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O crime do anão
carlos vieira

Um anão, apesar de seu tamanho, é uma pessoa acima de qualquer suspeita?
Não sei se seria politicamente correto escrever esta estória. Não é politicamente correto falar de Judeu, Argentino. Falar de Preto é ofensivo, Negro é superofensivo. Loura burra até que é engraçado, mas não deixa de ser ofensivo, pelo menos para as louras que entendem a piada. Mas, e falar de anão? É ofensivo, é discriminação? E quando o anão é um assassino profissional?
Não importa. Falarei!
O anão dessa estória refugiou-se em uma aldeia de pescadores de areias alaranjadas. Na verdade não era de areia o chão daquela praia, era um composto de saibro fino e solto como o solo de Brasília.
Lá, o anão treinava sua nova profissão. Pela manhã saiu de dentro de uma casa forrada de estuque construída sobre finas ripas de bambu. O telhado era de palha, tudo bem rústico e confortável.
A sala era usada como bar. Isso fazia da casa um bar pobre de praia.
O anão, costumeiramente, vestia camiseta branca de algodão. Estava suja e meio rota. Uma bermuda marrom. Calçava alparcatas de couro velho. Saiu do bar limpando a boca com as costas da mão esquerda, e fez uma feia careta cuspindo longe o resto de pinga ardente e de má qualidade que o dono do bar ali mesmo produzia. Meio pinga, meio querosene, meio metanol. Vendia bem.
Tenso, o anão sai correndo em direção ao manguezal e perde uma das sandálias. Ele dá uma cambalhota espetacular, cai com o joelho direito no chão e a outra perna dobrada e faz um gesto com a mão esquerda como se desse um soco no vento, de baixo para cima. Um senhor careca, com tufos de pelos brancos saindo em erupção do orifício auricular, vestia camiseta branca e short vermelho freia assustado a bicicleta caloi e olha a cena com uma expressão entre nojo e nojo. Aperta muscularmente o olho direito como se assim enxergasse melhor e apoia o pé esquerdo no solo poeirento. Uma tênue fumaça de poeira gruda no suor de sua perna deixando os pelos alaranjados.
O anão treinava o golpe fatal e o pescador testemunhando o fato, porém fixando o olhar na alparcata esquecida próximo ao último dos três degraus de madeira do boteco pé-sujo.
Relembrando sua vida passada, o anão se vê vestido com sua jaqueta de couro caminhando pelo cais do porto. Atravessa calçada preta em direção ao nada. Ele estava pensando em sua vida no circo. A lona branca com desenhos de animais saltitantes coloridos, com babados em volta. Era um circo pequeno. Simples e pequeno. Mas cheio.
As maiores atrações eram o anão e a bailarina. Ele era o atirador de facas. Exímio e muito aplaudido. As crianças o adoravam e, por menor que fosse a cidade e por mais dias que ficasse lá, as crianças iam uma, duas, três, dez vezes assistir ao anão jogador de facas. E depois queriam pegá-lo, como a um boneco ou bichinho de estimação.
Pais, mães e, principalmente os filhos gostavam da bailarina pela sua beleza morena e leveza gestual. Os cabelos negros e lisos jorravam pelas costas até a linha da cintura era seu par na dança. E eles obedientemente seguiam seus movimentos, rodopiando milimetricamente ao lado dela pelo picadeiro e, quando ela estacava no meio do palco, enroscavam o corpo num abraço harmoniosamente completo. Ela então fazia gracioso padedê e, no encerramento da música, abria um espaquete que causava furor e aplausos que duravam não menos que cinco minutos. Ninguém conseguia aplaudi-la sentado. Era a mesma música e a mesma dança todos os dias, mas todos se apaixonavam e deliravam por ela e pelos lindos olhos piongos.
O anão era o dono do circo. Extremamente empreendedor e perfeccionista. Não aceitava falhas e perdeu muitos artistas por causa dessa virtude-defeito. Só a bailarina não se ia.
O anão especializou-se em atirar facas. O público adorava aquilo e assistia como que enfeitiçados. Os adultos ávidos para presenciarem um acidente fatal e as crianças encantadas com o anão. Certo dia ele satisfez aos adultos.
Insatisfeito com aquela vida que não o levaria a lugar algum, levantou-se do caixote onde dormia e decidiu ir embora, acabar com o circo. Exímio malabarista das facas foi comunicar à bailarina, que agora também se tornou sua partner no número das facas, que deixava o circo para ela. Argumentou que deseja redesenhar sua história, se encontrar, tornar-se alguém grande e realizado.
Ela chorou, gritou, rasgou as roupas dele e disse não aceitar que ele se fosse, embora ficasse com o circo de herança. Ele concordou em fazer uma última apresentação.
Meticulosamente treinava, aproximando-se cada vez mais as facas da jugular da boneca amarrada na roda da morte. Em sua mente via a faca atravessando o pescoço da histérica bailarina e assistente. “Só assim ficaria livre” – pensou.
Naquela tarde, com o circo costumeiramente cheio, galera delirando, luzes coloridas piscando para todos os lados. Pipoqueiros, baleiros, anunciavam aos berros seus produtos. O play-back da banda foi ligado, as luzes apagadas. O show vai começar.
O anão, mais sério do que de costume, amarrou a partner na roda da morte. Vestia sua melhor roupa de couro. Caminhou decididamente para o ponto de lançamento das facas. Ela percebeu que ele estava diferente, não sorria.
No momento em que o tarol se fez ouvir no play-back, o pequeno ser pegou a faca e fez a mira. A música parou e a plateia deixou de respirar. A faca foi lançada. Uma única faca que em câmara lenta foi girando pelo ar, aproximando da jugular da moça que tremia tanto que as rendas de sua mini-saia balançavam perceptivelmente. Uma gota de suor brotou em sua testa e desceu pelo pescoço. Com os olhos, pela primeira vez fechados em uma apresentação, sentiu que o frio fio da faca iria rasgar sua garganta. No entanto, o metal produziu um baque seco tão próximo a seu pescoço atingindo levemente sua pele por onde escorreu fio de sangue que se misturou à gota de suor que descia de sua testa.
O público explodiu. Ela estancou o grito alucinante e abriu os olhos, não viu mais o anão. Naquele momento preferiu que a faca tivesse atingido o alvo como imaginara.
A banda em play-back voltou a tocar ao final do show. Alguém teve que ir lá e desamarrar a moça da roda da morte. Ela correu com as pernas ainda bambas atrás do anão. Não deu tempo de dizer-lhe que estava grávida. Ele evaporou-se para sempre. Foi cumprir sua sina.


Biografia:
Vida de guri é assim.
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