Na calada da noite o taxista João Manuel sonolento pilotava seu carro de aluguel. Deparou-se com a figura misteriosa de uma loura, nas imediações da Boca-da-mata, chamando seu táxi.
Ele parou e pensou: “será uma longa corrida ou uma breve trepada”. Muito séria, a loura com uma voz profunda e roufenha lhe pediu: "leve-me ao cemitério da Penha".
João Manuel estranhou o pedido e meio aturdido obedeceu. Aproveitando a solidão das ruas, pisava frouxo no acelerador do veículo para não passar dos 40 por hora. Nessa velocidade pensava em como se aproveitar da situação, ou melhor, como “traçar” a louraça.
A mulher, chorosa, pediu: “corra moço, corra senão não terei mais tempo”. Condoído ele aperta o pé e chega aos 80 Km por hora.
Durante o trajeto ela permanecia calada. Ele tentou entabular conversa, mas só gastava a saliva. Ela chorava miúdo e ele, preocupado, observava. Notara sua palidez e temeu se apaixonar. Pensou até em protegê-la pelo resto de sua vidinha.
Chegando ao Cemitério da Penha, diante dos imponentes portões de Bronze, ela pede para ele parar e esperar. Descalça ela desce do táxi correndo e para diante dos portões trancados. Afinal era quase meia-noite.
João Manuel segue seus passos com o olhar. Ela começa a dançar uma dança esdrúxula com rodopios e pequenos saltos. O aturdido taxista vai ao seu encontro e segura suas mãos. Os dois bailam por eternos minutos. Agora ela sorri e João Manuel sente-se um deus.
- Agora me leve ao Encantado, rua fulano de tal, casa 34 - de repente ela lhe ordena.
- A senhora, ou senhorita mora no Encantado? O poeta Cruz e Sousa morou lá.
- Conheço não. Minha mãe se orgulha de ter frequentado a casa da Araci de Almeida. Agora essa tal de Cruz só conheço de cemitério e das beiras das estradas. Rárárárárá – ela lhe responde com forte gargalhada.
- Sei. Araci de Almeida foi grande cantora e jurada do Sílvio Santos, é mais fácil lembrar dela do que de dele: Cruz e Souza. Começa a declamar uns versos.
“O Horror dos Vivos
Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n'alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Não a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.”
- Que lindo, o senhor também é poeta?
- Não, esses são versos do Cruz e Sousa, seu quase vizinho, se já não tivesse morto.
Quase não se contendo de emoção, o taxista leva sua leve e gelada musa ao local indicado. Lá chegando ela desce do carro e empurra um pequeno portão de ferro que cede com algum barulho dando-lhe passagem. A loira segue por um terreno estreito que termina em uma varanda de casa de subúrbio, modesta e antiga com muros baixos, da altura de uma pernada.
Como a loira não voltava para pagar a corrida, e sem se importar com o avançar da madrugada, João Manuel segue a pé até a porta do casebre e, de punho fechado, bate com os nós dos dedos na madeira enegrecida da porta causando um barulho seco e contínuo: pá, pá, pá.
Uma sonolenta senhora de setenta anos, mais ou menos, com bafo almiscarado e “mingau de fantasma” desenhando a linha do lábio inferior, abre a porta assustada.
“Minha senhora, me desculpe o incômodo, sou taxista e trouxe uma loirinha para cá, mas é que há meia hora atrás ela aqui entrou e ainda não me pagou a corrida. O taxímetro continua a correr e está ficando muito caro.” - falou quase se lastimando.
A senhora pediu para ele desligasse o taxímetro e depois entrasse na casa. Desconfiado, ele assim o fez. Dentro, forte cheiro de mofo atordoa seus sentidos.
Em cima de uma estante ele vê o retrato da bela loira. Estava colado em uma barata moldura prateada.
“É ela, ela que aqui entrou e nada falou e nada pagou.”
A mãe chorando lhe respondeu: “não pode ser, minha filha já morreu. Há quarenta anos ela dançava em frente ao portão de bronze do cemitério da Penha e um caminhão desgovernado a atropelou.”
Um calafrio percorre entre a nuca e o rabo da espinha de João Manuel. “Desejei uma alma penada” pensou quase desfalecendo. O cheiro de mofo começa a sufocá-lo e tremendo, rapidamente foge daquela casa, sem se despedir e sem receber a corrida. Suava frio, tão frio quanto a mão da moça com quem tinha recentemente dançado uma valsa, em frente aos portões de bronze do cemitério da Lapa, do Catumbi, da Penha. Já não mais lembrava o nome do lugar, só via os túmulos saltarem em sua memória junto aos versos do poeta simbolista.
Todavia, lembrou das histórias de mulheres que desapareciam na madrugada, como almas penadas, que outros taxistas contavam.
Ele sempre ria e não acreditava em "tamanhas tolices" como chamava as histórias. Dessa vez aconteceu com ele.
Assim que o taxista partiu, queimando pneus sobre o fraco asfalto de subúrbio, a loura sai do seu quarto e entra na sala. “Mãe – chama as gargalhadas. Mais um pato me traz pra casa de graça.” E a mãe sorrindo balança a cabeça como quem diz que ela não tem jeito mesmo e vai a cozinha tomar sua dose de cachaça. Antes de ir dormir, porém, reacende a vela apagada sob a foto da filha “fantasma”.
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