudado na pele e a areia dos pés e da sunga, e preparar a volta para o continente. Cansados, felizes e saudosos.
As águas poluídas da Guanabara purificavam nossas vidas e nos renovava as energias. Dormindo e sonhando durante a travessia de volta, eu ia recheando as histórias sobre o salvamento heroico que fiz, jogando-me bravamente no mar agitado e salvando mãe e filha do afogamento fatal. Assim contaria na sala de aula do Grupo Escolar Hilário Ribeiro em Niterói, diante das bocas abertas de admiração dos colegas e do olhar incrédulo da professora.
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